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Conceitos basicos de ideologia

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A teoria da ideologia que serve de base a esta nossa ancllise difere, em muitos aspectos,

das habituais abordagens filos6ficas e sociol6gicas que caracterizam as centenas de livros e os milhares de artigos sobre ideologia, publicados a partir do momento em que, no seculo XVIII, Destutt de Tracy apresentou pela primeira vez o conceito (ver estudos e analises anteriores: Centre for Contemporary Cultural Studies 1978; Eagleton 1991; Larrain 1979; Rosenberg 1988; Thompson 1984, 1990).

Nao

e

necess:lrio (nem oportuno) que, no presente artigo, se proceda a reconstitui­

<;iio desta evolu,iio hist6rica e da investiga<;iio do conceito de ideologia no decurso

dos Ultimos dois sf:culos, nem a revisao das diversas abordagens contemporaneas daquela que

e,

talvez, a no�ao te6rica mais dllbia no campo das cifncias sociais e humanas. E embora seja, em termos de um projecto de investiga�ao, uma presun�ao pretender come�ar de raiz, face a um tao elevado nllmero de tentativas anteriores, o nosso projecto visa elaborar - sob uma perspectiva multidisciplinar, sociocognitiva

e discursiva - o primeiro esbo,o de um modelo conceptual um pouco mais explicito

e te6rico.

A critica principal que nos merecem as anteriores defini�6es e abordagens nao ea de serem incorrectas ou de n:io estudarem dimens6es importantes das ideologias, mas o facto de, na sua maior parte, terem sido formuladas com base numa terminologia filos6fica ou sociol6gica bastante imprecisa. Acresce que, raramente, foram clarifi­ cadas quest6es importantes, como a das estruturas internas concretas das ideologias ou as rela�6es pormenorizadas entre ideologia, discurso e outras pr:lticas sociais. E 6bvio que este artigo n:io consegue, por si s6, abordar as iniimeras e complexas quest6es associadas a uma teoria da ideologia. Concentrar-nos-emos, portanto, em determinados aspectos cruciais, deixando outros para futura investiga�:io.

Podemos resumir a nossa abordagem espedfica da ideologia - em parte por oposi,iio a outras abordagens - evidenciando as seguintes hip6teses:

a) As ideologias sao cognitivas

Embora as ideologias sejam, evidentemente, sociais e politicas e estejam relacionadas com grupos e estruturas societais (ver mais adiante), possuem tambem uma dimensao cognitiva crucial. Em termos intuitivos, incorporam objectos mentais, tais coma ideias, pensamentos, cren,;as, apreciar;Oes e va­ lores. Ou seja, um dos elementos da sua definic;ao leva a crer que se trata de sistemas de crenc;as (Iyengar e McGuire 1993, Lau e Sears 1986). Exige-se a uma teoria correcta da ideologia que produza resultados a partir da ciencia cognitiva, devendo deixar de lado conceitos tradicionais vagos coma "falsa consciencia". Por outro !ado, sublinhamos tambem que definir ideologias enquanto sistemas de cren,;as e demasiado inexacto: as ideologias deveriam, pelo contri:1.rio, ser concebidas coma a base abstracta, "axiom:itica", dos sis­ temas de crenc;as que os grupos partilham em sociedade. Isto significa ainda que o facto de definirmos ideologias (tambem) em termos cognitivos nao quer dizer que estas sejam cognir;Oes individuais. Pelo contr.irio, embora os actores sociais individuais, na qualidade de membros de um grupo, as utilizem ou apliquem, siio representac;6es sociais por eles partilhadas.

b) As ideologias sao sociais

Desde Marx e Engels, pelo menos, que as ideologias tern vindo a ser definidas simultaneamente em termos sociol6gicos, socioecon6micos sendo, frequente­ mente, relacionadas com grupos, posi<;6es de grupo e conflitos ou interesses de grupo (tais coma lutas de classe, sexo ou "ra<;a") e, por conseguinte, com o poder e domina<;iio sociais, hem como com a sua dissimulac;ao e legitima<;iio. O facto de as ideologias se limitarem apenas a relac;oes de dominac;iio e uma hip6tese controversa, mas, na nossa opini:io, trata-se, em grande medida, de uma questao de escolha e de definic;ao e niio de uma propriedade essencial inerente a um conceito util de ideologia. Ou seja, ideologias dominantes - no sentido restrito de ideologias de um grupo dominante ou impostas por um grupo dominante - sao casos particulares, nao sendo pr6prios a todas as ideologias (cf. estudos de Abercrombie et al. 1980, 1990). Partimos, entao, do principio de que nao apenas os grupos dominantes mas tambem os grupos dominados possuem ideologias que controlam a sua auto-identificac;ao, os sens objectivos e as suas ac<;Oes. 0 mesmo se aplica a outros grupos sociais, coma

o dos profissionais (jornalistas, professores universitclrios), activistas (contra

o racismo ou o aborto, ambientalistas, etc.) ou organiza<;Oes e institui<;5es

(burocraticas, policiais).

c) As ideologias sao sociocognitivas

A funcionar coma elo de liga<;ao entre o cognitivo e o social, temos a dimensao importante relativa aos sistemas de cren1ras sociais, tais coma conhecimentos, opiniOes e atitudes, o que equivale a dizer que as ideologias se caracterizam essencialmente pelo facto de serem partilhadas (ou contestadas) pelos mem-

bros de grupos sociais. Tai como niio ha urna linguagem "privada", tambem niio ha, de acordo com a nossa defini<;iio, ideologias pessoais. A no<;iio de "senso comum " - que desde Gramsci tern vindo a ser associada a aceita,iio politica e social <las ideologias (Hal! et al. 1978b) e desenvolvida, teoricamente, atraves de aniilises etnometodol6gicas daquilo que os membros sociais tomam por adquirido e inquestionavel (Sharrocke Anderson 1991) e um exemplo tipico de uma nos:ao revestida, ao mesrno tempo, de dimensOes cognitivas e sociais. A semelhan<;a das (gramaticas, normas e regras das) linguas naturais, as ideo­ logias siio simultaneamente cognitivas - pois implicam principios basicos de conhecimento social, aprecia,;iio, compreensiio e percep,;iio- e sociais- porque siio parrilhadas por membros de grupos ou institui,oes e estao relacionadas com os interesses socioecon6micos ou politicos Jestes grupos. Sao "mode)os conceptuais interpretativos" comuns a toda a sociedade que proporcionam, aos membros dos grupos, a compreensiio da realidade social, <las praticas quotidianas e das rela,;oes com outros grupos (Button 1991). Nesta medida, as ideologias controlam igualmente as nossas vivencias quotidianas (Althusser 1971 ). Embora o que acabamos de afirmar se aplique ao couhecimento so· ciocultural e a outras cren,;as, as ideologias silo aqui, todavia, definidas, em termos menos abrangentes, como sistemas ma.is especfficos nos quais se ba­ seiam essas representa�Oes s:ociais e os processos mentais partilhados. d) As ideologias nao siio "verdadeiras" ou "falsas"

Nao definimos as ideologias, como acontece por vezes nas abordagens tra­ dicionais, em termos de verdade ou falsidade (cf. estudos de Eagleton 1991, Larrain 1979, Manheim 1976). lsto niio impede, par exemplo, a existencia de "falsas" crern;as por parte dos racistas em rela,iio aos negros ou dos ma· chistas em rela,;iio as mulheres. Tambem niio significa que niio haja cren,as "verdadeiras'� por parte das feministas relativamente ao dominio masculino, ou dos ambientalistas acerca da poluic;ao, se tivermos em conta padroes epistemol6gicos especificos (cientHicos ou outros) e criterios de conhecimento e de verdade (Kornblitb 1994). No entanto, estes mesmos exemplos apontam para o facto de as ideologias nao serem, em geral, especificamente "verda­ deiras" ou "falsas". Representam, pelo contr8rio, a ''verdade", po�sivelmente preconceituosa, de um grupo social, uma verdade que serve as seus pr6prios fins. Nesse aspecto, siio modelos de interpretac;ao ( e de acc;ao) mais ou me nos relevances ou efica,.es para esses grupos conforme forem capazes de favorecer os seus interesses.

e) As ideologias podem rer varios graus de complexidade

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As ideologias tal como aqui as definimos niio precisam de ser sistemas de crenc;as perfeitamente acabados e explidtos. Por outro lado, embora, de acordo com pesquisas levadas a cabo neste dominio, nem todas as pessoas tenham ideologias politicas muito explicitas, elas podem ter ideologias mais

pormenorizadas acerca de outros assuntos sociais relevantes para o grupo.

Estas ideologias viio do grau mais simples ao mais complexo e siio constituidas par algumas proposic;oes basicas au par modelos conceptuais abrangentes,

como as ideologias da "democracia" ou do "socialismo". Na realidade, contrariamente ao uso corrente, oral e escrito, do termo "ideologia", as

ideologias niio se limitam aos grandes "ismos" (Skidmore 1993). Deveriam,

pelo contrc:lrio, ser encaradas coma (os axiomas bc:lsicos de) uma teoria so­

cial, implfcita e simplista, formulada par um grupo acerca de si mesmo e da posic;iio que ocupa na sociedade. Modelos conceptuais ideol6gicos coma este

nao necessitam de ser muito rigorosos, hem organizados ou coerentes. Podem ser diffceis de entender, vagos, confusos e contradit6rios, desde que se reve­ lem operacionais (e razoavelmente eficientes) para orientar a interpretac;;ao e interacc;ao sociais. Esta variedade pode tambem estar relacionada com a

estratificac;iio social e com as regras sociais, de tal forma que os Hderes - as

elites ou os que possuem um mais elevado nfvel de estudos - e, em geral, os "ide6logos" de um grupo podem ser detentores de sistemas ideol6gicos mais

complexos e sofisticados (cf. estudos de Billig 1991; Converse 1964; Laue Sears 1986; Seliger 1976, Tetlock 1984, 1989, 1991, 1993).

f) As ideologias tern manifestac;oes que variam de acordo com o contexto

As expressoes ideol6gicas de membros de grupos parecem frequentemente

inexistentes vagas, confusas, contradit6rias ou incoerentes, o que nao implica que as ideologias sejam, em si mesmas, contradit6rias, ou que nao existam.

As variac;oes pessoais e contextuais do discurso e da acc;iio ideol6gicos podem dever-se, par exemplo: ( 1) ao facto de as pessoas pertencerem a varios grupos, ou com eles se identificarem, podendo assim partilhar ideologias e valores diversificados e contradit6rios entre si (Tetlock 1993); (2) a normas ou leis

sociais gerais (por exemplo, contra a discrimina�ao) que refreiam acc;Oes "li­

vres" com fundamentos ideol6gicos; (3) a restric;oes contextuais (finalidades,

cortesia, gestao da aparencia, etc.); e (4) a experiencias pessoais, biografia,

motivac;ao, emoc;oes, dilemas (Billig 1988) au prindpios de cada membro

da sociedade. Em suma, antes que as ideologias bc:lsicas se "expressem" nas prc:lticas sociais, muitos outros factores sociais, sociocognitivos e pessoais podem intervir para influenciar essa express:io. Isto significa igualmente que as ideologias nao s:io deterministas: e possfvel que influenciem, orientem ou controlem o discurso e a acc;ao sociais, mas n:io os "provocam" nem "de­

terminam" e tambem n:io sao os Unicos sistemas mentais que controlam a

produc;iio e compreensiio do discurso.

g) As ideologias siio gerais e abstractas

Sob uma perspectiva etnometodol6gica, a variabilidade contextual (<las ma­ nifestac;oes) da ideologia pode contribuir para provar que as ideologias siio

"produzidas localmente" e que a concep�:io de um sistema geral e abstracto

niio

e

pertinente nem necessaria {Button 1991). A nossa teoria propoe uma abordagem alternativa, i. e., que as ideologias, vistas desse modo (ou seja, como sistemas abstractos), nao dependem de qualquer situa<;ao e que apenas as suas expressoes susceptiveis de varia<;ii.o siio produzidas iocalmente e restritas em termos contextuais. A principal razao te6rica que justifica a nossa proposta

ea

seguinte: se nao partissemos do pressuposto de que os sistemas ideol6gicos

silo relativamente est:iveis e continuos, seriamos incapazes de explicar por

que e que os membros da sociedade siio tantas vezes constantes e similares nas suas expressiies ideol6gicas. Nao siio descri,6es estritamente locais, si­

tuacionais ou contextuais que conseguem explicar que, entre o discurso e a ac,ao de muitos membros de grupos, haja semelham;as independentes de um contexto. 0 mesmo se aplica ao conhecimento sociocultural que define aquilo que

e

dado como adquirido no discurso e na interac,;iio. A aceita,ao deste conhecimento independente de um contexto comum a toda a sociedade implica a formula,;ao de um postulado semelhante no que diz respeito as ideologias que controlam opiniiies e aprecia,;oes. Por exemplo, os membros de grupos

rninorit.irios sao, na sua maior parte, capazes de reconhecer procedimentos racistas quando com elcs siio confrontadosJ sendo, por conseguinte, capazes de inferir e comparar, independentemente dos contextos, ideologias racistas basicas que presidem a varias formas de discrimina,;iio. De igual modo, o seu pr6prio conhecimento do racismo basear-se-a em ideologias anti-raoistas, das qua is fazem pa rte integrante, por exemplo, axiomas gerais acerca da igualdade

de diferentes grupos "raciais" (Essed 1991).

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