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Para a TVM, a língua não pode ser concebida desvinculada do contexto social da comunidade de fala em que é usada. Nessa perspectiva, a própria noção de comunidade de fala precisa ser caracterizada a partir de traços relacionados ao fator social. Labov (1972b), portanto, define comunidade de fala com base em dois traços: normas sociais compartilhadas e padrão abstrato de variação. Com relação às normais sociais, os falantes são capazes de atribuir valores positivos ou negativos às normas. É esperada uma atribuição positiva às variantes de prestígio, faladas, de um modo geral, pelo grupo socialmente favorecido na comunidade. Ademais, a norma de prestígio é trabalhada/reforçada no colégio, além de ser preferencialmente usada no trabalho, na mídia, nas situações que exigem um cuidado maior com o

como se fala.

Estando encaixada no contexto social, a língua não poderia deixar de ser heterogênea, o que não a qualifica como desestruturada. Para Weinreich, Labov e Herzog (1968), a variação é inerente à língua e a heterogeneidade linguística é ordenada, sistemática, explicável. Ainda que a língua varie no espaço e mude no tempo, é possível identificar padrões abstratos de variação na comunidade de fala. Esse é o segundo traço que caracteriza a noção de comunidade de fala. De acordo com Labov (1972b), os membros de uma comunidade compartilham um

conjunto de padrões normativos. Ainda que variáveis, é possível identificar regularidades na língua que podem caracterizar o padrão de uma comunidade.

Os dois traços que caracterizam a noção de comunidade de fala nos moldes labovianos podem ser ilustrados a partir do valor social atribuído ao pronome você no Brasil e em Portugal. No Brasil, você é usado entre falantes das regiões Sudeste e Centro-Oeste que tenham o mesmo status social (SCHERRE, 2006). Diferentemente do que ocorre nesse país, em Portugal, o pronome é usado para marcar relações assimétricas, em que um falante de uma posição social mais elevada se dirige a uma pessoa de status social mais baixo. Para esta tese, na medida em que apresentamos e discutimos resultados para o uso variável do presente do subjuntivo, pretendemos contribuir com outros estudos já realizados nas cidades de Florianópolis e de Lages na tentativa da identificação dos padrões dessas comunidades.

Para Guy (2000, p. 18), existem três aspectos que caracterizam a noção de comunidade de fala: “características linguísticas compartilhadas, densidade de comunicação interna relativamente alta e normas compartilhadas”. Com relação à primeira característica, achamos interessante que Guy (2000) apresenta exemplos de comunidades de fala que foram consideradas a priori. Por exemplo, ele cita seu próprio trabalho acerca das diferenças fonológicas entre Nova Iorque e Filadélfia, que, a priori, são consideradas como comunidades de fala, caracterizadas, nesse caso, pela questão geográfica. Como resultado, constatou que o fator ‘pausa seguinte’ favorece o apagamento das oclusivas coronais finais em Nova Iorque, diferentemente do que ocorre na Filadélfia, em que os informantes tendem a manter as oclusivas diante de uma pausa. Para o autor, uma vez que o mesmo grupo de fatores aponte para resultados opostos, pode-se conceber a existência de comunidades distintas.

Outro exemplo apresentado por Guy (2000) refere-se ao uso diferenciado do pronome reto no espanhol de Porto Rico e da Espanha. O terceiro exemplo é de um estudo de Labov sobre o inglês vernacular de negros americanos. Nesse estudo, dois grupos de adolescentes são estudados, tendo como objetivo investigar o apagamento da cópula cujo uso se mostra distinto entre ambos os grupos. O conjunto de indivíduos estudado pode ser caracterizado em termos de comunidade de fala definida pelo critério geográfico, ou, ainda, seguindo o critério de grupos sociais (GUY, 2001). Talvez seja por essa razão que Wardhaugh (2002) refira-se à comunidade de fala como um construto teórico do

pesquisador. Nesta tese, por exemplo, estudamos duas comunidades de fala, Florianópolis e Lages, definidas a partir do critério geográfico (GUY, 2000, 2001) e também histórico. E, de fato, parece ser mesmo um construto teórico na medida em que a comunidade de fala é constituída pelo pesquisador, cabendo-lhe interpretar qualitativamente os resultados estatísticos em busca de evidências para a consideração de comunidades de fala distintas ou semelhantes.

Cabe, portanto, ao pesquisador decidir a extensão de sua comunidade, seja obedecendo ao aspecto geográfico, seguindo o critério dos grupos sociais, ou considerando a densidade da comunicação. É o que Guy (2000, p. 21) denomina “base social e externa” de investigação da comunidade de fala. Um recorte teórico-metodológico se faz necessário. Nesta tese, ao investigarmos dados de Florianópolis e Lages, também partimos, de alguma forma, do critério relativo à densidade do contato, uma vez que é de se esperar que moradores de Florianópolis tenham mais contato com pessoas da mesma cidade se comparado ao contato com Lages, principalmente se considerarmos o isolamento geográfico e a formação histórica de cada uma das cidades, conforme descrito nas subseções seguintes. E essa “falta de contato linguístico entre uma comunidade e outra é o que permite o desenvolvimento de diferenças” (GUY, 2001, p. 4).

Dentre os três aspectos propostos por Guy (2000), anteriormente apresentados e aqui novamente reproduzidos, tratamos, nesta tese, dos dois primeiros:

• características linguísticas compartilhadas: nesta tese, investigamos apenas uma característica – a variação entre o presente do subjuntivo e o presente do indicativo;

• densidade de comunicação interna relativamente alta: acreditamos que o isolamento geográfico em que moradores de Florianópolis e de Lages viveram durante décadas pode constituir um elemento importante na identificação de algum grau de diferença linguística;

• normas compartilhadas: a avaliação subjetiva dos informantes não foi controlada nesta pesquisa, sendo, portanto, temática de investigação futura.

Considerando esses três aspectos, várias comunidades de fala podem ser constituídas. A metáfora das bonecas russas para caracterizar

a comunidade de fala é muito pertinente (GUY, 2000). Da mesma forma que as bonecas podem ser encaixadas umas dentro das outras, os falantes igualmente podem ser encaixados em comunidades de fala cada vez maiores: comunidade de fala referente a um grupo social, comunidade regional, nacional, por exemplo. Guy (2000) ainda fala em subcomunidades, organizadas de acordo com etnia, religião, classe social.

Patrick (2004) acredita que outros fatores são importantes na delimitação da comunidade, como a organização histórica, social, econômica e cultural, aspectos esses tratados, ainda que de forma breve, na apresentação das cidades cujos informantes constituem a amostra de dados. Na pesquisa desta tese, ao privilegiarmos uma análise pancrônica do uso variável do presente do subjuntivo, também assumimos a relevância da constituição e formação das cidades de Florianópolis e de Lages34, resultado de interesses políticos, econômicos e territoriais, na medida em que podem contribuir para um relativo diferencial em pontos específicos do funcionamento gramatical da língua portuguesa (PATRICK, 2004).