• Nenhum resultado encontrado

I Narrativa: Multiplicidade de Conceitos

4. Conceito de Narrativa

Aclarada a pluralidade relativa à contextualização do conceito de narrativa, bem como a alguma da sua tipologia, estamos agora capazes de examinar a diversidade relativa ao seu conceito.

Etimologicamente, a palavra narrativa vem da derivação do termo latino gnarus que está relacionado com o conhecimento. A narrativa seria, assim, o conhecimento contado. As narrativas, quer orais quer escritas, de acontecimentos interligados são comuns à maioria das culturas do mundo (e.g., Berman, 2002; Berman & Slobin, 1994; Miller, Gillam, & Peña, 2001; Slobin, 2004; van Deusen-Phillips, 2001) e desempenham um papel fundamental na preservação da informação e das tradições de uma para outra geração. No contexto da infância e do ciclo de vida, as narrativas são usadas com as crianças e pelas crianças, contêm fins comunicacionais em diversos contextos, desde a família, à escola, aos meios de comunicação, aos livros, incluindo desenhos animados e filmes. Naqueles contextos, onde operam os acontecimentos nos quais ocorre o ato de narrar, não se espera apenas que os indivíduos compreendam as histórias, mas também que as produzam, estando incluídas, nessas produções, a narração das experiências do quotidiano, o reconto de livros ou de histórias e de mensagens previamente ouvidas.

O conceito de narrativa tem sido apresentado ao longo do tempo com definições variadas, umas mais específicas e outras mais amplas. Para que um segmento de linguagem (oral ou escrita) seja considerado narrativa há, então e de acordo com múltiplas conceções de autores e modelos, vários requisitos a observar.

Kaderavek, Gillam, Ukrainetz, Justice e Eisenberg (2004) e Lofranco, Peña e Bedore (2006) dizem que a narrativa, quer na forma de linguagem oral ou da linguagem escrita, é uma importante forma de discurso. Sendo a narrativa uma forma de interação discursiva, iniciaríamos este ponto pela contextualização do conceito de narrativa no discurso, ou nos vários tipos de discurso. «Speakers use different discourse genres when they interact either in

52

oral or written form. For instance, they can produce descriptions, narratives or argumentation within a conversation» (Shiro, 2003, p. 165). Operacionalizando e especificando esta perspetiva temos, na opinião de Peterson (1990), que «Narrative as a type of discourse is a common part of the school day: children are read stories, told about people’s personal experiences, encouraged to write fiction, and so on» (p. 2). A narrativa é, por exemplo, frequentemente usada como discurso argumentativo na comunicação, ou seja, para particularizarmos uma perspetiva usamos histórias que a corroborem. A análise do discurso é um campo da comunicação, pelo que numa perspetiva mais ampla é natural que o texto narrativo seja contextualizado como uma forma de comunicação. Assim, para Costabile e Klein (2008) «Narrative is perhaps our most useful communication strategy (…) Narrative are made to be told» (p. 426). E são contadas na forma de acontecimentos vividos, criados ou recontados a propósito das mais diversas formas situacionais e de eliciação.

Para Peterson e McCabe (1983), narrar envolve pelo menos dois acontecimentos (orações) relacionados e temporalmente distantes. Complementarmente, em Eaton, Collis e Lewis (1999) as proposições daqueles acontecimentos na narrativa são contextualizados e, por isso, têm uma função avaliativa. De modo semelhante, para Abbott (2002) o conceito de narrativa

(…) is the representation of an event or a series of events. “Event” is the key word here, though some people prefer the word “action”. Without an event or an action, you may have a “description”, an “exposition”, an “argument”, a “lyric”, some combination of these or something else altogether, but you won´t have a narrative (p. 13),

ou seja, para que o texto possa ser considerado narrativo tem de apresentar um acontecimento, mesmo que um pequeno acontecimento ou ação. Assim, para o autor (ibidem), parece claro que, sem acontecimento ou cadeia de acontecimentos não há narrativa; sem este desenvolvimento (os acontecimentos), central na narrativa, poderemos ter um texto expositivo, descritivo, argumentativo, mas não narrativo. Assim, há uma ligação determinante da narrativa ao acontecimento ou ação.

53 Verificamos que os conceitos de narrativa apresentados, progridem de noções mais amplas para a forma como as narrativas se organizam internamente, particularmente do ponto de vista estrutural e da forma como essa estrutura se contextualiza junto da audiência: onde, quando, como ocorre, o que ocorre e o juízo ou avaliação dessas ocorrências, como a motivação e função de toda a trama que compõe aqueles componentes. São várias as perspetivas alocadas a um ou outro dos elementos mais específicos acabados de mencionar. Vieira (2001) parece conseguir resumi-las de forma abrangente ao afirmar:

Em primeiro lugar, deve haver uma relação lógico-semântica entre funções e atores para que possa haver uma proposição narrativa. Para que tenhamos um texto narrativo coerente é preciso que os fatos denotados pelas proposições narrativas estejam ligados por uma relação cronológica e lógica. Finalmente, para que haja narrativa é preciso, também, que haja uma transformação entre uma situação ou estado inicial e a situação ou o estado final que funcione como uma conclusão do texto narrativo (p. 601).

Referenciando o conceito anterior aos elementos da estrutura poderíamos subdividi-los em dois domínios: os componentes da história – espaço, informação sobre personagens, relações causais e ordem temporal dos acontecimentos – e a estrutura episódica (a ação propriamente dita) – início do acontecimento, resposta interna, plano, tentativa, consequência e reação / finalização. Ainda numa perspetiva de relacionar estrutura e audiência, se nos centrarmos na perspetiva do leitor, na interação entre o leitor e a obra surge ainda o conceito de narrativa hipertextual17 (Piccini, 2008), processo em

17

Isto ocorre de forma clara no cibertexto e neste sentido o cibertexto seria um texto e algo mais. Aarseth (1997), neste contexto virtual, prefere claramente a designação de “cibertexto” a hipertexto. A partir dos tipos de interatividade indicados por Crawford (2003), as narrativas interativas construídas em ramificações narrativas (branching storytrees) e os jogos construídos a partir de simulação (world simulations) assemelham-se ao conceito de narrativa hipertextual. Em Crawford, se por um lado as narrativas apresentadas em ramificações frustram o jogador, por outro, as simulações raras vezes

54

que a obra pode sofrer transformações a partir de opções, relativas a elementos estruturais, feitas pelo leitor. Seguindo a interatividade anterior, a narrativa será hipertextual quando permitir que o leitor modifique a história narrada. Tomando como emprestada esta noção, arriscaríamos afirmar que toda a narrativa é hipertextual, bastando, para tal, que seja interpelada por alguém, em qualquer uma das suas modalidades.

Revisitando os conceitos de diversos autores, atrás citados, acerca da narrativa, podemos organizá-los por grupos de sentido se os agruparmos por aspetos semanticamente idênticos salientados em cada conceito. Verificamos que surge

i) a referência à narrativa como algo intrínseco, que faz parte do quotidiano das pessoas, quase como forma de reconhecer a sua importância na vida diária;

ii) a referência à organização temporal de acontecimentos passados, dando-se aqui ênfase à temporalidade associada ao (re)conto de acontecimentos que já sucederam;

iii) a organização lógica de acontecimentos, como forma de salientar a disposição e articulação das ações que se interligam umas às outras;

iv) a articulação entre acontecimentos e personagens, uma vez que são estas, os seus pensamentos e sentimentos que impulsionam e justificam o decurso da ação;

v) relacionado com o aspeto anterior está a alusão à contextualização das proposições ou ações, como algo implicado

permitem desenvolver o enredo (plot). Os professores fazem muito este trabalho de reconstrução da narrativa, ou melhor de reconstrução de elementos da sua estrutura (alterar uma personagem, alterar o final da história…), o que está previsto no programa de língua portuguesa do 1º ciclo do ensino básico, como veremos mais adiante no capítulo três.

55 com uma secção de avaliação, considerada crucial por alguns autores e determinante básico do sentido de uma história; por sua vez, o sentido de uma história, representa uma das funções da narrativa, por supor a interpretação e organização da experiência do indivíduo;

vi) a diferença entre o início e o fim da história, como sendo essa a verdadeira natureza de uma história: a transformação de um problema ou de um acontecimento;

vii) a característica desenvolvimental da narrativa, salientando-se neste aspeto o seu caráter de emergência precoce;

viii) finalmente, teríamos as questões linguísticas e culturais como marcas impressas ou intrínsecas às próprias narrativas, como fatores que as influenciam e distinguem.

Observando a trajetória dos conceitos apresentados, e num esforço de síntese, encontramos uma implicação da narrativa à comunicação humana, particularmente associada a uma estratégia de discurso, que se expressa na forma de narração de acontecimentos dispostos numa determinada forma lógica e organizada e que relatam ou subentendem motivações e funções que se agregam a personagens e contextos que localizam a ação e a explicam à audiência, desde o início até à sua conclusão, com processos avaliativos que equipam a trama de uma coerência lógico semântica. Se tivermos em conta todas estas condições torna-se lógico que saber narrar ajuda o ser humano a compreender e dar sentido à sua própria existência, pelo que, sendo a narrativa um recurso de organização pessoal tão importante, é natural que seja universal e atravesse todas as culturas da espécie humana.