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2.5. FUNDAMENTOS JURÍDICO-FILOSÓFICOS DA SUSTENTABILIDADE

2.5.2. DESAFIOS PARA A APLICAÇÃO DAS TEORIAS DE JUSTIÇA INTERGERACIONAL

2.5.2.3. COMO RECONHECER DIREITOS AOS NÃO NASCIDOS?

Trata-se de uma questão central das teorias de justiça intergeracional: se for possível lhes reconhecer um caráter jurídico para além do aspecto filosófico, surgem duas indagações: a possibilidade de reconhecimento de deveres/obrigações das gerações presentes e os correspondentes direitos das gerações futuras105.

Iniciaremos pela corrente que nega a própria existência de uma teoria de justiça intergeracional sob o argumento de que ela precisaria conferir direitos às pessoas e as pessoas futuras não poderiam ser titulares de direitos. Assim, o que seria possível é o reconhecimento de um dever moral em relação àqueles que ainda não nasceram, impondo-se, principalmente, o respeito aos direitos humanos para assegurar o cumprimento dessa obrigação106.

Entre aqueles que reconhecem a justiça intergeracional, destacam-se as propostas dos direitos universais, o reconhecimento de deveres e direitos, um eventual reconhecimento de direitos sem titulares, os deveres sem oposição a direitos e os direitos condicionais (ou futuros).

104 Sobre o necessário equilíbrio entre o défice e o excesso de tutela das gerações futuras, v. CATARINA

SANTOS BOTELHO, A tutela constitucional das gerações futuras: profilaxia ou saudades do

futuro? in Justiça entre gerações: perspectivas interdisciplinares, Jorge Pereira da Silva e Gonçalo de

Almeida Ribeiro (Coord.), Universidade Católica Editora, Coimbra, 2017, p. 211.

105 Cf. BURNS H.WESTON, Climate Change..., p. 380.

106 Cf. WILFRED BECKERMAN, The impossibility of a theory of intergenerational justice..., p. 53 e

A natureza universal dos direitos intergeracionais, no aspecto ecológico, é defendida por EDITH BROWN WEISS para quem não seriam direitos titularizados individualmente, mas sim por um grupo em relação a outras gerações no passado, presente e futuras. Esses direitos existiriam sem considerar o número ou a identidade das pessoas de cada geração107, numa tutela em favor da humanidade.

E para assegurar a sua efetividade, poderia ser atribuída a legitimidade extraordinária a um guardião, ou seja, um terceiro atuaria na sua representação seja para a identificação dos interesses das futuras gerações num dado caso, seja para pleiteá-los frente à autoridade pública competente108. Assim, além de atuar na própria definição de quais seriam esses interesses, a esse terceiro poderia ser atribuída a capacidade para exigir a sua efetivação.

BURNS H. WESTON defende o argumento de que podem existir deveres das pessoas presentes que correspondam a obrigações em relação às futuras gerações, lembrando o exemplo do arrendamento de terras de longos períodos nos EUA, que tem vigência em geral por 99 anos. Nessa espécie de contrato, o proprietário da terra arrenda o terreno a um arrendatário que pode construir edifícios e benfeitorias, usando o terreno por longo período em troca do pagamento de um arrendamento com a obrigação de retornar tudo, ao final, ao proprietário109. Como o período do contrato pode ter vigência muito superior à expectativa de vida dos contratantes, haveria aqui o caso do estabelecimento de direitos em relação àqueles não nascidos.

Pode-se citar também o exemplo da constituição de fundos fiduciários que permite verificar que não é absolutamente incomum no direito o estabelecimento de direitos em favor de pessoas ainda não nascidas.

Uma outra possiblidade partiria do questionamento de uma premissa acerca dos direitos subjetivos: não seria possível a existência de direitos sem sujeito ou, ainda, um dever genérico embora o direito subjetivo ainda não tenha sido constituído110?Será que o direito já

107 Cf. EDITH BROWN WEISS, In Fairness To Future Generations..., p. 24. 108 Cf. EDITH BROWN WEISS, In Fairness To Future Generations..., p. 24.

109 Para esse e outros instrumentos do Common Law apontados pelo autor, v. BURNS H. WESTON, Climate Change..., p. 379.

110 Para um estudo específico sobre o tema, v. ELSA VAZ DE SEQUEIRA, Direitos sem sujeito? in

Justiça entre gerações: perspectivas interdisciplinares, Jorge Pereira da Silva e Gonçalo de Almeida

não tutelaria direitos temporariamente sem sujeito e foram criadas ficções ao longo do tempo para afastar a controvérsia, como o princípio da saisine no direito sucessório, ou a tutela do nascituro111?

A proposta de JORGE PEREIRA DA SILVA parte do reconhecimento de que os direitos fundamentais teriam uma dimensão intergeracional, fluindo continuamente no tempo de uma geração para a outra. Não haveria uma cisão entre gerações, que convivem indistintamente num dado momento112.

Essa componente intergeracional é, então, inserida na teoria dos deveres estatais de proteção113, tratando-se de um direito fundamental numa dimensão objetiva sem uma dimensão subjetiva análoga.

JOSÉ CASALTA NABAIS propõe a existência de deveres em relação à natureza, mas que afirma não se confundiriam com a atribuição de direitos a animais e plantas. Segundo ele, tratar-se-ia de “direitos indirectos para com a humanidade” ou, ainda, às exigências para a manutenção de um ambiente equilibrado necessário a uma vida condigna da espécie humana, nela abrangida tanto a geração atual como também as gerações futuras114. Essa perspectiva de um direito da humanidade é afinada com a atuação da sustentabilidade com o fim de assegurar a existência humana no futuro.

MICHEL PRIEUR, alinhado com a teoria de justiça intergeracional de EDITH BROWN WEISS, afirma que a consagração jurídica da obrigação de considerar nas decisões públicas e privadas os efeitos no longo prazo seria um reconhecimento de direitos das gerações futuras

111 ELSA VAZ DE SEQUEIRA realiza essas ponderações (p. 23), concluindo que "da admissibilidade

jurídica de direitos sem sujeito não resulta, porém, a conclusão de que gerações futuras possam ser titulares de direitos hoje. E isto, por duas razões principais. A primeira, prende-se com a pretensa preexistência do direito relativamente ao sujeito. A segunda, mais difícil de ultrapassar, diz respeito à possibilidade de um direito preexistir ao respectivo objeto" (p. 32), cf. ELSA VAZ DE SEQUEIRA, Direitos sem sujeito?..., p. 23 e 32, respectivamente.

112 Nesse sentido, esclarece que "subjectivamente, os direitos fundamentais fluem de forma contínua

entre gerações, sem rupturas nem descontinuidades, mas numa perspectiva objetiva, eles coexistem no tempo em termos tais que os direitos das gerações futuras interagem hoje mesmo com os direitos da geração presente, cerceando-os no seu alcance material ou nas duas possibilidades de exercício, e vinculando as entidades públicas à sua salvaguarda", cf. JORGE PEREIRA DA SILVA, Ensaio sobre a

protecção constitucional das gerações futuras..., p. 489.

113 Cf. JORGE PEREIRA DA SILVA, Ensaio sobre a protecção constitucional das gerações futuras...,

p. 491.

114 Cf. JOSÉ CASALTA NABAIS,Por uma liberdade com responsabilidade: estudos sobre direitos e deveres fundamentais, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 239.

que podem ser traduzidos como um dever das gerações atuais de proteger o ambiente e preservar o patrimônio comum115.

Por seu turno, os direitos condicionais (ou futuros) são expostos por AXEL GROSSERIES para quem poderiam existir obrigações atuais que assegurem direitos futuros, que seriam condicionais ao surgimento de titulares. Haveria uma espécie de condição suspensiva ao exercício desses direitos, que seria a própria existência das futuras gerações, mas poderia ocorrer no presente uma violação a direitos futuros116.

Expostas diversas proposições para o reconhecimento de um elemento normativo às teorias de justiça intergeracional, uma vez que se conclua acerca de um imperativo ético para a tutela das futuras gerações e que esse deve ter consequências jurídico-normativas com fundamento na teoria de justiça, o direito teria recursos para assegurá-la, fazendo as necessárias adaptações em instrumentos legais disponíveis ou por meio da criação de novas ferramentas.

Pretende-se, assim, avaliar se a sustentabilidade não poderia servir como um elemento a conferir normatividade a um imperativo de justiça entre gerações e como ela operaria em relação à administração pública.