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Como Lidar com o Espectro do Mercado que Ronda o Terceiro Setor?

2 Revisão Bibliográfica

1.1 Gestão do Terceiro Setor: início e fim da promessa

2.1.6 Como Lidar com o Espectro do Mercado que Ronda o Terceiro Setor?

sobre o Terceiro Setor, que teve como ápice de confirmação a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito em setembro de 2007.

A CPI evidenciou falha na execução de projetos financiados por recursos públicos e também o comércio de compra e venda de qualificações para acesso de renúncias fiscais. Isso gerou um movimento por transparência e aprofundou as discussões por profissionalização das ONG. O aumento de controle para responder aos novos requerimentos por parte dos órgãos públicos, no entanto, é o que se está chamando de profissionalização nos artigos sobre o assunto.

Do lado de quem defende uma nova gestão para o Terceiro Setor, possivelmente o termo “profissionalização do Terceiro Setor” seria tratado com mais cuidados para que não represente transposição acrítica de práticas e métodos típicos do mundo empresarial (CARVALHO, 1999) ou apenas aumento dos mecanismos de controle. No entanto, até o momento, a profissionalização é um termo que tem sido utilizado para representar a racionalidade instrumental da gestão estratégica que ronda o Terceiro Setor.

2.1.6 Como Lidar com o Espectro do Mercado que Ronda o

Terceiro Setor?

Esta seção tem por objetivo apresentar um contraponto à racionalidade instrumental que está sendo chamada para o Terceiro Setor. Baseada no livro de Tenório (2004) ‘Um Espectro Ronda o Terceiro Setor: o Espectro do Mercado’, nesta parte da revisão

de literatura apresentarei uma análise interpretativa da Gestão Social como uma opção teórica que se contrapõe à Gestão Estratégica, típica do mercado.

Neste sentido é importante ressaltar que não estarei apresentando todas as discussões do autor contidas no livro – mas apenas aquelas que respondem aos objetivos da seção.

ITEM GESTÃO ESTRATÉGICA GESTÃO SOCIAL

Agentes Econômicos Sociais

Ação Estratégica Comunicativa

Papel da linguagem Transmissão de informações Interação Social Mediador Relações Troca de Bens Cidadania Relações Sociais Estratégicas Democráticas Fato Social Dado Processo Histórico Ordem Social Estática / Ratificada Dinâmica / Contraditória Racionalidade Instrumental Intersubjetiva

Cidadania Participativa Deliberativa

Objetivo Final Lucro Bem Comum da Sociedade

Visão Dependência Emancipação

Quadro 1 – Gestão Estratégica Versus Gestão Social

Fonte: Própria, por adaptação de Tenório (2004)

A Gestão Social, da forma como está sendo discutida na atualidade, no âmbito das ações governamentais na implantação de políticas públicas, está impregnada com elementos da gestão estratégica (típica do segundo setor). Para tentar reenquadrar este entendimento a partir dos conceitos que o forjaram inicialmente, Tenório (2004) oferece bases conceituais de uma Gestão Social a partir do ponto de vista do cidadão – não apenas o eleitor, mas o sujeito que exerce seus direitos em favor da pessoa humana e da coletividade.

O referencial teórico que oferece os elementos epistemológicos do conceito de Gestão Social apresentado por Tenório (2004) é o confronto da Escola de Frankfurt entre teoria crítica e tradicional e os principais conceitos da Teoria da Ação Comunicativa do filósofo Jügen Habermas.

Os frankfurtianos compreendem a teoria tradicional como o pensamento positivista “onisciente, que procura estabelecer princípios gerais, enfatizar o empirismo e a verificação e identificar proposições gerais para submetê-las a prova” (TENÓRIO, 2004, p. 15). Os fatos sociais, na visão tradicional, são coisas passíveis de delimitação e quantificação e cabe ao pesquisador realizá-lo bem para que possa ser observado sem influências externas. Nesta visão, os fatos sociais não estão passíveis de mudança – isto sequer é uma preocupação do pensamento positivista aplicado à análise dos fatos sociais.

A teoria crítica, para a Escola de Frankfurt, investiga as interconexões dos fenômenos sociais dentro do contexto histórico da sociedade. Portanto, ela tem foco de atenção na ação humana, no conteúdo cognitivo dos fatos sociais, sem os reificar. Esse foco na ação humana atinge até mesmo o pesquisador que, segundo a teoria crítica, é uma das interconexões do fenômeno estudado. Devido ao entendimento das interconexões, os teóricos críticos entendem os fenômenos sociais como dinâmicos e passíveis de mudança.

Diante dessas características, Tenório (2004) considera inadequado o uso da teoria tradicional como lente para análise da vida social. Primeiro por não ser capaz de entender as conexões de um fenômeno social complexo; segundo por que tende a ordem social, ao “quietismo político” (TENÓRIO, 2004, p. 18) e, enfim, por estar relacionada à dominação tecnológica estacionada no mundo contemporâneo.

Sob o pano de fundo da teoria crítica, Habermas desenvolve seus estudos clamando uma razão não-instrumental, uma razão que não seja produto de uma ação estratégica (voltada apenas a alcançar resultados). Esta nova razão, comunicativa, seria alcançada via consenso por meio de uma ação voltada para o entendimento, coerente com a busca de um conhecimento reflexivo, de fenômenos sócio-político-econômicos e dinâmicos.

“O objetivo de Habermas é, portanto, desenvolver uma teoria (…) permita uma práxis social voltada para um conhecimento reflexivo e uma práxis política que questione as estruturas sócio-política-econômicas existentes” (TENÓRIO, 2004, p. 20)

O conceito de racionalidade comunicativa foi elaborado por Habermas a partir do entendimento de que a linguagem, e não apenas o trabalho, evolui no curso da história. Portanto, a racionalização da sociedade via trabalho é problemática, tento em vista que sua perspectiva de evolução é apenas técnica e não prática.

A função da linguagem na construção do mundo é destaque no conceito de racionalidade comunicativa. Isso só foi possível quando o status da linguagem se elevou de instrumento de comunicação para meio de entendimento da prática. A guinada lingüística iniciou de forma abstrata na semântica (estudo da evolução do sentido das palavras através do tempo e do espaço) e na semiótica (ciência da linguagem que opera com a articulação dos signos verbais e não-verbais, com os diversos sistemas de sinais, de linguagem e suas relações), mas um novo entendimento mostrou que “expressões lingüísticas identificam-se a si mesmas por que estão estruturadas de forma auto-referencial e comentam o sentido de aplicação do conteúdo nela expresso.” (HABERMAS, 2002)

Apesar da linguagem ser um sistema de regras fixos, há espaço para a criatividade do falante. A intenção do falante, muitas vezes, pode afastar a linguagem dos seus padrões fixos (por exemplo, a ironia); isso só pode ser resolvido pela comunicação voltada para o entendimento, que torna possível, de uma vez só, a individualização e a socialização. A intersubjetividade do entendimento é porosa e só pode obter consenso no momento do acordo (HABERMAS, 2002).

Neste sentido, o conceito de ação social de Habermas se desenvolve a partir de cinco tipologias de ação: teleológica, estratégica, normativa, dramatúrgica e comunicativa. “Elas podem ocorrer simultaneamente entre diferentes atores nos seus distintos níveis de decisão e execução” (TENÓRIO, 2004, p. 23).

Na ação teleológica o autor age por meio de alternativas de decisão que visam a realização de um propósito, um objetivo. A ação estratégica ocorre quando a ação teleológica intervém no comportamento de pelo menos um dos indivíduos envolvidos; os agentes se relacionam vendo-se como canais (abertos ou fechados) para realização de seu objetivo e por isso calculam de forma utilitarista os meios e fins de sua ação visando a maximização do seu objetivo (ou expectativa de objetivo). A ação normativa é quando o agente é influenciado por normas e valores compartilhados/acordados pelo grupo onde a ação é realizada. A ação dramatúrgica ocorre quando o agente visa à projeção de uma imagem perante o grupo. Por fim, a ação comunicativa é uma interação de dois atores visando ao entendimento para coordenar seus planos de ação.

Habermas (2002) aponta quais condições um agir comunicativo tem que cumprir para que seja assim considerado: 1º) os atores devem expor claramente seus planos de ação de forma cooperativa, compartilhar o mundo da vida assim como ter uma mesma base de interpretação; 2º) a forma como os atores (falante e ouvinte) utilizam a linguagem deve ser favorável ao entendimento, o que significa que 3º) entendem mutuamente a ação pretendida; 4º) tomam em consideração os dissensos, 5º) negociam definições conceituais sobre o tema (reconhecem a pretensão de validade de forma subjetiva) e 6º) tem condição de resgatar essa pretensão. Em resumo, o agir comunicativo antevê um acordo obtido na comunicação.

O contraponto do agir comunicativo é o estratégico – Habermas na grande extensão de sua literatura opta por contrapor apenas os dois tipos de agir (e não mais os cinco) já que no entendimento sintético dos mesmos, o conceito de ação estratégica é uma ampliação do conceito de ação teleológica, normativa e dramatúrgica.

A antinomia de ação comunicativa e ação estratégica dão origem ao conceito de Gestão Estratégica e Gestão Social.

A Gestão Estratégica é uma ação utilitarista, funcionalista e não voltada para o entendimento, mas para alcance de um objetivo por meio do cálculo dos meios e fins. É uma ação em que a interação de dois ou mais atores é influenciada pela autoridade formal de uma perante o outro, “aquela no qual o sistema-empresa determina suas condições de funcionamento e o Estado se impõe sobre a sociedade” (TENÓRIO, 2004, p,23). É valorada de acordo com perdas e ganhos obtidos em uma ação e mescla hierarquia com poder tecno- burocrático, que pressupõe:

a. O Estado e a Sociedade são sistemas técnicos, especializados; b. Os princípios dos sistemas figuram razões instrumentais, técnicas; c. Estas razões são proporcionadas por disciplina setoriais;

d. Para cada problema, existe a melhor forma de resolvê-lo; e. A razão técnica influencia a estrutura político-institucional;

f. A operação do sistema desenvolve-se a partir de um modelo tirado da análise de sistemas;

Nota-se que os pressupostos da tecno-burocracia são forjados a partir da teoria tradicional e, portanto, carregam em si todas as fragilidades da teoria.

A gestão estratégica é monológica – portanto autoritária e incongruente com a idéia de associação livre de indivíduos e de participação do trabalhador. Do outro lado, na gestão estatal, a gestão estratégica é antidemocrática, pois não estimula o exercício pleno da cidadania.

A Gestão Social, em contraponto à Gestão Estratégica, é uma ação comunicativa, voltada para o entendimento, em que a interação de dois ou mais atores é influenciada pelo acordo alcançado comunicativamente por meio de argumentos expostos discursivamente. “A argumentação não é um processo de decisão que acabe em resoluções, mas sim um procedimento de solução de problemas que conduz a convicções” (HABERMAS, 1991, p. 180 apud TENÓRIO, 2004, p,27). É valorada pelo discurso racional travado entre os agentes e os acordos alcançados por meio da avaliação crítica dos argumentos.

O papel e uso da linguagem nos dois tipos de gestão discutidos resumem as distinções epistemológicas existentes e é a principal contribuição de Habermas ao entendimento de ação social: enquanto na ação estratégica a linguagem tem apenas a função de transmitir informações, na gestão social a função da linguagem é de integração social.

Nota-se que os pressupostos da ação comunicativa são forjados a partir da teoria crítica defendida pela Escola de Frankfurt, da qual Habermas é participante. Na gestão privada, a Gestão Social é dialógica – portanto participativa e coerente com a idéia de

associação livre de indivíduos às idéias propostas. Na gestão estatal, a Gestão Social traduz um novo tipo de cidadania, deliberativa, diferente da participativa, conceito importante que será tratado a seguir para complementar o entendimento de Gestão Social proposto por Tenório (2004).

Para entender o conceito de cidadania deliberativa Tenório (2004, p. 28) discute a diferença entre o conceito de democracia a partir da concepção liberal e republicana, debatido também por Habermas. A democracia de acordo com a concepção liberal serve para configurar o Estado de acordo com os interesses da sociedade. Como pressuposto, o Estado se estrutura “(…) em termos de economia de mercado, de relações entre pessoas privadas e do seu trabalho social” (HABERMAS, 1995, p. 39 apud TENÓRIO, 2004, p.28-29). A política (meio pelo qual se reúne a vontade dos cidadãos) tem a função de impor os interesses dos cidadãos frente ao aparato do estado. Na concepção republicana a democracia é um elemento constitutivo da sociedade e a política é o “meio em que os membros de comunidades solidárias, (…), se dão conta de sua dependência recíproca” (HABERMAS, 1995, p. 39 apud TENÓRIO, 2004, p.28-29).

Como resultado dessas concepções diferentes do processo democrático, surge os dois tipos de cidadãos. Na concepção liberal, o cidadão é um sujeito que se relaciona com o estado orientado pelos seus interesses privados, dentro dos limites legais. Na concepção republicana, os cidadãos não apenas se orientam pelo seu interesse privado, mas se orientam pelo bem comum. Habermas (1995) entende que a concepção republicana beira a inocência, ou seja, se apresenta com um idealismo excessivo. Mas, é da análise da conjunção desses conceitos (ideais ou funcionais) que faz Habermas acrescentar às discussões mais um significado de cidadão, a partir do modelo da deliberação e da racionalidade comunicativa.

A cidadania deliberativa é uma compreensão da cidadania baseada na ação comunicativa, voltada para o entendimento; ela se apóia no debate e na forma de argumentação baseada no seu conteúdo normativo e nas pretensões de validade acordadas.

Neste ponto, Tenório (2004) utiliza todos os conceitos apresentados para explicar sua proposta de Gestão Social: ação gerencial voltada para o entendimento, alcançado por meio de um consenso obtido via argumentação, e baseada numa ação política deliberativa, na qual o cidadão participa do procedimento democrático para decidir, em diferentes instâncias e com diferentes papéis, seu destino social.

A aplicação da Gestão Social nas esferas pública e privada teria diferentes subprodutos, mas todos eles são alvos de contestação frente à diferença das racionalidades que predominam o discurso gerencial; o Terceiro Setor, entretanto, pode ser o lócus

privilegiado de aplicação do conceito de Gestão Social, por possuir, em seu pleito fundamental, uma demanda por uma gestão mais social (TENÓRIO, 2004, p. 31).

“A origem destas organizações [Terceiro Setor] foi fundada sob uma possibilidade de coordenação de meios e fins, isto é, de ações sociais nas quais são privilegiados o processo, a maneira de alcançar os objetivos desejados, por meio de relações intersubjetivas no qual o bem comum é o mote central das relações. O desempenho gerencial esperado dessas organizações é o de gestão social ao invés de estratégica a fim de neutralizar as conseqüências não desejadas do mercado.” (TENÓRIO, 2004, p. 32)

Para Tenório (2004) dois fenômenos estão levando as organizações do Terceiro Setor a se voltarem para a gestão estratégica, em vez da gestão social. Primeiro, as organizações do Terceiro Setor têm assumido papéis de entes semi-governamentais, substituindo a ação governamental; diversos motivos levam a isso, mas o principal, para Tenório, é a ação do neoliberalismo na sua ideologia de estado mínimo. Segundo, a falta de recursos financeiros fomenta a competição entre as organizações do Terceiro Setor. Isso tem levado tanto as entidades públicas quanto as privadas a requisitarem das organizações do Terceiro Setor mecanismos gerenciais nos quais se baseia sua racionalidade, na contramão do que seria os principais diferenciais do Terceiro Setor na sociedade, baseados na Gestão Social. Por outro lado, ainda segundo Tenório, cursos e treinamentos têm sido oferecidos sob o tema de Gestão Social, mas cujos conceitos e práticas estão imersos nos conceitos da teoria tradicional, contraditório aos alicerces da Gestão Social.

O fortalecimento da racionalidade instrumental diante as organizações do Terceiro Setor deveria ser combatida em prol de uma Gestão Social no setor, não por ignorar os benefícios dos mecanismos gerenciais do primeiro e segundo setor, mas para não abrir mão da promoção da cidadania deliberativa que tem como sujeito privilegiado o ser humano – ponto que deveria ser comum às organizações privadas com fins públicos. Esta postura deveria estar mais próxima do papel que o Terceiro Setor se diz ter.

“O Terceiro Setor deve ser estudado e planejado numa perspectiva de emancipação do homem e do cidadão, e não sob o enfoque de ‘consumidor’, ‘cliente’, ‘meta’ ou ‘alvo’ a ser atingido” (TENÓRIO, 2004, p.48). Contudo, há um risco eminente do Terceiro Setor se enquadrar na racionalidade instrumental que rege a gestão estratégica.

A pergunta que Tenório (2004) oferece e que ainda não foi respondida, mesmo diante das discussões extensas sobre gestão do Terceiro Setor é: diante da Gestão Social, coerente com os fundamentos de gestação do Terceiro Setor, como conciliar teoria e prática? Para fugir da dicotomia teoria versus prática, o autor explica que a teoria deve ser a lente para

observar a práxis social, de forma que a pergunta se torna “O que, como conhecimento gerencial, estaria faltando para evitar que a administração do Terceiro Setor tenha uma concepção epistemológica que agregue, substantivamente, elementos temáticos não determinados exclusivamente pelo mercado?”.

Tenório (2004) não responde, mas oferece elementos para se fazer a leitura na prática social da gestão das organizações do Terceiro Setor. É com esta lente, da Gestão Social, que será observado a proclamada “adaptação” da Gestão do Terceiro Setor. Mesmo sabendo que o uso dessa expressão muitas vezes se trata de uma racionalidade instrumental disfarçada, não se pode negar que, na prática, é o termo utilizado extensamente pela literatura acadêmica sobre o Terceiro Setor e por isso merece atenção.