• Nenhum resultado encontrado

I Narrativa: Multiplicidade de Conceitos

3. Dimensões do Texto Narrativo

Da diversidade existencial da narrativa pode resultar, quanto à forma de a “olhar”, uma organização em que a mesma diversidade se agrega em cinco dimensões: o processo10, o conteúdo, a coesão, a produtividade e a coerência.

A narrativa, enquanto processo e produto, pode então ser avaliada e analisada sob vários ângulos. Da mesma forma, quando analisamos uma produção narrativa podemos avaliar o seu conteúdo (e.g., o tema, os elementos de natureza semântica), a forma como se constrói do ponto de vista coesivo ou gramatical (e.g., complexidade gramatical), assim como a sua produtividade11 e, finalmente, a estrutura (a forma como se inicia, como se desenvolve e como acaba) ou coerência12. Claro que, apesar de, para fins teóricos, separarmos estes aspetos, sabemos que todos eles estão em interação permanente durante o processo produtivo.

10

O processo narrativo (tal como o conteúdo), não foi alvo do nosso estudo, pois está tendencialmente associado a investigações que concetualizam fenómenos clínicos (psicopatologia e psicoterapia) em termos narrativos. Para Gonçalves, Henriques, Soares e Monteiro, 2002, p. 391), «(…) narrative process include de diversity of sensorial, emotional, cognitive and meaning experiences that are responsible to provide a sense of a story complexity».

11

Note-se, aqui, uma distinção entre produtividade (medida, por exemplo, pelo número de frases, orações, palavras, palavras diferentes, etc.) e fluência narrativa, mencionada nalguns estudos (e.g., Tilstra & McMaster, 2007), e que é medida numa relação entre tempo e produtividade, obtendo-se resultados que nos indicam, por exemplo, o total de palavras (ou orações) por minuto.

12 Neste trabalho, e à semelhança da generalidade dos autores, usamos indistintamente o termo estrutura e coerência. Parafraseando Hudson e Shapiro (1991) «Structural characteristics of narrative are what give narratives coherence, that is, an orderly flow information that makes sense to be listener» (p. 93).

47 Mencione-se, igualmente, que apesar de, em qualquer investigação relacional (a narrativa projetada, que projeta ou que se relaciona com outro fenómeno), ser estudada uma (ou várias) daquelas ramificações organizativas: coerência, coesão, conteúdo13, processo e produtividade, não cabe no âmbito deste trabalho detalhar, sumariar, analisar e reorganizar a informação daí resultante, pelo que nos vamos centrar predominantemente na coesão, produtividade e coerência.

3.1. Coesão Narrativa

A narrativa pode, então, ser olhada do ponto de vista da sua coesão. A coesão surge associada à organização ou articulação explícita, no texto, entre as orações ou proposições (Davies, Bentham, Cartwright, & Wilson, 2003; Hudson & Shapiro, 1991). Neste sentido, são particularmente valorizados os articuladores de discurso ou conectores – conectivos como mas, porque, etc. Uma outra forma de avaliar esta coesão, considerando igualmente os conectores, consiste em classificar as orações (intra frase e/ou interfrase) cuja denominação é estabelecida também pelo conector usado. Podemos, então, dizer que a coesão resulta na forma como os episódios estão ligados, ou como as partes do todo da história se relacionam no que toca aos aspetos linguísticos que envolvem o tipo de frases e/ou o tipo de conectores usados. A coesão refere-se aos recursos linguísticos empregues para articular os elementos da estrutura da história, não só especificamente aos que vão ligando esses mesmos elementos, dando-lhes uma coesão e coerência intrínsecas pela sua interdependência. Em suma, a coesão pode estudar qualquer

13

Uma breve menção à narrativa como podendo ser igualmente analisada ao nível do seu conteúdo. Este tipo de análise também é usado para averiguar a forma como a narrativa se relaciona com outros fenómenos; por outras palavras, a forma como determinado fenómeno (exemplo, a depressão) se projeta no conteúdo de uma narrativa. Nesta forma de análise, pode supor-se, ainda, que um determinado fenómeno pode resultar numa narrativa prototípica desse mesmo fenómeno (e.g., Gonçalves, et al., 2004; Henriques, Machado, Gonçalves, B. & Gonçalves, O. 2002). Gonçalves, Henriques, Soares e Monteiro (2002, p. 391), dizem-nos que «(…) narrative content refers to the way in which the narrative provides a diversity of narrative themes, events, settings and characters, which, altogether, differentiate the level of multiplicity on ones story».

48

fenómeno da complexidade gramatical de um texto narrativo, porque envolve elementos de análise que estão a cargo da gramática normativa.

3.2. Produtividade Narrativa

A dimensão da produtividade de uma história, sendo simples de compreender, não tem surgido na literatura como inequivocamente distinta dos restantes elementos, ou seja, como um domínio autonomamente designado. Tanto quanto sabemos a maioria dos trabalhos associam alguns dos elementos de produtividade às restantes dimensões, essas sim claramente estabelecidas pela literatura. A produtividade torna-se, assim, uma designação que tomamos14 para retratar todo o conjunto de elementos que se referem claramente à quantidade na produção de histórias. E, por quantidade, podemos estar a referirmo-nos às palavras, às orações ou frases ou a determinadas classes morfológicas ou organizadores sintáticos ou lexicais; não admira, então, que estes elementos surjam associados, por um lado, ao conteúdo quando falamos de produtividade associada ao significado e, por outro lado, à coesão quando falamos de regras implicadas na morfologia ou sintaxe.

3.3. Coerência Narrativa

Finalmente, temos a coerência narrativa, que também poderíamos designar de estrutura narrativa, e que se refere à forma como os elementos de uma narrativa se sucedem, ao longo da história, e interagem entre si. Em diversas investigações (citadas ao longo deste trabalho), os diferentes elementos da estrutura narrativa têm sido considerados através de várias combinatórias que, apresentando maior ou menor originalidade, têm derivado de dois padrões ou, se quisermos, de dois modelos predominantes: o modelo de Labov e Waletzky (1967) e os modelos relativos à gramática da história

14 Da vasta pesquisa que fizemos, encontramos frequentemente variáveis associadas à produtividade, mas nunca o uso efetivo desta designação (produtividade); no entanto, depois de já termos assumido este conceito, encontramos a produtividade, claramente designada como tal, apenas num estudo, o de Tilstra e McMaster (2007).

49 (e.g., Mandler, 1978; Stein & Glenn, 1979). Exemplificando, relembremos que, de acordo com Davies, Bentham, Cartwright e Wilson (2003), os modelos de análise da estrutura da história de Merritt e Liles (1987, 1989) e de Stein e Glen (1979) ancoram-se numa perspetiva de gramática da história, à luz da qual a narrativa é composta por um conjunto de episódios, dentro dos quais pode ser identificado um conjunto de proposições, cuja articulação vai tornar a história mais ou menos coerente e mais ou menos completa. Para tal, contribuem não só os conectores de discurso - que estabelecerão a ligação entre os episódios, mas também o número de elementos de cada episódio, que podem ocorrer num total de seis possibilidades de proposições: informação contextual, início do acontecimento, resposta interna, tentativas de resolução da situação, consequências diretas e reação das personagens a essas consequências. Um episódio completo inicia um acontecimento ou revela uma resposta interna da personagem, de modo a formularem-se os objetivos da ação, mostrando-se as consequências dos mesmos.

Dentro das perspetivas que valorizam mais o desenvolvimento dos episódios ou ação, temos também a linguagem avaliativa que é frequentemente estudada (Shiro, 2003) como uma competência em uso nas narrativas pessoais e ficcionais. A linguagem avaliativa é entendida como o uso de expressões relacionadas com emoções, atitudes, crenças e afetos. São elementos não factuais e que convocam a expressividade da história; em suma, poderíamos dizer que a coerência contém aquilo que também se designa por resposta interna (pensamentos e sentimentos) das personagens. Ao contrário da coesão, não se pode considerar a coerência como um aspeto finito, uma vez que a ordenação dos elementos pode ser a mais variada (sobretudo em níveis de desenvolvimento narrativo já consistente) e o mesmo elemento repescado e reintroduzido das mais variadas vezes e formas na história. É, aliás, disso mesmo que se faz a retórica (Abbott, 2002)15 de que um adulto é bem capaz de se apoderar e de - driblando e apetrechando elementos da estrutura - ousar tornar uma história hipotética e estruturalmente irrepetível.

15

O autor, nesta publicação, fala-nos igualmente da perspetiva crítica que um leitor pode tomar enquadrando este fenómeno na “negociação narrativa”.

50

Para concluir, salientamos novamente o contraponto entre as dimensões da narrativa; para tal, revisitemos Bird, Cleave, White, Pike e Helmkay (2008) que propõem a agregação das componentes da narrativa em elementos macro e microestruturais. Os elementos macroestruturais, na perspetiva dos autores, dizem respeito à coerência textual, ou seja, à estrutura da narrativa ou dos episódios. Os elementos microestruturais relacionam-se com o estudo da complexidade de aspetos semânticos e sintáticos e isto faz-se, por exemplo, a partir de um conjunto de medidas como a longitude média do enunciado, o número de orações por t-unit16, a diversidade lexical e o número de palavras. É curioso verificar que estes elementos macro e micro estruturais não esgotam a análise de que pode ser alvo a narrativa, como veremos mais adiante, pois importa integrar aqui a máxima diversidade de olhares e de exploração levados a cabo pelos estudiosos da narrativa.

Será ainda importante referir que, apesar da organização dada a estas dimensões do texto narrativo, parte significativa dos estudos adota formas compostas de análise da narrativa, particularmente do ponto de vista da estrutura, coesão e produtividade. Podemos, então, considerar que a construção de histórias se assume como uma “obra” ou um edifício que se organiza em torno de duas tarefas primordiais: a coerência e a coesão narrativas. Dissemos tarefas, mas, eventualmente, poderíamos ter dito formas de perspetivar e avaliar a narrativa enquanto entidade, que se desenvolve e que se observa (que é olhada) na relação consigo mesma e na relação com variados fenómenos. Ou seja, a narrativa tem sido investigada como produto intrínseco (estrutura/coerência e coesão) ou enquanto fenómeno que se relaciona, projeta e se projeta noutros fenómenos; poderíamos timbrar o que afirmámos dizendo que a narrativa tem sido estudada ali como objeto e aqui como método o que patenteia a sua diversidade concetual.

16

51