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3.6. A RELAÇÃO DA SUSTENTABILIDADE COM OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

3.6.2. A PRÓPRIA SUSTENTABILIDADE COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL?

3.6.2.2. REQUISITOS DE UM DIREITO FUNDAMENTAL

São adotados nessa investigação os elementos geralmente reconhecidos para a caracterização de um direito subjetivo fundamental: fundamentalidade, individualidade e universalidade244.

Quanto à característica da fundamentalidade desses direitos, no sentido de que neles estejam representadas “decisões fundamentais sobre a estrutura do Estado e da sociedade, de modo especial no que diz com a posição nestes ocupada pela pessoa humana”245, a sustentabilidade ostenta esse requisito.

Ela atua como uma força motriz na promoção da dignidade humana das futuras gerações ao ter como objetivo assegurar a disponibilidade mínima de um suporte material e ambiental que permita que as pessoas no futuro possam viver condignamente, sendo, portanto, dotada de fundamentalidade.

244 "Essa figura representa posições jurídicas subjetivas individuais, universais e fundamentais", cf.

JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de

1976, 3ª edição, 2006, p. 120.

245 Cf. INGO WOLFGANG SARLET,A eficácia dos Direitos Fundamentais, 9ª edição, rev., atual. e

A universalidade tem relação com a generalidade de direitos que não constituem privilégio de alguns poucos, mas constituindo direitos de igualdade, são extensíveis a todos pela condição humana que ostentam, sendo, também permanentes246.

A sustentabilidade constituiria um direito universal, extensível a todos, não apenas aos integrantes das gerações futuras, como também aos próprios integrantes das gerações presentes que também tem o direito a que se considere o futuro em favor de seus descendentes.

Avançando nesses requisitos, chega-se à crucial questão da subjetividade. A dificuldade aqui decorre da titularidade em relação a posições subjetivas, já que a sustentabilidade tutela o futuro. De modo mais direto, haveria um direito fundamental à sustentabilidade de quem? Das gerações futuras? De pessoas no presente?

Essa discussão acerca da possibilidade do reconhecimento de um direito fundamental à sustentabilidade em favor de gerações vindouras tem relação com o ponto já abordado acerca da dificuldade de se atribuir direitos às pessoas não nascidas por ocasião da análise das teorias de justiça intergeracional (cf. tópico 2.5.2.3).

No entanto, será que a sustentabilidade, pela sua natureza, não poderia pôr em questão, de certo modo, esse próprio requisito? A humanidade vive um tempo de profundas alterações no qual se atingiu a possibilidade de que a intervenção humana na natureza coloque em risco sua própria existência e as demais espécies no planeta.

Numa situação tão grave, será que faria sentido conferir um grau de proteção menor a toda humanidade do que aquele conferido a uma pessoa? Em outras palavras, poder-se-ia negar à humanidade a titularidade de um direito que somente poderia ser exercido por cada pessoa individualmente? Será que a sustentabilidade não teria ocasionado uma ruptura desse paradigma, habilitando que se possa afirmar a existência de um direito fundamental das gerações futuras?

Esse direito fundamental poderia ser operacionalizado pela solução já aventada da criação de um órgão responsável por identificar e assegurar que os interesses das futuras gerações sejam considerados.

De outro ângulo, mantendo-se o requisito, talvez haja aqui a possibilidade de uma mudança na própria premissa de quem seriam os titulares desses direitos. Uma alternativa residiria no conceito ficcional de “futuras gerações”247, que tanto gera controvérsia, por se afirmar que não poderiam ser titulares de direitos por ainda não existirem, por não se saber quais são seus interesses, entre tantas outras questões mencionadas.

O desmonte dessa categoria, que sequer é objeto de uma conceituação unívoca, poderia ser interessante. Existem inúmeras pessoas vivas hoje que provavelmente estarão presentes no futuro. Assim, seria o caso de avaliar se esses titulares não poderiam ser os integrantes das “futuras” gerações já nascidos248 e que poderiam ser titulares de direitos, ainda que por meio de seus representantes legais, conforme o caso249.

Poderia ser reconhecido um direito fundamental à sustentabilidade às pessoas vivas hoje, ou seja, haveria uma modificação no elemento subjetivo do direito fundamental. Como dito acerca da responsabilidade e o futuro, é no período mais curto de tempo, de poucas décadas, que parece estar mais vocacionada a sustentabilidade.

É nesse horizonte menos largo em que haveria menor probabilidade de erro nos juízos de prognose que a Administração deve realizar para atuar de modo sustentável – o mesmo poder-se-ia dizer das decisões do legislador ou do juiz.

Problemas de sustentabilidade não surgirão somente daqui a centenas de anos ou milênios, o endividamento excessivo dos Estados nacionais, o desequilíbrio dos sistemas de seguridade social e sérias questões ambientais não terão consequências negativas apenas num futuro longínquo, elas se apresentarão muito mais rápido - alguns, inclusive, já se apresentam. Um jovem que ingressa no mercado de trabalho hoje poderia antever que a se manter uma gestão insustentável da seguridade social, ele não poderá passar à inatividade em condições dignas em quarenta anos, minimamente proporcionais à sua contribuição para o sistema.

247 O reconhecimento de direitos fundamentais às pessoas coletivas foi uma atenuação do requisito da

individualidade também por meio do recurso a uma ficção jurídica. Sobre a questão, v. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais, p. 124 e ss.

248 Cf. BURNS H.WESTON, Climate Change and Intergenerational Justice..., p. 383. Considerando

os conflitos entre pessoas vivas uma questão de sustentabilidade geracional, restringindo a sustentabilidade intergeracional àqueles não nascidos, v. J.J. GOMES CANOTILHO, Um romance de

cultura..., p. 6.

Assim, reconhecer um direito fundamental à sustentabilidade de pessoas vivas hoje, integrantes de gerações - que se presume estarão vivas num futuro próximo -, permitiria vencer o obstáculo da necessidade de subjetivação, um dos requisitos dos direitos fundamentais como acima tratado, atingindo o objetivo de assegurar a essas pessoas determinados direitos e criando para o Poder Público deveres correspondentes.

Para exemplificar o ponto, às pessoas hoje seria reconhecido um direito fundamental à sustentabilidade que lhes asseguraria o direito de exigir da administração pública que atue de modo sustentável, assegurando que seja considerado o futuro em suas decisões. A omissão da administração nesse sentido250, ou seja, o descumprimento de seu dever autorizaria - no limite - o controle do ato visando à sua invalidação, eis que praticado em desacordo com a sustentabilidade e as consequências daí decorrentes.

Considerando que a sustentabilidade tem relação com a própria manutenção da humanidade e da sobrevivência de todos os seres humanos de hoje e os do futuro, de modo condigno, com recursos naturais, culturais e materiais para uma existência autônoma e produtiva, essas pessoas vivas, hoje, poderiam ser titulares de um direito fundamental à sustentabilidade.

Sobre dificuldades quanto ao seu exercício em razão da multiplicidade de titulares (um caráter difuso), a exemplo de outros direitos que não podem ser exercidos diretamente pelos respectivos titulares, poderia ser atribuída capacidade processual a um legitimado extraordinário, que poderia agir exigindo do Estado o cumprimento dos deveres que lhe são correlatos.

Ademais, a considerar ao lado do aspecto subjetivo, um viés objetivo dos direitos fundamentais, considerando sua relevância para um indivíduo e para a coletividade, respectivamente251, ao lado da dimensão subjetiva do direito fundamental à sustentabilidade, além de um aspecto pessoal de tutela de cada pessoa individualmente (em favor não apenas de si, mas também de outras pessoas do presente e do futuro), haveria também uma dimensão objetiva (comunitária) reforçada da sustentabilidade.

250 Para PAULO OTERO, se a administração não proceder à ponderação sobre os impactos de sua ações

no futuro, haveria uma violação do princípio da sustentabilidade por omissão, cf. PAULO OTERO,

Direito do Procedimento Administrativo..., p. 262.

Se é possível a construção acima desenvolvida acerca de uma dimensão subjetiva da sustentabilidade como um direito fundamental, de outro ângulo, parece ser numa perspectiva comunitária que a sustentabilidade operaria de modo mais fluido. O direito fundamental à sustentabilidade atuaria criando deveres para o Estado de atuação tendo por consideração o futuro, em prol de toda a humanidade, também num horizonte temporal mais alargado.

Como visto acima, os desafios decorrentes das profundas mudanças na realidade exigirão a imposição de um novo paradigma sustentável, que exige um esforço de adequação às fundações jurídicas existentes252.

Não se defende aqui uma subversão dos institutos jurídicos, mas são apresentadas algumas provocações para que possam ser considerados novos caminhos rumo a uma evolução sustentável.