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Tendência III: significados tendem a ser gradualmente mais situados nas crenças, estados/atitudes subjetivas do falante em relação à situação.

3.2 TEORIA DA VARIAÇÃO E MUDANÇA

3.2.6 COMUNIDADE DE FALA

A TVM assume que, apesar de heterogêneas em essência, as línguas naturais podem ser observadas com mais homogeneidade em comunidades menores. Surge daí a noção de comunidade de fala, que se fundamenta no compartilhamento de traços comuns, no convívio entre os falantes e nas atitudes dos falantes sobre a língua.

Para Labov, “a comunidade de fala não é definida por nenhuma concordância marcada no uso de elementos linguísticos, mas sim pela participação num conjunto de normas compartilhadas” (LABOV, 2008 [1972], p.150). Nesse sentido, não é na convergência de usos que a noção de comunidade de fala laboviana está pautada, mas na convergência de avaliações sobre os usos e na uniformidade de padrões abstratos de variação.

A noção de comunidade de fala como locus da pesquisa sociolinguística tem sido alvo de críticas. Severo (2007, 2008), por exemplo, questiona a existência de convergência e homogeneidade mesmo em comunidades de fala menores. Para a autora, por trás da noção ampla de Labov de comunidade de fala está a ideia de que o estudo da linguagem pode ser uma realidade uniforme, construída teoricamente, e que o indivíduo pode ser estratificado através de categorias sociais estanques e pré-determinadas, como sexo/gênero, idade, escolaridade, profissão, entre outras categorias vinculadas a classes sociais.

A definição proposta por Gumperz, segundo a qual comunidade de fala consiste em “qualquer agregado humano caracterizado por interações regulares e frequentes, por meio de um corpo compartilhado de signos verbais, e diferenciado de agregados parecidos através de diferenças significativas de uso linguístico” (GUMPERZ, 1972 [1968] apud SEVERO, 2007, p. 4) traduz, segundo Severo (2007), uma visão mais relativizada do que a de Labov. Na perspectiva de Gumperz, Severo destaca que uma banda de música ou uma associação comunitária podem ser comunidades de fala e que aspectos como as interações face a face, as semelhanças linguísticas e a lealdade linguística são acionados para definir a comunidade.

Outro autor citado por Severo (2007) por suas críticas ao conceito de comunidade de fala de Labov é Wardhaugh (2002), que defende uma noção mais flexível e dinâmica de comunidade de fala, relacionada à noção de identidade. Nesse sentido, uma vez que os indivíduos mudam suas identidades, podem também mudar a sua forma de falar e seu status

de pertencimento em relação a determinado grupo, podendo pertencer a diferentes comunidades a depender das circunstâncias.

Acreditamos que o foco em comunidades de prática seja de fato a opção mais acertada. Infelizmente, a amostra de que dispomos para análise não foi pensada para esse fim, mas isso não inviabiliza um olhar mais relativizado e arejado para a comunidade de fala em análise.

Entendido como unidade social e usado na pesquisa sociolinguística como estrutura básica para além do indivíduo, o conceito de comunidade de fala, revisto por Guy (2000), serve para duas tarefas principais: a) explicar a distribuição social das semelhanças e diferenças linguísticas (traços) que ora distinguem e ora aproximam grupos de falantes; b) fornecer justificativa teórica para unir idioletos de falantes individuais (GUY, 2000).

Guy assenta a definição de comunidade de fala na união de três características essenciais:

- características linguísticas compartilhadas; isto é, palavras, sons ou construções gramaticais que são usados na comunidade, mas não o são fora dela.

- densidade de comunicação interna relativamente alta; isto é, as pessoas normalmente falam com mais frequência com outras que estão dentro do grupo do que com aquelas que estão fora dele.

- normas compartilhadas; isto é, atitudes em comum sobre o uso da língua, normas em comum sobre a direção da variação estilística, avaliações sociais em comum sobre variáveis linguísticas (GUY, 2000, p. 18, grifo nosso).

O autor salienta que a definição da comunidade de fala é dada por contraste, pelo uso ou pelo não uso de certos traços linguísticos específicos da comunidade em análise, conferindo ao falante o pertencimento à comunidade ou seu status de intruso. O pesquisador sugere que a explicação das semelhanças e diferenças no uso da língua está nas outras duas características da definição: a) densidade de comunicação e b) normas compartilhadas.

O interessante no modelo de comunidade de fala proposto por Guy é que ele não implica compartilhamento absoluto, ao invés disso, “implica graus de semelhança e diferença linguísticas, bem como distribuições concentradas, cruzadas ou sobrepostas de traços

compartilhados por falantes” (GUY, 2000, p.21). Em comunidades menores o grau de semelhança seria maior, mas quando o objetivo do pesquisador é ampliar o foco para dar conta de comunidades de fala maiores, deve-se ter em mente que será necessário lidar com um certo grau de diferenças185.

Contudo, se decidimos considerar as problemáticas levantadas por Hall (2005) sobre as culturas nacionais como comunidades imaginadas, notaremos que, por mais que procuremos fazer recortes precisos e cada vez menores, a noção de comunidade de fala também é imaginada ou, pelo menos, serve apenas para acomodações metodológicas. Para o autor, as identidades nacionais são construtos imaginários não homogêneos e, em última análise, no mundo pós- moderno em que o sujeito é fragmentado e complexo, todo tipo de tentativa de unificar indivíduos em grupos maiores também será uma invenção, um ato mais burocrático do que natural. Além disso, ainda na esteira do pensamento de Hall, em um mundo globalizado em que as fronteiras são cada vez mais tênues e a mobilidade (real e virtual) é cada vez maior, torna-se mais complexo agrupar indivíduos, já que eles podem estar vivendo esta globalização de forma totalmente distinta: aceitando a massificação cultural (e linguística), reforçando a cultura local (e preservando seus traços originais), ou assumindo uma identidade híbrida (e mesclando seus traços com as influências externas).

Não só temos ciência de toda essa problemática, como também julgamos que é nela que estão assentados alguns dos principais interesses desta tese. Fazemos, portanto, nosso recorte metodológico, tomando para análise a comunidade de fala dos nativos da Barra da Lagoa, mas não vamos tomar esta comunidade como culturalmente ou linguisticamente unificada. Ao invés disso, veremos mais adiante, no capítulo de metodologia, que parte de nossa análise irá explorar as diversas possibilidades de identificação dos indivíduos com a comunidade e como isso interfere no uso dos RADs.

185

Guy (2000) usa a imagem das bonecas russas que são umas encaixadas dentro das outras para ilustrar as várias camadas desde níveis micro (pequenos grupos de falantes que desenvolvem atividades comuns em localidades menores) até níveis macro (nações ou até mesmo comunidades internacionais de falantes) às quais é possível aplicar a noção elástica de comunidade de fala.