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Cogni,;:ao social e discurso

No documento [Download integral] (páginas 98-103)

A psicologia social do discurso e um novo cam po de estudo que coincide em parte com o da psicologia social da linguagem. Isto significa que este capftulo aborda t6-

picos menos estudados na psicologia social da linguagem, como siio as estruturas e as estrategias especificas do discurso (excluindo caracteristicas gramaticais ou outras

propriedades das frases) e os assuntos da psicologia social que podem ser estudados

com mais proveito a partir de uma perspectiva analitica de discurso.

Apesar de ter as suas raizes nos cerca de dais mil anos de ret6rica, a analise do

discurso emergiu como disciplina transversal independente nas humanidades e nas

cif:ncias sociais apenas nos meados dos anos 60. Desenvolvida em simult:lneo, e por vezes em rela�iio pr6xima, com outras disciplinas novas, como a semi6tica, a prag­ matica e a sociolinguistica, as suas disciplinas-miie primordiais foram a etnografia, a linguistica, a micro-sociologia e a poetica. Nos anos 70, a psicologia cognitiva e a

Inteligencia Artificial juntaram-se as disciplinas cujo interesse crescente no discurso constitufa um dos maiores novos desenvolvimentos da ultima decada (para detalhes, ver van Dijk 1985b).

A extensiio da psicologia social do discurso s6 teve lugar em 1980 (para discuss6es recentes, ver, e.g., Potter e Wetherell 1987; Robinson 1985). Nao existem pratica­ mente nenhuns livros na psicologia social que integrem conceitos como 'discurso' ou 'texto' no seu fndice de assuntos, e hi muitos poucos artigos de revistas no campo que tratam explicitamente as estruturas de discurso. Isto significa que neste

capitulo niio teremos a possibilidade de rever um vasto corpo de investiga,ao em psicologia social que Iida explicitamente com estruturas de discurso, embora eu tome a liberdade de reinterpretar varios estudos num quadro analitico de discurso. Para contrabalan,ar uma tradi,iio de investiga,ao s6lida, parte deste capitulo sera

por isso te6rica e programitica, com vista a levantar e a indicar futuras direcc;Oes e

trabalhos neste novo campo.

Apesar desta falta de interesse explicito no discurso, a psicologia social tern muitos subdomfnios que permitem ou exigem uma abordagem analftica discursiva. No final

de contas, ha muito poucas noc;6es fundamentais na psicologia social que niio tenham

elos de ligar;ao 6bvios com o uso da linguagem em contextos comunicativos, isto

e,

com

diferentes formas de texto ou fala. Percepc;iio social, gestiio da impressiio, mudanc;a de

atitudes e persuasiio, atribuir;ao, categorizar;ao, relar;6es intergrupais, estere6tipos, re­ presentar;6es sociais (RS) e interac<;iio constituem apenas alguns r6tulos para as maiores

areas da psicologia social actual em que o discurso desempenha um papel importante, embora ainda bastante dissimulado. De facto, a linguagem e, especialmente, a comu­ nicac;iio assurniram um papel proeminente na hist6ria da psicologia social (ver sobretudo Brown 1965), mas a natureza essencialmente discursiva do uso da linguagem tern sido

reduzida a wn estudo mais ou menos intuitive das 'mensagens' e no momenta actual

a psicologia social incide sobretudo nas caracteristicas da 'fala' (speech). Por outras palavras, depois da lingufstica e das disciplinas irmas da psico e da sociolingufstica,

a an3lise do discurso tern alga a oferecer a maioria dos psic6logos sociais. 0 inverso

tambem e verdadeiro: os conhecimentos produzidos na psicologia social tern uma importancia primordial para o desenvolvimento da analise do discurso.

Embora niio possa dar uma 'definic;iio' da noc;iio de discurso (toda a disciplina, ou pelo

menos uma teoria completa, da essa definir;ao), neste capftulo vejo 'discurso' coma

uma forma de uso da linguagem e simultaneamente como uma forma especifica de

interac<;iio social, interpretada coma um evento comunicativo completo numa situar;ao

social. 0 que distingue esta analise de discurso das gramaticas das frases e que, na

pr.itica, a an.ilise do discurso incide especificamente em fen6menos que ultrapassam o limite das frases. Obviamente, as palavras ou frases pronunciadas siio uma parte integral do discurso. Uma vez que, em termos empiricos, o 'significado' do discurso e uma estrutura cognitiva, faz sentido incluir no conceito de discurso niio apenas trar;os verbais ou niio verbais observ.iveis, ou interacr;iio social e actos de fala, mas tambem representar;Oes cognitivas e estrategias envolvidas na produr;iio e na compreensao do

discurso. Aqui ignoro os multiplos problemas relacionados com a delimitac;iio precisa do discurso relativamente a outras (formas de) interacc;iio, a comunicac;iio niio verbal

ou em relac;iio a outras estruturas cognitivas e estrategias. A nor;iio de 'texto', algumas vezes usada como compreendendo apenas o aspecto puramente verbal do discurso, outras vezes usada para fazer referencia a forma linguistica abstracta que subjaz ao

discurso enquanto forma de uso da linguagem, e aqui empregue sobretudo no seu

sentido comum de 'discurso escrito'.

Cogni,;iio social e interac,;iio

Para restringir a discussiio sobre o campo potencialmente vasto da psicologia social do discurso, centro-me num nllmero de conceitos b.isicos que, na minha opiniiio, podem ser Uteis no estabelecimento de um quadro te6rico s6lido. Primeiro, presto atenr;iio 98

especial a ac,ao combinada entre discurso e cogni,iio social (Fiske e Taylor 1984; Wyer e Srulrl985). A cogni<;iio social e aqui discutida sobretudo em termos de RS partilhadas por membros de grupos (Farr e Moscovici 1984); isto e, irei negligenciar os domfnios mais individuais da psicologia social. A investiga,iio em cogni,ao social conjuga-se com as orienta,oes te6ricas da investiga,ao cognitiva e da lnteligencia Artificial sobre o processamento de texto e o papel dos gui6es (scripts) de conhecimento (Schank e Abelson 1977; van Dijk e Kintsch 1983). Assim, espero mostrar que as RS (como

estere6tipos ou os preconceitos ftnicos) e o conhecimento socialmente partilhado

sao reproduzidos na sociedade essencialmente atraves do discurso (ver tambem Kraut e Higgins 1984; Roloff e Berger 1982; Rommetveit 1984). Esta no<;iio de 'reprodu,iio' ten\ um papel fundamental no quadro apresentado neste capftulo.

Em segundo Ingar, a reprodu,ao discursiva das cogni,oes sociais tambem requer uma dimensao social (sociol6gica) adequada que, no entanto, tern sido frequentemente negligenciada na psicologia social (Forgas 1983). Neste aspecto, as no,oes basicas siio as de interac,ao e de situa,iio social (Argyle, Furnham e Graham 1981; Forgas 1979). Processos de percep<;iio social, comunica,iio, atribui,iio, atrac<;iio, gestiio da

impressao e contacto intergrupal, entre muitas outros, tambem devem ser definidos

nesse quadro conceptual.

A minha tese fundamental ser:i que estas representa�6es cognitivas e processos social­ mente situados tern simultaneamente uma dimensao discursiva importante. As repre­ senta,6es sociais sao em grande parte adquiridas, usadas e mudadas atraves do texto e da fala. Por isso, a analise do discurso pode ser usada como um instrumento poderoso para revelar os conteudos subjacentes, estruturas e estrategias das RS.

O meu maior criticismo, tanto do trabalho mais tradicional na psicologia social, coma de abordagens mais recentes, e que, por um lado, as RS nao sao suficientemente

cognitivas, negligenciando a especifica<;ao de representa<;6es mentais e estratCgias, por outro, nao sao tao sociais como se esperaria, negligenciando o contexto social

e as fun,oes. Assim, embora partilhe o reconhecimento do papel fundamental do

discurso na psicologia social com os autores do Unico livro sobre o assunto (Potter e

Wetherell 1987), diferencio-me desses autores na minha abordagem as RS cognitivas

ou atitudes, que eles tendem a subestimar reduzindo-as essencialmente a caracterfsticas

do discurso social. Na minha opiniiio, niio se pode tra,ar nenhum quadro te6rico ou explicativo de valor para qualquer fen6meno tratado na psicologia social sem uma explica,iio explfcita das representa<;6es cognitivas partilhadas socialmente. Embora

o discurso assuma, sem dllvida, uma importancia fulcral na expressao, comunica<;iio

e reprodu,iio de RS (que tambem e a tese principal deste capftulo), isso niio significa

que o discurso e as suas estratCgias sejam idfnticos a tais representa<;6es.

Assim, para este capftulo, defino o papel do discurso na psicologia social essen­

cialmente em termos do jogo entre cogni<;3o social e interac<;iio situada nos processos de reprodu<;3o societal. Por conseguinte, as interac<;6es controladas cognitivamente estao ligadas a outras dimens6es sociais importantes, como domin3.ncia de grupo e

estrutura social. Este elo de liga<;iio torna-se necessario numa explica,iio adequada 99

das furn;oes dos preconceitos de grupo e ideologias, bem como na sua reprodm;ao discursiva na sociedade. Obviamente, o estudo destas rela,oes coincide parcialmente

com a investigac;ao tanto na micro como na macro-sociologia, domfnios estes que negligenciaram as importantes dimens6es cognitivas da interacc;iio social (no entanto,

ver Cicourel 1973).

Estruturas das representa1,iies sociais

Tenho de ser sucinto relativamente ao primeiro passo do quadro te6rico, isto

e, as

estruturas das RS. Na verdade, pouco se sabe sobre a organiza,ao precisa dessas

representac;Oes, apesar de algumas tentativas anteriores para as modelar segundo a

estrutura do conhecimento em termos de guioes (scripts) (Abelson 1976).

Lembramos que a cogni,ao social

e

aqui definida como um sistema socialmente par­ tilhado de RS, um sistema que, no entanto, tambem inclui um conjunto de estrategias

para a sua manipulac;iio efectiva na interpretac;iio social, na interacc;iio e no discurso.

Localizadas na mem6ria semantica ( ou melhor, social), as RS podem ser conceptua­ lizadas como redes hierarquicas, organizadas por um conjunto limitado de categorias

nucleares relevantes. As representac;Oes sociais de grupos, par exemplo, podem canter nllcleos coma Aparencia, a Origem, as Finalidades socioecon6micas, as dimens6es

culturais e a Personalidade. Estas categorias organizam os conteiidos proposicionais

das RS que integram nao s6 conhecimento social, mas tambem informa<;ao avaliativa, como as opini6es gerais sobre outras pessoas enquanto membros de grupos. A no<;ao

tradicional da psicologia social de 'Atitude'

e

assim redefinida aqui em termos de RS generalizadas. A dimensao social das RS niio reside apenas no facto de estas cogni,oes

versarem sobre grupos sociais, classes, estruturas ou assuntos sociais. As RS sao sociais tambem porque sao adquiridas, mudadas e usadas em situa<;Oes sociais; isto e, sao

cogni,oes partilhadas por todos ou pela maioria dos membros de um grupo (Brown e Turner 1981; Moscovici 1982). Isso implica que siio abstraidas do conhecimento

puramente pessoal, hem como das situa<;Oes Unicas, e que sofreram um processo de

generaliza,ao, adapta,ao e normaliza,ao. Por fun, deve ser sublinhado que a no,ao de

'representa<;iio social' tern sido desenvolvida sobretudo por Serge Moscovici e os seus

associados (ver, e. g., Moscovici 1984, e outros artigos no volume editado por Farr e Moscovici 1984), que, por exemplo, conceptualizaram no,oes de senso comum de

fen6menos complexos socioculturais ou cientfficos (como a 'psicanfllise'). 0 meu uso

desta no,ao

e

de alguma forma diferente e inclui qualquer representa,ao cognitiva

socialmente partilhada sobre fen6menos sociais, incluindo grupos sociais, rela<;Oes sociais, assuntos sociais ou problemas (e. g., energia nuclear, desarmamento).

Para alem destas RS gerais, baseadas em grupos, introduzo a no,ao importante de 'modelos (situacionais)' (Johnson-Laird 1983; van Dijk 1987c; van Dijk e Kintsch 100

1983). Recentemente, estes modelos mentais rem desempenhado um papel vital na psicolinguistica e na psicologia do processamento do texto. Enquanto que as RS socialmente partilhadas estiio localizadas na mem6ria social, os modelos, repre­ senta,;oes cognitivas de experiencias pessoais e interpreta,oes, incluindo conhecimento pessoal e opinioes, estiio localizados na mem6ria epis6dica. Os modelos representam as interpreta96es que os indivlduos fazem de outras pessoas, de eventos espedficos e de ac,oes, e constituern essencialmente a contraparte cognitiva das situa,;iies. Quando as pessoas observam um.a cena ou acc;ao, ou 1fem ou ouvem sobre tais eventos, el.as constroem um modelo unico dessa situa910 ou actualizam um modelo antigo. Os modelos, entiio, constituem tambem a base referencial de categorias bem conhecidas como Localiza,;ao (tempo e local), Circunstancias, Partidpantes e Evento/Ac,;ao, cada uma das quais possivelmente acompanhada por um modificador avaliativo (Argyle et al. 1981; Browne Fraser 1979). Nao e surpreendente que estas categorias tambem apam;am na semantica das frases e do discurso, simplesmente porque siio essas as expressiies que usualmente descrevem as situa�oes. Vemos que a teoria cognitiva do modelo oferece o elo de liga�iio que faltava entre estruturas cognitivas, estruturas situacionais e estruturas do discurso.

Os modelos silo cruciais para o quadro te6rico deste capitulo. Eles formam a in" terface entre RS gerais, por um !ado, e os usos individuais dessas RS na percep.ilo social, na interac�ao e no discurso) por outro. A interpretac;Uo de cenas sociais, mas

tambem o planeamento do discurso ou da inrerac,ao, siio baseados em modelos. Os modelos pessoais explicam a varia,;i!o individual na aplica,i!o do conhecimento geral e das aritudes. Os indivfduos podem ter opiniiies pessoais divergentes das opi­ niiies gerais do seu grupo, por exemplo, por causa das suas experiencias pessoais. Por outro lado, os modelos constituem a base do conhecimento geral e de outras RS. Arraves de processos de generaliza,iio e de descontextualiza<;iio os (conjuntos de) modelos podem ser transformados em guiiies (scripts) e atitudes. Para a minha discussiio, torna-se especialmente relevante notar que os modelos desempenham um papel central, ao nivel comunkativo interpessoal, na reprodu,ao-baseada-no­ -grupo das RS atraves do discurso. Para a psicologia social em geral, a imrodu,ao da no,ao de modelos resolve muitos problemas classicos da interface emre dimensiles individuais e sociais da cogni,ao e da inrerac,iio, como o do famoso elo de liga,;iio 'atitude-comportamento' (Cushman e McPhee 1981).

Um tipo especial de modelo da situa,;ao refere-se a representa,;iio epis6dica que os

participantes na fala (speech) fazem da situa,iio comunicativa em curso. Este 'mo­

delo contextual' apresenta conhecimenro e opinioes sobre o ego (actual), o outro parricipante na fala, as finalidades da inreraci;iio e as dimensoes sociais importantes

da situa,;ao em curso (e.g., 'ensinar na sala de aulas', 'falar com o cbefe', 'consultar

o medico'). Assim, os modelos contextuais couduzem a fala, guiam estrategias de forma,iio das impressoes e traduzcm, de uma forma global, as normas e regras sociais

gerais em constrangimentos especfficos do discurso. De novo, vemos como podemos

ligar as cogni,iles sociais i!s estruturas do discurso atraves de modelos.

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