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3 LETRAMENTOS E FORMAÇÃO DE LEITORES LITERÁRIOS

3.3 LETRAMENTO LITERÁRIO PRESSUPÕE A FORMAÇÃO DO LEITOR

3.3.1 O que é literatura

Afirmou-se anteriormente que, para esta pesquisa, adota-se a concepção de literatura como um discurso que, pelo modo de dizer e de apresentar um mundo, cuja referência objetiva inexiste, dá ao leitor várias possibilidades de concebê-lo e, por conseguinte, de entender a si e ao outro, numa reflexão dialógica sobre o gênero humano e a realidade concreta. Propõe-se refletir um pouco mais a respeito, pois, considerando-se a complexidade que o termo traz no que concerne ao contexto socio-histórico-cultural em que é inserido, ao longo dos estudos sobre ele, longe de se querer apresentar um conceito, busca-se amalgamar os conceitos já apresentados no decorrer desses estudos, de forma que possam atender à concepção aqui apresentada para letramento literário.

Nesse sentido, conceituar literatura tem sido um desafio dos estudiosos da área, que quase sempre se reportam aos gregos em busca de resposta para o questionamento sobre o que torna um texto literário ou não literário. Para Lajolo (2018), vários são os critérios utilizados para responder a essa questão, a saber: o tipo de linguagem empregada, as intenções do escritor, os temas e assuntos tratados no texto, o efeito produzido pela leitura. Ao longo dos séculos, a partir de cada um desses critérios, produziram-se definições de literatura, consideradas corretas e aceitas para um determinado contexto, a partir da relação entre as obras escritas num dado período e a resposta que esse período dá a essa questão. Portanto não há apenas uma definição para literatura. Ela pode ser entendida como resultado de um uso especial de linguagem que por meio de diferentes recursos sugere o “arbitrário da significação [...] por participar de uma das propriedades da linguagem: a de simbolizar e de, simbolizando, simultaneamente afirmar e negar a distância entre o mundo dos símbolos e o dos seres simbolizados” (LAJOLO, 2018, p. 46-47). Para a autora, não é o uso de um ou de outro tipo de linguagem que anula ou produz literatura, mas a situação de uso: quando, através de um texto, autor e leitor, ou ambos, suspendem a convenção da linguagem empregada no cotidiano, de forma referencial. O autor cria um universo e compartilha-o com o leitor que o recria: “um universo que corresponde a uma síntese – intuitiva, ou racional, simbólica, ou realista – do aqui e do agora da leitura, ainda que o aqui e o agora do leitor não coincidam com o aqui e agora do escritor” (LAJOLO, 2018, p. 58). De todas as significações provisórias de que se tem conhecimento, hoje há uma certeza:

literatura é o texto que permite o encontro de mundos: o mundo criado no texto e o do leitor.

O produto desse pacto é a experiência vivida pelo leitor, o que implica a ideia de conhecimento. A arte literária constitui um tipo de conhecimento distinto dos demais pelo signo empregado: as ciências, as filosofias e as religiões são formas de conhecimento que utilizam signos verbais e não verbais unívocos; as artes lançam mão de signos polivalentes, e, dentre elas, a única que recorre à expressão verbal é a Literatura. Nesse caso, por ser problemático captar a realidade de forma direta, “resta conhecê-la por meio de um sinal que a represente, não como tal, visto ser impossível, mas [...] enquanto se submete à expressão: [...] conhecemos a representação da realidade, não ela própria” (MOISÉS, 2014, p. 269). Desse modo, a realidade espelhada na representação não é a que se deseja conhecer, mas como se reflete na imaginação do autor. Então

fazê-lo implica “mentir”, fingir a realidade que se mostra. Daí se concluir que Literatura é ficção, ou imaginação [...] que Literatura é a expressão dos conteúdos da ficção, ou da imaginação, por meio de palavras polivalentes, ou metáforas (MOISÉS, 2014, p. 269, grifo do autor).

Para Lima (2003, p. 93), a ficcionalidade (fingimento de mundo) da mensagem aparece como o que distingue o texto literário dos outros textos. “Enquanto na linguística o imitativo é o próprio código, que espelha a estrutura do mundo externo por meio de uma mensagem voltada para a comunicação de fins pragmáticos, na literatura a mensagem é que é mimética”. A principal característica da função estética é a oposição à função pragmática da linguagem verbal. Tanto a linguagem pragmática propriamente dita, isto é, a cotidiana, quanto a científica são voltadas para o fim comunicativo de transmitir uma mensagem que, respectivamente, pode ou não, ser sujeita à demonstração ou à verificação. O uso pragmático da linguagem atua diretamente sobre a realidade; a função estética, no entanto, só indiretamente estabelece uma relação com o real, por ser “uma forma sui

generis de comunicação. [...] Ficcional é todo o texto que potencializa a função

estética, sem um compromisso direto com o real” (LIMA, 2003, p. 93). O discurso ficcional não postula uma verdade, mas a põe entre parênteses; não deixa de levar em conta o mundo, apenas não pretende submeter-se ao princípio de realidade. O

ficcional é um princípio fundador cuja regra básica é duvidar de si mesmo, e que, por sua condição de como se, não pretende ser a última palavra (LIMA, 2006).

Na modernidade, com a quebra do critério da unanimidade e perenidade das representações sociais e com a conscientização da historicidade do tempo e da relatividade dos julgamentos, a partir do lugar em que estes são produzidos, a obra literária corresponde a uma virtualidade que precisa ser suplementada, sendo necessário para isso que haja uma coerência interna de suas linhas constitutivas. “Tal coerência supõe uma orientação para a leitura [...] esta orientação por si só não exige o postulado de uma leitura única como correta. Haverá uma variedade interpretativa” (LIMA, 2003, p. 151). Uma obra só é poética se penetra numa situação estética, isto é, se necessita da projeção do leitor para concluir-se. A produção poética é, portanto, tão autoral quanto do leitor, daí a necessidade de uma resistência interna mínima, em termos de organização do texto, para que possa ocorrer alguma experiência de socialização com o leitor e a arbitrariedade não assuma o comando absoluto da leitura. O leitor precisa de algumas coordenadas culturais de orientação para que possa penetrar no poema, numa experiência estética.

O teórico afirma ainda que a função estética, hoje, não se restringe à arte apenas e os estudos que buscam definir o objeto poético não oferecem critérios satisfatórios. Por isso, todo o esforço para permitir o conhecimento da arte não pode esquecer que inexiste a poeticidade em si mesma, pois o reconhecimento do valor poético não é função da qualidade objetiva do texto, mas o resultado de um acordo entre a proposta do texto e a aceitação pelo leitor. Isso não significa dizer que essa aceitação se constitua num ato individual, pois ela não se cumpre sem a admissão de uma norma estética que, por sua vez, é sempre de ordem social. Dessa forma, o valor estético não existe por si; ele só se atualiza pela atividade do leitor, mediado pela norma.

Como o contexto socio-histórico do leitor e, por conseguinte, os conhecimentos prévios (do autor e do leitor) são variáveis, o leitor constrói sentidos diversos dos atribuídos pelo autor. Nas palavras de Lima (2003, p. 10): “o discurso mimético é o discurso do significante à busca de um significado, que lhe é emprestado tanto pelo autor quanto, e, principalmente, pelo receptor”. Esse discurso organiza-se como foco virtual, que se desdobra em representações ou realidades diversas pelo leitor. Necessita, portanto, da atividade dinâmica do leitor, que, através

da leitura, reconfigura e avaliza o representado pela própria competência (LIMA, 2003, p. 73).

Nesse sentido, a obra literária resulta de uma interação que se processa por meio da linguagem verbal, escrita ou falada, cujo produto (o texto) possibilita trocas comunicativas ocorridas dentro dos grupos sociais, pondo em circulação esse sentido humano. Como forma de comunicação, integra a esfera da cultura, mas distingue-se de outros objetos culturais por não estabelecer referência direta com o contexto e, por não ter uma função pragmática, possui uma autonomia de significado. Essa independência em relação aos referentes reais é decorrente da coerência interna dos elementos que a constituem, dando-lhe autonomia em relação ao contexto. A linguagem literária, portanto, possibilita várias leituras, o que não ocorre com as demais linguagens cotidianas que são ligadas a uma situação de comunicação definida, sugerindo uma informação imediata e restritiva (AGUIAR; BORDINI, 1988).

É essa riqueza polissêmica que proporciona no leitor o prazer de reconstruir ou mesmo coconstruir, a partir da linguagem, o universo ficcional e concretizá-lo a partir de suas próprias vivências e experiências leitoras. Nesse processo o leitor sente-se convidado a fazer parte do jogo de linguagem criado pelo autor, levando-o a construir uma realidade ficcional possível, proporcionando-lhe uma reflexão sobre a sua própria visão da realidade concreta. Sendo assim, a literatura não nasce no vazio, mas no centro de um conjunto de discursos vivos, com os quais compartilha numerosas características. Vemos na literatura um discurso sobre o mundo (TODOROV, 2016).

Candido (2007) afirma que a importância do texto literário não está na capacidade de exprimir uma realidade, social ou individual, mas no modo pelo qual o autor plasma elementos não literários, como paixões, ideias, fatos, acontecimentos – que são matéria-prima do ato criador – no trabalho com a eloquência do sentimento, no modo como as palavras são selecionadas, na invenção das imagens e nos jogos de elementos expressivos para provocar no leitor uma apreciação e uma compreensão dessa realidade transfigurada pela técnica. Desse modo, a criação ficcional ou poética, a fabulação, está presente na vida de cada ser humano, nas mais diversas formas ou gêneros, como a anedota, as histórias em quadrinhos, o noticiário policial, a canção popular, entre outros. Portanto, a literatura no sentido amplo, parece corresponder a uma necessidade universal que precisa ser satisfeita,

constituindo-se como elemento indispensável de humanização, ou seja, confirma o homem na sua humanidade “porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente”, tornando-se um instrumento poderoso de instrução e de educação (CANDIDO, 2004a, p. 174-175). Além disso, o ser humano se constitui a partir da interação com os outros e do que isso resulta. A literatura abre infinitas possibilidades de interação com os outros e, por isso, “nos enriquece infinitamente e longe de ser um simples entretenimento, uma distração reservada às pessoas educadas, ela permite que cada um responda melhor à sua vocação de ser humano” (TODOROV, 2016, p. 23-24).

Humanizar é, pois, o processo que confirma, no homem, traços considerados essenciais, como a capacidade de refletir, de conhecer, de sentir emoções e, a partir dessas capacidades, abrir-se para compreender-se e compreender o mundo. A literatura humaniza porque possibilita ao leitor a capacidade de se tornar mais aberto para a natureza, para a sociedade e para o seu semelhante. Para talvez explicar esse papel humanizador que a literatura possui, Candido (2004a) apresenta suas três faces que provocam efeito no leitor: a) a literatura é uma construção de objetos autônomos, enquanto estrutura e significação; b) ela manifesta emoções e visão de mundo dos indivíduos, enquanto força de expressão; e c) é uma forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusa e inconsciente. Segundo o crítico, a literatura é vista por muitos apenas com a função de transmitir instrução ao leitor. No entanto seu efeito se dá pela atuação simultânea dessas três faces, embora o que decide se um texto é literário ou não é aquela que corresponde à maneira pela qual a mensagem é construída:

a produção literária tira as palavras do nada e as dispõe como todo articulado. Este é o primeiro nível humanizador [...] a organização da palavra comunica-se ao nosso espírito e o leva, primeiro, a se organizar, em seguida, a organizar o mundo (CANDIDO, 2007, p. 177).

Além do conhecimento proveniente da organização das emoções e da visão de mundo, há conhecimentos planejados pelo autor (conhecimento intencional de propaganda, ideologia, crença, revolta, adesão etc.) e que são conscientemente assimilados pelo leitor. Nesse caso, a literatura satisfaz à necessidade do leitor de conhecer os sentimentos e a sociedade, levando-o a tomar posição sobre eles. Esse é o papel social da literatura. Para Candido, a eficácia humana da literatura é função

da eficácia estética, pois o que na literatura age como força humanizadora é a própria literatura, ou seja, “a capacidade de criar formas pertinentes [descobrir na construção do texto literário a expressão lapidar e ordená-la segundo meios técnicos que impressionam a percepção]” (CANDIDO, 2007, p. 178). Dito isso, o impacto da recepção de uma produção literária oral ou escrita se dá pela “fusão inextricável” da mensagem com sua organização: a forma garante um maior significado ao conteúdo e ambos aumentam a compreensão e a visão de mundo do leitor. Portanto, para o autor, “negar a fruição da literatura é mutilar nossa humanidade”, mas a literatura também é um instrumento consciente de desmascaramento, pois proporciona ao leitor, através da fabulação, a percepção de que os direitos do homem sofrem restrição ou até sua negação. Nessa perspectiva, tanto num sentido como no outro a literatura se coaduna com a luta pelos direitos humanos (CANDIDO, 2007, p. 186).

Todorov (2016) também afirma que os estudos das obras literárias remetem sempre a círculos concêntricos cada vez mais amplos, como estudos dos escritos do mesmo autor, da literatura nacional, da literatura mundial, mas todas as obras, independentemente de sua origem, trazem sempre uma reflexão sobre a dimensão da existência humana.

Há, nos dias atuais, no que concerne à concepção de literatura, uma nota que parece ser consensual: a relação dialógica entre obra e leitor. Para que essa relação seja significativa, alguns aspectos devem ser considerados: os contextos de produção da obra e o contexto de recepção, ambos situados historicamente, e o modo de dizer/apresentar o mundo que, embora não existindo por ser uma criação da imaginação do autor, apresenta-se ao leitor como uma realidade possível, a partir da qual ele compreende melhor a si mesmo e a sua relação com o outro e com o mundo. Portanto, reafirma-se para esta pesquisa a concepção apresentada no início desta seção.