Assim sendo, o homem vê-se limitado e essa limitação coloca em choque sua própria
existência. Em busca de si mesmo projeta sua impotência “num outro”, no divino. Nasce daí o
culto, a religião como expressão do culto. Muitas vezes o homem parece ter mais facilidade
de definir o divino do que definir a si mesmo. Pode-se dizer que a definição do divino retrata
suas limitações. Coloca no divino suas carências. Falando do “Sagrado”, Rudolf Otto diz da
necessidade, até mesmo como algo “essencial”, que se defina a
“Divindade com clareza, caracterizando-o com atributos como espírito, razão, vontade, intenção, boa vontade, onipotência, unidade da essência, consciência e similares, e que ela portanto seja pensada como correspondendo aos aspecto pessoal-racional, como o ser humano o percebe em si próprio de forma limitada e inibida (OTTO – 2014, p. 33).
Como definir a divindade quando não temos ainda capacidade de nos auto definirmos.
Qualquer tentativa de uma definição do “sagrado” acabará sendo limitada, pois estará limitada
à nossa experiência que por sua vez também é limitada. Segundo Krauss e Heinrich (2007,
p.42), “diz-se que Deus o quis “à nossa imagem, com nossa semelhança”. Essa é a
pressuposição para o fato de o ser humano ser capaz de intimidade com Deus”. Está presente
o “Imago Dei”, ou “retrato”: o termo ainda denota que o homem traz em si algo de divino”. O
humano une-se ao divino. Ou diria ainda, o humano tem desejo de um divino. São Paulo
Apóstolo dizia no Aerópago: “Fez que buscassem a Deus e o encontrassem, ainda que às
apalpadelas. Pois não está longe de nenhum de nós, já que nele vivemos, nos movemos e
existimos, como disse um de vossos poetas: Pois somos de sua raça”. Essa é a pretensão
humana. Nos conforta saber que pertencemos à divindade. Para Krauss e Küchler (2007, p.
42), “frequentemente, encontra-se até mesmo a concepção de que a figura humana teria sido
formada de acordo com a dos deuses “.
Para Schleiermacher, interpretado por Otto (2014, p. 41), a partir de uma análise de
uma fala de Abraão, pode--se pensar ainda o quanto o homem tem um “sentimento confesso
de dependência de Deus”: Tomei a liberdade de falar contigo, eu que sou poeira e cinza (Cf.
Gn 18,27). Em outras palavras significa dizer que vai ser “o sentimento do humano (criatura),
um reflexo da numinosa sensação de ser objeto na autopersepção”. Um texto bíblico que
expressa bem essa realidade ainda está em Gênesis 33, 18-23. Esse trecho pode ser
identificado como “A glória do Senhor”. Um belíssimo diálogo de Moisés com Deus.
Então ele pediu: -Mostra-me teu glória. Ele respondeu: -Eu farei passar diante de ti toda a minha riqueza e pronunciarei diante de ti o nome do “Senhor”, porque me compadeço de quem eu quero e favoreço a quem eu quero; mas não podes ver o meu rosto, porque ninguém pode vê-lo e continuar vivendo. E acrescentou: - Aí, junto à rocha, tens um lugar onde ficar; quando minha glória passar, eu te colocarei numa fenda da rocha e te cobrirei com a palma da mão, até que tenha passado, e quando retirar a mão poderás ver minhas costas, mas não verás o meu rosto (Cf. Gn 33, 18-23).
Nesse diálogo está claro o quanto Deus é “luz inacessível”, como pode ser visto em I
Timóteo 6,16. Algo que o humano não pode possuir e mesmo ainda, não pode definir. Diria
ainda M. Merleau-Ponty (2005, p. 48), “a consciência moral (isto é o ser humano) morre em
contato com o Absoluto”. O homem não suportaria estar em contato com uma perfeição já
realizada. Uma vez contemplado sua face aqui nesse mundo, não conseguiria mais viver. O
conhecimento que o humano tem do divino, por mais que seja uma experiência profunda
como o foi a de Moisés, mesmo assim ainda será limitado. Assim Otto (2014, p. 44) o defini
de “Mysterium Tremendum”. Em outras palavras, o divino é “arrepiante” e “avassalador”.
Segundo Crisóstomo apud Otto (2014, p. 44), “enquanto totalmente outro, o mirum, aquilo
que foge ao nosso entendimento na medida em que transcende [nossas] categorias”. Ele é o
“incompreensível e inconcebível, o akatalepton”. Assim sendo, o “numinoso”.
Diante desse Mysterium Tremendum o homem vai por muitas vezes encantar-se e
desencarta-se. Em PUCRS (1980, p. 15), temos uma frase de Max Scheler que diz: “há uma
lei essencial: todo o espírito finito crê ou em Deus ou em um ídolo”. Essa definição é feita a
partir de um conceito cristão, pois em outra visão religiosa esse “Deus” também pode ser
visto como um ídolo. Essa mesma ideia ainda pode ser reforçada em Dostoiwski apud
PUCRS (1980, p. 15), quando afirma que “o homem se inclina sempre: se não ante Deus, ante
um dos ídolos que se criaram no Ocidente, que deixou de ser cristão: ante a força, ante o
Estado, ante a raça, ante o capital. E quão mortais são estes deuses”.
O fato de que os povos, por diferentes que sejam suas condições de existência e apesar de todos os entrechoques com o entumecimento eclesiástico da religião, não a tenham abandonado, mas que tenham surgido novas religiões em lugar das velhas, ou religiões renovadas junto às envelhecidas; o fato que, depois de épocas de dissolução do livre pensamento, indiferença amarradora, ou desfiguração supersticiosa, cada vez as autenticas forças religiosas se tenham despertado com mais viva energia e tenham fascinado os homens, este fato da experiência da história dos povos torna evidente que as forças elementares da natureza humana, aqui ativas, são indestrutíveis (HELLPACH apud PUCRS - 1980, pp. 15-16).
Nas palavras de Willy Hellpach (1877-1955), psicólogo da religião, pode-se assim
dizer que o que se muda é o objeto do encantamento. Ou seja, está na alma do humano a
necessidade de um contato com algo superior como forma de reconhecimento da criatura.
Diante do Mysterium o humano tem a necessidade de fazer seu louvor. O fenômeno dos
novos movimentos é expressão de um reencantamento. No fundo foi uma desilusão, mas o
sentido nunca foi perdido.
O salmista faz uma pergunta: “- que é o homem, que dele te lembres e o filho do
homem, que o visites? Fizeste-o, no entanto, por um pouco, menor do que Deus e de glória e
de honra o coroaste” (Cf. Sl 85-6). Essa é a pergunta que ainda carece de resposta para o
século XXI. Diante disso poderíamos nos perguntar como ficam o homem e a mulher diante
da criação, sendo eles imagem e semelhança do Criador? Quais as consequências disso?
Conforme Adolphe Gesché (2005, p. 45), “o ser humano está em busca de sua identidade:
quem sou eu? Não lhe basta existir, ele quer saber quem é, senão não se compreende e não
encontra o sentido de sua existência”. O homem em construção precisa definir sua identidade.
E por isso também busca definir a identidade de Deus. Existe um texto bíblico em que relata o
encontro de Moisés com a divindade diante da “Sarça Ardente”. Acontece a teofania no seu
verdadeiro sentido, mas mesmo assim Moisés não ficou satisfeito enquanto essa divindade
não lhe revelou sua identidade. Moisés, para seguir sua missão de libertar o Povo de Israel da
escravidão do Egito precisou ter certeza de quem o estava enviando. “Se os filhos de Israel me
perguntarem qual é (teu) nome, que lhes responderei?” (Cf. Ex 3,13). Moisés quer saber o
nome da divindade. Busca por uma identidade. Ainda segundo Gesché (2005, p. 49),
“ninguém se constrói nem se compreende só diante de si próprio, na solidão. Precisamos ser
arrancados, chamados, interpelados. Não somente para saber quem somos (existência), mas o
que somos (identidade) e isso gera autonomia e diálogo”. “E vós, quem dizeis que eu sou?”
(Cf. Mt 16,15).
Conforme os autores Francisco Catão e Magno Vilela (1994, p. 20), desde as origens,
o ser humano sempre se colocou a questão do sentido da vida, em todas as épocas, sociedades,
economias e culturas. Em outras palavras, o ser humano se distingue progressivamente dos
grupos de animais e primatas na medida em que associa a questão do sentido ao ato de viver e
sobreviver. Tanto a “sociedade” como o “sentido” são igualmente primordiais para o homem
de hoje. O homem encontra sua razão de ser no convívio com o outro e na busca de sua
identidade.
Jung tem um conceito bastante importante chamado de processo de “individuação”.
Segundo Agostinho apud Antonio M. Gomes e Carlos A. C. Barbosa (2012, p. 126), “não foi
criado por Jung”, mas ele o levou muito em consideração. Esse termo vem da filosofia
misturado à alquimia. Tem o significado de “um processo de construção e particularização do
ser individual que se distingue do grupo, do conjunto e da psicologia coletiva. É um processo
de diferenciação que tem como escopo o desenvolvimento superior da pessoa”. É um
processo que exige coragem e ao mesmo tempo provoca dor. Um processo doloroso e ao
mesmo tempo solitário. Segundo Santo Agostinho apud Gomes e Barbosa (2012, p. 129),
“solitário porque, com a individuação, a pessoa vai se tornar o que ela é de fato e não o que os
outros pensam”. Passando por esse processo o indivíduo necessariamente entre em um
processo de consciência de si e da realidade que o cerca.
Quem compreende o valor supremo da consciência, compreende o mito junguiano.
Para que aja uma consciência religiosa faz-se necessário uma verdadeira consciência
individual. Caso contrário o indivíduo pode correr sérios riscos numa experiência religiosa
alienada. A busca pelo Sagrado pode ficar truncada e não se chegar a uma verdadeira
experiência religiosa. Pode-se ainda seguir um grupo por seguir e a experiência do sagrado ser
uma mera imitação. Por isso nos serve pensar quantos indivíduos fazem uma experiência da
religião com bases no outro. Buscando o sentido da existência e o sentido do religioso, pode
ajudar a compreensão do processo de individuação, bem especificado em Lawrence W. Jaffe:
1) - Individuação é o processo permanente e contínuo de tornar-se indivíduo consciente. O objetivo da vida humana, segundo Jung, é servir a Deus através do desenvolvimento da consciência. 2) – Cada indivíduo precisa descobrir o lugar que, por bem ou por mal, está destinado a ocupar neste mundo, segundo sua natureza. É um processo doloroso de tentativas e erros. 3) – Individuação é a encarnação contínua de Deus para o propósito da transformação divina (JAFFE – 2002, p. 27).