• Nenhum resultado encontrado

3.4. SUSTENTABILIDADE: CREDENCIAIS NORMATIVAS

3.4.3. NO PLANO NACIONAL

Estabelecido um conceito de sustentabilidade e após a investigação de seu conteúdo normativo tanto sob a ótica internacional, quanto em relação ao Direito Europeu, cabe avaliar na perspectiva nacional se ela teria assento na ordem jurídica interna e qual a posição que ocupa no sistema jurídico.

Antes, contudo, é preciso salientar que as normas internacionais ingressam no ordenamento jurídico português por força do artigo 8.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, que adota a lógica monista. As normas e os princípios gerais do direito internacional ingressam automaticamente, enquanto os tratados e normas convencionais ratificados são recepcionados na ordem constitucional interna a partir de sua publicação no Diário Oficial enquanto tiverem vigência internacional (Cf. artigo 8.º, n.º 2 da CRP)192.

Quanto ao Direito Europeu, as disposições dos tratados que regem a União Europeia são aplicáveis na ordem interna por força do artigo 8.º, n.º 4, da CRP, fundamentando a eficácia das normas da União no ordenamento português193.

Assim, os tratados e convenções internacionais e os tratados da União Europeia ratificados pela União e/ou por Portugal são parte do seu ordenamento jurídico, já permeado, portanto, pela sustentabilidade.

191 Cf. J.J.GOMES CANOTILHO, O princípio da sustentabilidade…, p. 10. 192 Cf. CARLA AMADO GOMES, Introdução ao Estudo do Ambiente..., p. 99. 193 Cf. MARIA LUÍSA DUARTE, Direito Internacional Público..., p. 316-317.

Especificamente quanto ao direito constitucional interno, é preciso investigar se a sustentabilidade teria o conjunto de credenciais necessárias para sua transição a uma norma jurídica no ordenamento constitucional194?

Apesar de não ser objeto de menção expressa na Constituição da República Portuguesa195, existem fundamentos que autorizam o seu reconhecimento implícito no diploma constitucional196.

Em relação ao ambiente, o artigo 66.º, 2 "d" da CRP estabelece que compete ao Estado assegurar o direito ao ambiente no “quadro de um desenvolvimento sustentável”, impondo a obrigatoriedade do respeito ao “princípio da solidariedade entre gerações” que deve orientar o “aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade ecológica”.

Ao consagrar um princípio da solidariedade entre gerações, fundado na ideia de justiça intergeracional197, a tutela intergeracional do ambiente é assumida como um dever do Estado Português, reconhecendo-se um assento constitucional para a responsabilidade em relação às gerações futuras198.

A partir desse fundamento da responsabilidade em relação ao futuro, verifica-se a sua transição de um dever ético para se consagrar também como um dever jurídico199.

A limitação ao aproveitamento dos recursos naturais em razão da capacidade de regeneração da natureza e a estabilidade ecológica é uma materialização da sustentabilidade

194 Afirmando a solidariedade intergeracional como um imperativo ético, v. CARLA AMADO GOMES, Risco e modificação do acto autorizativo..., p. 107.

195 Considerando a consagração do princípio da sustentabilidade de modo expresso, v. J. J. GOMES

CANOTILHO, O princípio da sustentabilidade…, p. 7.

196 Sobre o juízo de inferência na formulação de um princípio constitucional implícito, v. PEDRO

MUNIZ LOPES, Princípio da Boa fé e Decisão Administrativa, Almedina, Lisboa, 2011, p. 54 e ss.

197 Cf. J.J.GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada,

Volume 1, 1ª edição brasileira, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 4ª edição portuguesa revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 849.

198 Nesse sentido, v J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada..., p. 850 e JOÃO CARLOS LOUREIRO, Autonomia do Direito..., p. 42.

199 Defendendo uma responsabilidade jurídica em relação ao futuro preventiva e universal, v.

CATHERINE THIBIERGE, Avenir de la responsabilité, responsabilité de l´avenir in Recueil Dalloz,

ecológica, eis que ao estabelecer a limitação visando à preservação da qualidade ambiental, a

norma constitucional busca efetivar sua tutela para o futuro.

A CRP, contudo, não se limita ao pilar ambiental da sustentabilidade. No que se refere às dimensões econômica e social, o artigo 81º, “a” prevê como incumbência prioritária do Estado promover “o aumento do bem-estar social e econômico e da qualidade de vida das pessoas, em especial das mais desfavorecidas, no quadro de uma estratégia de desenvolvimento sustentável".

Desse modo, em que pese à ausência de referência explícita à sustentabilidade no texto constitucional português, a partir das disposições citadas200, conjugando-se a noção irmã de desenvolvimento sustentável à solidariedade intergeracional e aos princípios de justiça e dignidade humana, com o reforço da regulamentação internacional e europeia, é possível reconhecer uma norma constitucional implícita da sustentabilidade201.

À luz dessa fundação constitucional, integrando o bloco de constitucionalidade, a sustentabilidade não se caracterizaria unicamente como um dever ético, constituindo também uma norma jurídica constitucional, isto é, um “modelo de ordenação juridicamente vinculante, positivado na Constituição e orientado para uma concretização material”202.

Robustece os argumentos expostos a recente revisão do Código dos Contratos Públicos - CCP visando à transposição do regime das Contratações Públicas Sustentáveis203 acerca das contratações públicas, por meio da edição do Decreto-Lei n.º 111-B/2017 de 31 de agosto, que promoveu uma série de alterações no CCP.

200 Incluindo outras referências normativas da CRP relacionadas à proteção do ambiente e ao direito

fundamental do ambiente que habilitariam, v. J. J. GOMES CANOTILHO, O princípio da

sustentabilidade…, p. 7.

201 Reconhecendo princípios constitucionais implícitos como parte integrante do “bloco de

constitucionalidade”, v. J.J.GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição (11ª reimpressão), Almedina, Coimbra, 2003, p. 920-921.

202 Cf. J.J.GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional..., p. 1202.

203 As chamadas Diretivas de 2014: Diretiva n.º 2014/23/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho,

de 26 de fevereiro, relativa à adjudicação de contratos de concessão, a Diretiva n.º 2014/24/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro, relativa aos contratos públicos, Diretiva n.º 2014/25/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos celebrados pelas entidades que operam nos setores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais e a Diretiva n.º 2014/55/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa à faturação eletrônica nos contratos públicos.

Isso porque uma dessas modificações foi a previsão expressa do princípio da sustentabilidade, dispondo o artigo 1.º-A, n.º 1, incluído no CCP que “na formação e na execução dos contratos públicos devem ser respeitados os princípios gerais decorrentes da Constituição, dos Tratados da União Europeia e do Código do Procedimento Administrativo, em especial (...) o princípio da sustentabilidade (...)”.

Assim, além da positivação do princípio da sustentabilidade em nível infraconstitucional, a alteração legislativa aponta para o seu reconhecimento nos Tratados da União Europeia e no ordenamento constitucional português nos moldes acima defendidos.

Também a Lei de Bases do Ambiente, Lei n.º 19/2014 de 14 de abril, no artigo 3.º, "a" e "b" dispõe como princípios do ambiente, que condicionam a atuação pública, o desenvolvimento sustentável e a responsabilidade intra e intergeracional204.

No Brasil, além do afluxo das normas de direito internacional fruto dos tratados dos quais o país é signatário205, o princípio da sustentabilidade encontra sede na Constituição Brasileira na conjugação do artigo 3º, que prevê os objetivos fundamentais da república, dentre eles, construir uma sociedade justa, livre e solidária, o artigo 170, VI, que elenca a defesa do meio ambiente como um princípio da ordem econômica, e o topos relacionado ao aspecto ambiental, o artigo 225206207. Nesse último, a preocupação intergeracional é expressa, sendo previsto o dever de proteção ambiental inclusive para as gerações futuras.

204 Cf. Artigo 3.º "A atuação pública em matéria de ambiente está subordinada, nomeadamente, aos

seguintes princípios: "a) Do desenvolvimento sustentável, que obriga à satisfação das necessidades do presente sem comprometer as das gerações futuras, para o que concorrem: a preservação de recursos naturais e herança cultural, a capacidade de produção dos ecossistemas a longo prazo, o ordenamento racional e equilibrado do território com vista ao combate às assimetrias regionais, a promoção da coesão territorial, a produção e o consumo sustentáveis de energia, a salvaguarda da biodiversidade, do equilíbrio biológico, do clima e da estabilidade geológica, harmonizando a vida humana e o ambiente; b) Da responsabilidade intra e intergeracional, que obriga à utilização e ao aproveitamento dos recursos naturais e humanos de uma forma racional e equilibrada, a fim de garantir a sua preservação para a presente e futuras gerações; ".

205 Sobre o tema detalhadamente, v. TERESA VILLAC PINHEIRO BARKI, Direito Internacional Ambiental como Fundamento Jurídico para as Licitações Sustentáveis no Brasil in Licitações e

Contratações Públicas Sustentáveis, 1ª reimpressão, Murillo Giordan Santos e Teresa Villac Pinheiro

Barki (Coord.), Editora Fórum, Belo Horizonte, 2011, p. 49 e ss.

206 "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e

essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê- lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações."

207 Citando esses fundamentos na Constituição Brasileira para a sustentabilidade, v. JUAREZ DA

Já na legislação infraconstitucional brasileira, é muito citada a alteração empreendida no artigo 3.º Lei Federal n.º 8.666/1993, a Lei Geral de Licitações, com uma referência à "promoção do desenvolvimento nacional sustentável", sendo esse dispositivo referido pela doutrina como autorizativo das contratações públicas sustentáveis208209 empreendidas pelos diversos entes federativos de acordo com as respectivas regulamentações internas.

Diante do que foi tratado nos tópicos precedentes e do tratamento constitucional e infraconstitucional dispensado à sustentabilidade, é possível concluir que:

1) O ordenamento jurídico português recebe a afluência da sustentabilidade seja do direito internacional, em decorrência dos tratados de que a União Europeia e/ou Portugal são parte, seja por meio do direito europeu;

2) A sustentabilidade não foi objeto de referência expressa na CRP. Há, no entanto, disposições constitucionais, que consagram um princípio de solidariedade intergeracional, fundado em justiça intergeracional, e um dever de tutela do ambiente em prol do futuro, ponto central da sustentabilidade ecológica (artigo 66, 2, “d” da CRP) e a dimensão social do desenvolvimento sustentável (artigo 81, “a” da CRP);

3) Essas previsões aliadas à dignidade humana e justiça pavimentam o caminho para o reconhecimento de uma norma constitucional implícita de sustentabilidade no ordenamento constitucional português;

208 Sobre o tema no Brasil, v. EDUARDO FORTUNATO BIM, Considerações sobre a juridicidade e os limites da licitação sustentável in Licitações e Contratações Públicas Sustentáveis, 1ª reimpressão,

Murillo Giordan Santos e Teresa Villac Pinheiro Barki (Coord.), Editora Fórum, Belo Horizonte, 2011, p. 180 e ss.

209 Além da Lei Federal n.º 8.666/1993, também podem ser citadas as previsões do Estatuto da Cidade

(Lei Federal n.º 10.257/2001) dos artigos 2.º, I, que "garante o direito a cidades sustentáveis" e estipula como uma das diretrizes gerais da política urbana a "adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica (...)"; a Política Nacional sobre Mudança do Clima, Lei Federal n.º 12.187/2009 (artigo 3.º, caput, sobre o desenvolvimento sustentável) e o Estatuto da Metrópole, Lei Federal n.º 13.089/2015 (artigo 6.º, VII, a governança das metrópoles deverá respeitar a busca do desenvolvimento sustentável). Tratando detalhadamente sobre esses fundamentos jurídicos esparsos das contratações sustentáveis no Brasil, que, infelizmente, não contam com um regime nacional unificado, valendo-se de tais previsões e da sua eventual regulamentação por entes públicos, v. FLAVIO AMARAL GARCIA, Licitações e contratos administrativos: casos e polêmicas, 5ª edição, Malheiros Editores, São Paulo, 2018, p. 89 e ss.

4) Foi recentemente positivado na legislação portuguesa o princípio da sustentabilidade por força do Decreto-Lei n.º 111-B/2017 de 31 de agosto, que incluiu no CCP o artigo 1.º-A, n.º 1, prevendo a necessidade de sua observação na formação e execução dos contratos públicos;

5) A alteração legislativa empreendida reforça os argumentos aqui defendidos acerca do reconhecimento da sustentabilidade por força dos Tratados da União e da Constituição Portuguesa;

6) Apesar de não prevista expressamente na Constituição Brasileira, é possível extrair uma norma de sustentabilidade implicitamente da conjugação dos artigos 3.º, artigo 170, VI, e o artigo 225, dispondo o último dispositivo acerca da necessidade de tutela do ambiente inclusive para as futuras gerações, sendo, ainda, o conceito objeto de diversas referências na legislação infraconstitucional brasileira.

Feitas essas considerações, é necessário investigar a natureza da sustentabilidade como uma norma constitucional.

3.5. A SUSTENTABILIDADE COMO UMA NORMA CONSTITUCIONAL: UM PRINCÍPIO OU