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VII – Manuais Escolares: Estudo sobre a Estrutura de Textos Narrativos

191 Os resultados dos estudos levados a cabo, na parte dois, devolveram a importância de melhor compreender o que contribui para a aprendizagem da escrita de textos narrativos dos alunos do 1º ciclo do ensino básico. Neste capítulo, vamos averiguar como se configura a estrutura dos textos narrativos que integram os manuais de língua portuguesa, mais usados no contexto das escolas; por outras palavras, vamos procurar avaliar se os textos narrativos dos manuais se podem qualificar como textos mentores, ou modelos completos, quanto à estrutura da narrativa.

1. Contextualização e Objetivos

Os manuais escolares constituem o universo que proporcionou os documentos alvo de análise nesta investigação. Thompson (1995) fala-nos de quatro tipos de análise, usadas nas ciências sociais, que podem ser adaptadas à análise dos manuais escolares. No seu entender «Aplicar esse tipo de análise para o estudo de livros didáticos é verificar a harmonia da obra, a sequência de assuntos, a estrutura de apresentação de cada assunto, sua coerência interna, etc.» (p. 374). A análise pode ser semiótica, sintática, narrativa e argumentativa. Clarifica-se, ainda que brevemente, cada uma delas. A análise semiótica observa os elementos da estrutura de uma obra e a interação entre eles. A análise sintática examina as frases (e palavras), bem como os aspetos gráficos que acompanham o texto. A análise narrativa envolve a análise do modo como a história, com personagens e enredo, é contada e está associada a objetivos de ensino (exposição de conteúdos, resolução de problemas, etc. - a narrativa como método de ensino). Finalmente, na análise argumentativa faz-se a análise do discurso em função dos padrões de inferência que o caracterizam. Sublinhemos a extrema importância de que se reveste o estudo dos manuais escolares que, como livros didáticos, cumprem funções de relevo, no processo de ensino aprendizagem e no tempo de ensino, pois são recursos em permanência no

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quotidiano das escolas. Contudo, reconhecendo a importância da avaliação da qualidade dos manuais escolares quisemos, neste estudo, uma perspetiva mais parcelar de avaliação dos manuais; dito de outro modo, pretendemos examinar a estrutura dos seus textos narrativos com vista a determinarmos se as histórias contidas nos manuais de língua portuguesa, do 1º ciclo, se configuram como textos mentores. De um ponto de vista pragmático, textos mentores (Corden, 2007) são textos que se constituem como modelos no processo de aprendizagem dos alunos, no caso deste estudo, relativa à escrita de textos narrativos no que se refere à sua estrutura.

Muitos autores, (e.g., Corden, 2007; Graham, Harris & Troia, 1998), entendem que ouvir e ler histórias ensina os alunos sobre a forma como elas se organizam do ponto de vista estrutural e estilístico, pelo que aquela será uma boa estratégia de ação, junto dos alunos a quem se quer promover a qualidade na escrita textual de histórias. Os alunos devem ter consciência da estrutura e do estilo da história acreditando-se que, pela explicitação, serão capazes de transferir conhecimento dos dispositivos literários de “textos mentores” para a sua escrita independente; ou seja, de desenvolver uma metacognição (na forma de uma dialética textual) acerca da compreensão sobre a forma como escrevemos textos narrativos. Neste processo de construção textual, acredita-se, igualmente, na interação da informação aprendida no reconto oral (daí a importância de saber se os textos lidos são modelos adequados) para a escrita de histórias, recuperada pela memória que é usada na escrita e que estimula esta dialética do texto ou da sua construção progressiva (Bereiter & Scardamalia, 1987).

Concretamente, através de uma análise documental, quisemos saber como se apresenta a estrutura dos textos narrativos nos manuais escolares de língua portuguesa que são usados pelos alunos durante o 1º ciclo do ensino básico. Procuramos obter resposta para as questões:

- em que medida os textos narrativos dos manuais escolares de língua portuguesa são textos estruturalmente completos, examinando medidas mais globais e medidas mais específicas: índice de preenchimento, eixos e elementos da estrutura da narrativa?;

193 - a estrutura da narrativa e a produtividade, analisada pelo número de palavras, dos textos dos manuais escolares apresentam diferenças em função do ano de escolaridade?;

- há interação entre a estrutura e a produtividade dos textos narrativos?.

2. Método

2.1. Documentos

Um conjunto de 60 textos narrativos retirados dos três manuais escolares mais usados, nas escolas do país, para cada um dos anos de escolaridade do 1º ciclo do ensino básico. Os dados sobre os manuais mais adotados nas escolas portuguesas foram fornecidos pela Direção Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular, para o ano letivo transato e são manuais em uso no presente ano letivo. De cada manual foram retirados os últimos cinco textos narrativos77, o que perfaz um total de 15 textos, por ano de escolaridade, e de 60 para o ciclo de ensino.

2.2. Materiais

Foi usado o manual de cotação de textos narrativos (anexo 4), já descrito anteriormente, para a estrutura da narrativa bem como para o número total de palavras do texto.

2.3. Procedimentos

Seleção dos documentos

Num primeiro momento, foram selecionados os textos narrativos. Consultados os manuais por ordem inversa (do final para o início) os textos finais, por eles apresentados, foram classificados em narrativos ou não

77 Para o 1º ano de escolaridade, tivemos que nos socorrer de mais um manual para obtermos o mesmo número de textos narrativos, uma vez que os textos até uma parte avançada dos manuais estão mais centrados na letra ou caso de leitura e escrita a lecionar do que na estrutura da história.

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narrativos. Os cinco últimos textos narrativos, do conjunto dos doze manuais escolares (três por ano de escolaridade do 1º ciclo), foram, então, selecionados para análise.

Cotação dos textos

Num segundo momento, os textos foram classificados, quanto à estrutura e número de palavras, por dois observadores independentes, cegos quanto ao estudo e com treino no uso do manual de cotação (anexo 4). A taxa de acordo foi de 98,3% para a estrutura, tendo-se facilmente conseguido o acordo para os casos inicialmente divergentes, e de 100% para o total de palavras.

Análise de dados

No tratamento dos dados, foram usadas como medidas o quadrado narrativo, os eixos e os elementos78 da estrutura da narrativa como forma de análise.

A análise exploratória de dados verifica o cumprimento do pressuposto da normalidade da distribuição da variável, em resultado da aplicação do teste de Kolmogorov-Smirnov, com correção de Lilliefors. Os resultados da estatística de Levene concluem que não há homogeneidade das variâncias; ainda assim, e tal como no estudo anterior, com base nas mesmas opções e fundamentação, decidimos comparar os resultados em termos de testes estatísticos não paramétricos e paramétricos. Sempre que há concordância nos resultados, entre testes estatísticos equivalentes, optou-se por reportar os resultados dos testes paramétricos.

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Os elementos da estrutura, neste estudo, e porque estamos a estudar texto a texto, reportam-se em termos da sua presença e ausência (variável dicotómica).

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3. Resultados

Análise do número de palavras

Foram analisados 60 textos do 1ºciclo do ensino básico, distribuídos de igual modo por todos os anos de escolaridade (n = 15 textos por ano). O número de palavras, (tabela23), regista uma média de 193.92 palavras por texto (DP = 92.348), com um mínimo de palavras localizado no 1º ano (Min = 130.73) e um máximo localizado no 4ºano de escolaridade (Max = 281.40).

Tabela 23. Estatística descritiva do número de palavras dos textos em função ao ano de escolaridade.

1º ano 2º ano 3º ano 4º ano

M DP M DP M DP M DP

130.73 92.619 138.00 54.629 225.53 64.613 281.40 57.481

M=média; DP=desvio-padrão

O teste paramétrico de análise da variância confirmou os resultados obtidos no teste não-paramétrico79, F (3) = 16.566, p <.001, pelo que reportamos os resultados ao primeiro (ANOVA), para localizar as diferenças nos distintos anos de escolaridade. Assim, os resultados do teste post-hoc de Tamhane T280 confirmam que os textos de 3º e 4º ano têm significativamente mais palavras do que os textos do 1º e 2º ano de escolaridade. Concretizando, não foram encontradas diferenças significativas na comparação do número de palavras entre os textos do 1º e 2º ano, e entre os textos do 3º e do 4º ano; contudo, essas diferenças estão presentes e com significado estatístico entre os textos do 1º e do 3º ano (p = .019) e entre o 1º e o 4º ano (p = .001); bem como entre os textos do 2º e do 3º ano (p = .003) e entre os textos do 2º e do 4º ano (p = .001).

79 O teste não paramétrico para amostras independentes de Kruskal-Wallis, revela que o número médio de palavras por texto varia, com significância estatística, em função do ano de escolaridade (2KW = 27.499; p <.05).

80 De acordo com Field (2009) é um dos testes post-hoc mais poderosos e usa-se em situações nas quais se observa violações dos pressupostos.

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Análise da Estrutura narrativa

Elementos da estrutura narrativa

De seguida, os textos foram analisados sob o ponto de vista da sua estrutura narrativa. Na tabela 24, são apresentadas as medidas descritivas de todos os elementos da estrutura narrativa contemplados na nossa análise: personagem, espaço, tempo; início, introdução, finalização; problema, tentativa, resolução; caracterização das personagens, caracterização do espaço e resposta interna.

Tabela 24. Medidas descritivas dos elementos da estrutura narrativa dos textos analisados (n = 60).

Elementos da estrutura narrativa

Presença nos textos

Média Mediana Desvio-

padrão Personagem 60 (100%) 1.0 1.0 0 Espaço 49 (81.7%) 0.82 1.0 0.39 Tempo 57 (95.0%) 0.95 1.0 0.22 Início 14 (23.3%) 0.23 0 0.43 Introdução 57 (95.0%) 0.95 1.0 0.22 Finalização 20 (33.3%) 0.33 0 0.48 Problema 58 (96.7%) 0.97 1.0 0.18 Tentativa 36 (60.0%) 0.60 1.0 0.49 Resolução 46 (76.7%) 0.77 1.0 0.43 Caracterização Personagens 50 (83.3%) 0.83 1.0 0.38 Caracterização Espaço 19 (31.7%) 0.32 0 0.47 Resposta Interna 45 (75.0%) .75 1.0 .44

De entre os elementos da estrutura narrativa, o início (M = 0.23; DP = 0.43), a caracterização do espaço (M = 0.32; DP = 0.47) e a finalização (M = 0.33; DP = 0.48) – os dois últimos com valores próximos - foram os elementos menos presentes nos textos analisados, incluídos em 23.3%, 33.3% e 31.7% dos textos, respetivamente. Por seu lado, se a personagem81 esteve presente em todos os textos (M = 1; DP = 0), o problema (M = 0.97; DP = 0.18), o tempo

81 Relembramos, que, de acordo com o manual de cotação dos textos, a personagem só é cotada como presente se tivermos mais que uma personagem, uma vez que a existência de uma personagem principal é condição para o texto ser considerado narrativo. Assim, a existência da personagem pode referir-se a uma (ou mais) personagem secundária ou principal, além da personagem principal inerente à condição de texto narrativo.

197 e a introdução (ambos com valores iguais; M = 0.95; DP = 0.22) foram os elementos mais presentes, constantes em, respetivamente, 96.7%, 95.0% dos textos analisados. Também o espaço (M = 0.82; DP = 0.39) e a caracterização das personagens (M = 0.83; DP = 0.38) estiveram presentes numa elevada percentagem de textos, 81.7% e 83.3% respetivamente, sendo que a tentativa e resolução não estiveram presentes numa tão elevada percentagem, mas expressaram-se em mais de metade dos textos, 60.0% e 76.7% respetivamente. Claramente são os elementos início, finalização e caracterização do espaço que surgem como pouco expressivos, na maioria dos textos narrativos, constituintes dos manuais escolares mais usados no 1º ciclo do ensino básico. Podemos considerar que os textos dos manuais apenas se apresentam como textos modelo, para os elementos estruturais da personagem, tempo, introdução e problema. São também bons modelos, em grande parte dos textos, para os elementos espaço e caracterização das personagens, já se tornam problemáticos num grande número de textos quanto à resolução e tentativa. Apresentam-se como pouco qualificados para servirem de modelo nos restantes elementos da estrutura de uma narrativa, ou seja, para o início, finalização e caracterização do espaço. Em média, diríamos que uma boa percentagem de textos (em alguns casos, quase metade dos expressos nos manuais) carece de metade dos elementos da estrutura da narrativa e a sua grande maioria carece de um terço desses elementos; ora, se os textos fazem parte do quotidiano da maioria das escolas do nosso país, esperava-se que fossem modelos mais completos da estrutura de uma narrativa.

Eixos da estrutura narrativa

Com base numa concetualização teórica e de pragmática de ensino82, os elementos estruturais foram congregados em quatro eixos de análise. Este procedimento teve como propósito estabelecer uma medida mais global da estrutura da narrativa a partir de uma organização temática e categorial dos elementos estruturais. Relembremos a organização dos elementos em eixos:

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Compreenderemos melhor esta noção de pragmática de ensino com a intervenção descrita no último capítulo desta parte.

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- Orientação - situa a história, incluindo os elementos personagem, espaço e tempo;

- Estrema – abre e fecha a história e compreende os elementos início, introdução e finalização;

- Ação – descreve o desenvolvimento da história e compreende os elementos problema, tentativa, resolução;

- Cooperação – torna a história mais compreensível numa lógica de eventuais causas e inclui os elementos caracterização da personagem, caracterização do espaço e resposta interna (pensamentos e sentimentos) das personagens.

As medidas relativas aos quatro eixos estabelecidos são de caráter quantitativo (de escala). Na análise exploratória, não se verificou o pressuposto da normalidade da distribuição das variáveis, verificado pelo teste de Kolmogorov-Smirnov,com correção de Lilliefors; consequentemente, adotou-se o teorema do limite central83 (Field, 2009). Dado que estamos perante um n = 60, podemos, de acordo com aquele teorema, assumir que a distribuição das variáveis se aproxima da distribuição normal. Já o pressuposto da homogeneidade da variância foi verificado, pelo teste de Levene, para os eixos de estrema e cooperação, pressuposto que não foi cumprido para os eixos de orientação e de ação. Foram, assim, adotados critérios idênticos aos usados na anterior análise do número de palavras, para decidir acerca dos testes estatísticos a aplicar e respetivos resultados a reportar.

Na tabela 25, são apresentadas as medidas descritivas dos eixos: Orientação, Estrema, Ação e Cooperação, considerando os textos de todos os anos de escolaridade. Na análise dos textos verificou-se a maior presença de elementos relacionados com o eixo Orientação (M = 2.767; DP = 0.465), seguida do eixo Ação (M = 2.333; DP = 0.729) e a menor presença do eixo

83 «Central limit theorem: this theorem states that when samples are large (above about 30) the sampling distribution will take the shape of a normal distribution regardless of the shape of the population from which the sample was drawn» (Field, 2009, p. 782).