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A SUSTENTABILIDADE COMO UMA NORMA CONSTITUCIONAL: UM PRINCÍPIO OU UMA

A diferenciação das categorias de normas jurídicas é objeto de extensa divergência doutrinária na teoria do direito210211. Não se pretende adentrar nessa controvérsia, o que desbordaria do propósito do presente trabalho, mas devem ser expostas algumas considerações sobre a matéria de modo a permitir averiguar qual a categoria da sustentabilidade como uma norma jurídica.

Inicialmente, cabe estabelecer a premissa de que os dispositivos constitucionais mencionados no tópico precedente são o “texto” constitucional, não se confundindo com uma

210 Para uma exposição detalhada sobre as diversas concepções, v. PAULO BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional, 30ª edição, São Paulo, Malheiros, 2015, p. 276 e ss e HUMBERTO ÁVILA,

Teoria dos Princípios, 5ª edição, revista e ampliada, Malheiros Editores, São Paulo, 2006, p. 35 e ss. 211 Para um desenvolvimento histórico da distinção entre regras e princípios a partir de um depoimento

pessoal tocante, associando-o à sua própria vivência pessoal, v. J.J.GOMES CANOTILHO, Princípios:

"norma" de sustentabilidade. Essa investigação assume a premissa da distinção entre texto (ou enunciado normativo ou projeto normativo) e norma, que surge a partir de uma construção, ou seja, ela é produto do exercício de interpretação e aplicação do texto212. Por consequência, avaliar se a sustentabilidade atua como um princípio ou uma regra não é possível somente em abstrato, a partir do texto constitucional, dependendo da sua interpretação e concretização.

A segunda premissa é a de que é relativamente consensual, atualmente, que regras e princípios são espécies de uma categoria mais ampla de normas jurídicas e que ambos possuem normatividade jurídica, residindo suas diferenças em outros planos213. Assim, a sustentabilidade, seja como princípio, seja como regra, é dotada de conteúdo normativo214.

Acerca da distinção entre as duas categorias, para ROBERT ALEXY, os princípios corresponderiam a normas que determinam que um fim seja concretizado no maior grau possível, constituindo “mandados de otimização” aplicados em graus, considerando as possibilidades fáticas e normativas (que dependem do processo de aplicação). As regras, por sua vez, seriam normas que, a depender de sua validade, podem ser cumpridas ou não, seriam comandos com uma característica de definitividade. Quanto à tensão entre princípios ou entre regras, os princípios entrariam em colisão, enquanto as regras entrariam em conflito num determinado caso215.

Na tradição anglo-saxônica, RONALD DWORKIN, no que tange à sua aplicação, distingue-os afirmando que os princípios têm uma dimensão de peso e as regras são aplicadas

212 Cf. HUMBERTO ÁVILA, Teoria dos Princípios..., p. 30-31.

213 J. J. GOMES CANOTILHO destaca que as teorias de Ronald Dworkin e Robert Alexy com suas

teorias de concretização da constituição e de aplicação constitucional de princípios possuem as seguintes convergências: (i) ambas partem do recorte prévio do tipo de norma constitucional a convocar para solucionar problemas, (ii) aceitam essa visão binária dos tipos normativos (que foi referida no texto), (iii) haverá um processo metodológico diverso caso se trate de uma norma regra ou princípio, as regras se enquadram nos modelos clássicos de interpretação, os princípios dependem de concretização e ponderação, cf. J. J. GOMES CANOTILHO, Princípios: entre a sabedoria e a aprendizagem..., p. 386.

214 Esclarecendo detalhadamente as características de ambas as espécies normativas, v. PAULO OTERO, Legalidade e Administração Pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade, 2ª

reimpressão da edição de maio de 2003, Almedina, Coimbra, 2011, p. 164-168.

215 Cf. ROBERT ALEXY, On the structure of legal principles in Ratio Juris, vol. 13, n.º 3, setembro

num modo de tudo ou nada. A concorrência entre princípios seria solucionada por meio da avaliação dos respectivos pesos216.

Se a hipótese de incidência de uma regra fosse concretizada, ou a regra seria válida e deveria ser aplicada, com a respectiva consequência normativa descrita no texto, ou então seria afastada, seja porque haveria uma exceção à regra ou porque seria inválida. Os princípios, do contrário, se inter-relacionariam por meio de sua dimensão de peso. Numa hipótese de concorrência de mais de um princípio, por meio da ponderação entre os princípios concorrentes, aquele que tivesse maior peso no caso concreto, deveria prevalecer sobre o outro, sem que esse último seja reputado inválido. Enquanto as regras são aplicadas num sistema absoluto de tudo ou nada, os princípios seriam aplicados “de modo gradual, mais ou menos”217.

HUMBERTO ÁVILA critica o critério de que as regras possuiriam uma hipótese e uma consequência, enquanto os princípios indicariam o fundamento a ser utilizado pelo intérprete, ou seja, “as regras possuem um elemento frontalmente descritivo, ao passo que os princípios apenas estabelecem uma diretriz”218.

O autor considera que haveria imprecisão num nível abstrato, pois somente após a interpretação seria possível precisar o grau da relação entre as normas constitucionais analisadas e os fins e valores que elas pretendem atingir, assim, não poder-se-ia afirmar que um dispositivo constitucional contém ou não um princípio ou uma regra previamente a um exercício de interpretação, essa conclusão é construída racionalmente pelo intérprete219: “o qualitativo de princípio ou de regra depende do uso argumentativo e não da estrutura hipotética”220.

216 Cf. RONALD DWORKIN, Taking rights seriously, Harvard University Press, Cambridge,

Massashusetts, 1978, p. 24 e 26.

217 Cf. HUMBERTO ÁVILA, Teoria dos Princípios..., p. 39. 218 Cf. HUMBERTO ÁVILA, Teoria dos Princípios..., p. 40. 219 Cf. HUMBERTO ÁVILA, Teoria dos Princípios..., p. 41. 220 Cf. HUMBERTO ÁVILA, Teoria dos Princípios..., p. 43.

Feitas essas considerações, quanto à presente investigação, adota-se a ideia, menos controvertida, de que princípios são normas que orientam um determinado fim221, que representam um estado ideal de coisas a ser buscado222.

E a sustentabilidade tem essa característica finalística, baseada na justiça e na dignidade humana, possuindo como propósito uma progressiva evolução sustentável visando ao ideal de preservação de opções às gerações futuras e de preservação do ambiente para que a humanidade possa ter uma existência condigna.

Indo além, a sustentabilidade apresenta um fim a ser buscado e dela, num dado caso, poderá ser extraído um dever de adoção do comportamento necessário para ser atingido o fim nela pretendido223.

Por meio da sustentabilidade se pretende a tutela das futuras gerações e a preservação do ambiente. Para tanto, a administração pública, vinculada que está à norma constitucional de sustentabilidade, deverá no seu processo decisório adotar um comportamento que inclua a consideração acerca dos interesses das futuras gerações.

A sustentabilidade tende a se apresentar, portanto, em geral, como uma norma princípio. Ademais, tamanha sua relevância ao lado de outros princípios estruturantes, como justiça, liberdade e democracia, que ela constituiria um verdadeiro “conceito federador” definindo as condições de uma progressiva “evolução sustentada” 224.

Se a sustentabilidade tem as características de um princípio, isso não significa que ela não possa por vezes operar como uma regra, ou que, em outras palavras, o projeto normativo da sustentabilidade pode funcionar como um princípio ou uma regra225.

Caso se decidisse estabelecer um limite ao défice do orçamento e à dívida pública, a chamada “regra de ouro” 226, haveria, em tese, uma norma com potencial relação com a

221 “Normas imediatamente finalísticas”, cf. HUMBERTO ÁVILA, Teoria dos Princípios..., p. 78. 222 Cf. LUÍS ROBERTO BARROSO, Curso de Direito Constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, 5ª edição, Saraiva, São Paulo, 2015, p. 241.

223 Afirmando acerca dos princípios em geral e essas duas características, v. HUMBERTO ÁVILA, Teoria dos Princípios..., p. 43.

224 Cf. J.J.GOMES CANOTILHO, Um romance de cultura..., p. 6.

225 Sobre essa possibilidade quanto às normas em geral, v. RONALD DWORKIN, Taking rights seriously..., p. 27.

sustentabilidade econômico-financeira (a depender de posterior interpretação e de sua capacidade para o atingimento desse fim).

Do mesmo modo, a sustentabilidade pode ser positivada no ordenamento como uma regra, como é o caso das contratações públicas sustentáveis, estabelecendo-se um dever do administrador de incorporá-la no sistema de contratações públicas, seja por meio da especificação do objeto, seja por meio de condições que devem ostentar o contratado, como uma acreditação por uma instituição imparcial ou, ainda, imposições quanto ao processo produtivo (ciclo de vida do produto). Há, aí, uma miríade de possibilidades de regras que podem derivar do princípio da sustentabilidade.

Citou-se o exemplo das contratações públicas sustentáveis, pois elas são, provavelmente, a ponta de lança da sustentabilidade no direito administrativo. É por meio dela que a sustentabilidade abriu seu caminho na Administração, seja no procedimento de contratação pelo administrador, seja acarretando a alteração de parâmetros utilizados para o seu controle externo – de uma economicidade simples para uma “economicidade sustentável”.

E isso leva a uma indagação. Considerando que as regras, normalmente, têm maior dificuldade de serem afastadas num dado caso – pois são oriundas de um enunciado normativo o qual, em geral, indica sua consequência normativa de modo mais claro, precisando ser excepcionadas ou consideradas inválidas –, será que não seria interessante que a sustentabilidade seja cada vez mais objeto de normas regra?

É que, como os demais princípios, ela fica sujeita à aplicação por meio da ponderação e pode ser indevidamente restringida a depender dos interesses envolvidos. Assim, para assegurar a sua concretização e ampliar a efetividade da sustentabilidade, ela poderia ser positivada por meio de normas regra com maior frequência, como também ocorreu, no plano internacional, com as regras sobre o combate às alterações climáticas no Acordo de Paris.

Também tem relação com a classe normativa assumida pela sustentabilidade num determinado caso a indagação sobre se ela não atuaria por meio de zonas de influência ao

226 Acerca do tema, v. MARCO CALDEIRA, A consagração da denominada <regra de ouro> no ordenamento jurídico português in Direito & Política, n.º 3, abril-junho de 2013, Paulo Otero (Dir.),

invés de linearmente, como seria intuitivo, detendo maior vinculatividade em algumas situações, em especial quando veiculada por regras jurídicas.

Como se percebe, dentro de uma norma geral da sustentabilidade, estão contidas múltiplas possibilidades de sua operação em concreto, o que denota a necessidade da investigação acerca de suas dimensões operacionalizadoras, o que ocorrerá no capítulo 5.

Aguardar-se-á, contudo, o momento oportuno para retomar esses pontos, passando-se à relação da sustentabilidade com os direitos fundamentais.