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REQUISIÇÃO DE APOIO DISCURSIVO: FORÇAS EM COMPETIÇÃO

F: Assim como Jesus foi perseguido, né? na palavra de Deus ou que ele né? teve uma perseguição hoje em dia eu sou perseguido,

2.1.1 LIDANDO COM A TERMINOLOGIA

Uma decisão inicial a ser tomada quando lidamos com itens de natureza discursiva é definir qual dos vários rótulos já cunhados será usado. O termo marcador discursivo é provavelmente o mais usado, mas a dificuldade está em saber quais os elementos que podem ser classificados sob esse rótulo, pois tudo que está no discurso – dado que

sempre marca, organiza ou sinaliza algo – poderia ser chamado de marcador13, isto é, “qualquer partícula ou expressão que ajuda a arrumar o que se quer dizer” seria um marcador discursivo (MACEDO E SILVA, 1996, p. 13). Sob o guarda-chuva dos MDs têm-se abrigado itens de caráter bastante heterogêneo com funções e classes gramaticais de origem variadas – como conjunções (e, mas), advérbios (agora, assim), verbos (sabe?, olha), interjeições (Oh! Ah! Nossa!), construções e expressões rotinizadas (eu acho que, vamos supor), incluindo até mesmo sons não lexicalizados (humhum, hãhã), entre outros. (SCHIFFRIN, 1987; AIJMER; SIMON-VANDENBERGEN, 2011; RISSO; SILVA; URBANO, 1996, 2006).

A denominação marcador conversacional é ainda mais ampla e tem sido usada por pesquisadores brasileiros (como Marcuschi (1989) e Urbano (1997)) – principalmente por aqueles que trabalham sob a ótica da Análise da Conversação – para designar os elementos que atuam tanto no nível das relações estabelecidas no texto, como no das relações entre o falante e o seu texto e, até mesmo, entre falante e ouvinte, abarcando elementos verbais (marcadores simples como né? e marcadores oracionais como e não sei o quê), prosódicos (como hesitações) e também não-verbais (como olhares, gestos manuais e/ou faciais).

Aijmer e Simon-Vandenbergen (2011) dão preferência ao termo marcador pragmático, principalmente quando os elementos em questão servem para marcar uma força ilocucionária ou têm uma função interacional, como a troca de turno, por exemplo. Ainda nesse caso, há evidente falta de acordo sobre o que incluir nessa classe, em especial quando trata-se de pausas e marcadores de hesitação que nem ao menos sabemos se podemos qualificar como palavras (como uhm, por exemplo).

Para os itens em análise na presente tese, com forte carga interacional, o termo marcador pragmático poderia parecer o mais apropriado, mas optamos pelo termo marcador dircursivo14 por ser

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Nas palavras de Pottier (1962 apud RISSO; SILVA; URBANO, 1996, p. 22), são classificados como MDs todos os elementos discursivos “com os quais não se sabe o que fazer”.

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Muitas vezes, os termos marcador discursivo e marcador conversacional são considerados sinônimos (MACEDO E SILVA, 1996), outras vezes se impõe a eles uma certa hierarquia (RISSO; SILVA; URBANO, 1996). Ao longo deste texto é dada preferência ao termo marcador discursivo, mas os termos

bastante difundido no Brasil e, ao mesmo tempo, porque é o termo usado por Schiffrin que, como veremos nas próximas seções, apresenta a perspectiva para o tratamento dos marcadores que é assumida em nosso trabalho, dando destaque ao papel desses itens na coesão e coerência discursiva e considerando sua multifuncionalidade em diversos planos discursivos.

2.1.2 MULTIFUNCIONALIDADE

Os MDs têm funções diferentes a depender do contexto: Teriam eles então um ou muitos significados? Um dos aspectos da problemática em relação ao significado dos MDs se conecta com a história desses itens. Grande parte deles, além das funções como marcadores, mantém os usos em suas classes gramaticais de origem: por exemplo, o uso frequente como MDs (sabe?,entendesse?, etc.) não faz cessar o uso dos itens como verbos plenos (saber, entender)15. Outro aspecto, que complica ainda mais o quadro, é a característica multifuncionalidade dos MDs que, segundo muitos pesquisadores, se dá prioritariamente em dois planos discursivos: no textual e no interativo.

Considerando os marcadores conversacionais (MCs) como elementos multifuncionais que possuem, simultaneamente, propriedades interacionais (manifestando as atitudes do falante e marcando relações interpessoais) e intratextuais (atuando na estruturação da cadeia linguística), Marcuschi (1989) atribui aos itens desse grupo o papel de conectores pragmáticos, usados pelos interlocutores para organizar suas ações e seus quadros discursivos, operando na ordem sintagmática, segmentando e ligando unidades textuais. Castilho (1989), em estudo sobre as unidades discursivas – entendidas como segmentos textuais constituídos de um núcleo demarcado por marcadores –, também considera que os marcadores em geral são elementos multifuncionais que possuem propriedades pragmáticas, semânticas e sintáticas.

Na mesma direção, Urbano (1997) atribui aos MCs o papel de colaboradores na coesão e coerência do texto falado, funcionando não só

marcador conversacional e marcador pragmático estarão presentes para manter a terminologia que os pesquisadores citados adotam em seus trabalhos.

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Essa primeira distinção funcional que já se impõe pode ser explicada pelo percurso de mudança dos itens e equacionada pelo princípio da divergência de Hopper (1991), que veremos mais adiante na seção 3.1.2.2 do capítulo que apresenta a fundamentação teórica.

como articuladores de unidades cognitivo-informativas, mas também como elementos de interlocução, à medida que marcam e explicitam os aspectos interacionais e pragmáticos da produção do texto.

Em uma perspectiva um pouco distinta das anteriormente citadas, Risso, Silva e Urbano (2006) e Urbano (2006), considerando uma série de traços definidores, tratam os MDs como itens que atuam tanto no estabelecimento de articulações textuais, como no nível das relações interpessoais, divididos em dois subgrupos a depender do maior foco funcional em um ou outro aspecto: os MDs basicamente sequenciadores e os MDs basicamente interacionais. Os autores ressaltam que dentro de cada subconjunto há propriedades tanto textuais quanto interacionais, mas operam com uma noção escalar, propondo que quanto maior o papel articulador do MD, menor seria seu papel interpessoal e vice- versa16.

Cabe ainda mencionar que: Aijmer e Simon Vandenbergen (2011) salientam o papel metapragmático dos marcadores, atuando como comentadores do enunciado e, assim, auxiliando em sua interpretação; Östman (1995 apud AIJMER; SIMON- VANDENBERGEN, 2011) destaca a função de identificação dos marcadores que atuam como “janelas” através das quais é possível fazer deduções sobre as atitudes e opiniões do falante17; e Carranza (2012) ressalta a propriedade dos MDs como marcas de identidade quando associados a certos grupos de falantes18.

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A distinção entre interpessoal e textual tem sido utilizada por Brinton (1996, 2008 apud AIJMER; SIMON-VANDENBERGEN, 2011) para agrupar marcadores pragmáticos em duas classes principais: i) aqueles com função de marcação do discurso ou textual, marcando limites no discurso, sinalizando mudança de tópico, reformulando o texto, etc.; ii) aqueles com função interpessoal, relacionada com a expressão das atitudes do falante.

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Ruhlemann (2007 apud AIJMER; SIMON-VANDENBERGEN, 2011) menciona cinco características parcialmente sobrepostas dos MDs: indicam como o discurso se relaciona com outro discurso; fazem trabalho metalinguístico; são dêiticos e indicam como os enunciados que os contêm se relacionam ao discurso anterior; criam a coerência discursiva; são orientados às necessidades do ouvinte.

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Gupta (2006, apud AIJMER; SIMON-VANDENBERGEN, 2011) também ressalta a propriedade dos MDs como marcadores de grupos, sendo usados de forma estereotipada na ficção e para efeitos humorísticos.

Acreditamos que cada um dos autores citados contribui para o entendimento da multifuncionalidade19 dos marcadores. Contudo, tomamos como base para a presente pesquisa a visão de Schiffrin (2001) por considerarmos que recobre todas as demais. A pesquisadora sugere que, embora tenham funções primárias derivadas de seus valores semânticos originais, os marcadores são essencialmente multifuncionais e atuam em diferentes planos do discurso, ajudando a integrar os muitos processos simultâneos envolvidos na construção discursiva e colaborando para estabelecer a coerência. A autora salienta que:

[...] embora marcadores tenham funções principais [...], seu uso é multifuncional. É esta multifuncionalidade em planos diferentes do discurso que ajuda a integrar os vários processos simultâneos subjacentes à construção do discurso e assim ajuda a criar a coerência20 (SCHIFFRIN, 2001, p. 58, tradução nossa).

Schiffrin (1987) caracteriza os MDs como dêiticos com funções indexicais, ou seja, o que os MDs fazem é apontar (ou refletir) as características do contexto discursivo em seus diversos planos: no plano da estrutura ideacional (relacionando ideias e proposições); no plano da estrutura de ação (a maneira pela qual os atos de fala se relacionam com porções discursivas); no plano da estrutura de troca (envolvendo os mecanismos de troca de turno); no plano do estado de informação (a gestão e organização do conhecimento e do metaconhecimento); e no

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Diante da reconhecida multifuncionalidade dos MDs, Aijmer e Simon- Vandenbergen (2011) sugerem três perspectivas para lidar com esta gama funcional: a) pelo viés da homonímia, o número de marcadores é multiplicado a fim de estabelecer uma relação forma-função; b) em uma abordagem monossêmica cada marcador estaria associado com um único significado abstrato que serviria de base para diferentes significados ou funções contextualmente determinados; c) como resultado de polissemia, os diferentes significados ou funções de um marcador podem ser tratados como extensões de um núcleo (protótipo). As autoras pontuam que a perspectiva polissêmica está frequentemente associada a análises diacrônicas no âmbito da teoria da gramaticalização, incluindo os trabalhos de Traugott e seus colegas.

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“[…] although markers have primary functions […], their use is multifunctional. It is this multifunctionality on different planes of discourse that helps to integrate the many different simultaneous processes underlying the construction of discourse, and thus helps to create coherence.”

plano da participação (envolvendo as relações entre falante e ouvinte)21. Vejamos o seguinte trecho22 retomado do trabalho de 1987:

(5) Jack: [The rabbis preach, [“Don‟t intermarry”

Freda: [But I did- [But I did say those intermarriages that we have in this country are healthy23. (SCHIFFRIN, 2001, p.57) São atribuídas a but atuações em quatro planos discursivos distintos: a) no plano da estrutura ideacional – introduzindo uma ideia (casamentos inter-raciais são saudáveis/positivos); b) no plano da participação – estabelecendo uma relação de desacordo (entre Freda e Jack); c) no plano da estrutura de ação – refutando duramente um argumento; d) no plano da estrutura de troca – abrindo um turno de fala. Em suas considerações mais recentes, Schiffrin (2001) assume que os MDs podem funcionar simultaneamente em quatro domínios ou planos distintos – no cognitivo, no textual, no expressivo e no social24 – em que são requeridas diferentes habilidades comunicativas, como detalhado abaixo:

Domínio cognitivo: habilidade para representar conceitos e ideias através da língua.

Domínio textual: habilidade para organizar formas e transmitir significados dentro de unidades linguísticas maiores do que uma sentença.

Domínio social e expressivo25: capacidade de usar a linguagem para exibir as identidades

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Para Ochs (1996 apud AIJMER; SIMON-VANDENBERGEN, 2011), há ainda outras dimensões crucias: da identidade social (a persona social), do ato social (por exemplo, em pedidos e oferecimentos), da atividade (por exemplo, argumentando) e da postura (afetiva e epistêmica).

22

A tradução dos exemplos em língua estrangeira ilustrados nesta tese é de nossa inteira responsabilidade. Buscamos nos aproximar ao máximo do conteúdo original, mas salientamos que se trata de exemplos que envolvem a oralidade e fogem à norma padrão, sendo muitas vezes de difícil tradução. Em alguns casos contamos com a ajuda de falantes nativos nos auxiliando nessa tarefa.

23“Jack: [Os rabinos pregam [“Não façam casamentos interraciais” Freda: Mas

eu- [Mas eu disse que esses casamentos interraciais que nós temos neste país são salutares.”

24

Schiffrin (2001) cita well, but, oh e y’know como exemplos de expressões linguísticas que atuam nos domínios cognitivo, expressivo, social e textual.

25

pessoais e sociais, para transmitir atitudes e executar ações e negociar relações entre si e os outros (adaptado de SCHIFFRIN, 2001, p. 54). Para a autora, as funções dos marcadores são tão amplas e variadas que toda análise, mesmo com foco em pequenas porções de seus usos, pode dizer algo sobre sua atuação discursiva e colaborar para responder questões fundamentais sobre os MDs, tais como:

Que itens lexicais são utilizados como marcadores discursivos? Palavras com significados comparáveis são utilizadas para funções comparáveis? Qual é a influência da estrutura sintática e do significado semântico sobre o uso dos marcadores? Que efeito as normas culturais, sociais, situacionais e textuais têm sobre a distribuição funcional dos marcadores?26 (SCHIFFRIN, 2001, p. 62).