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I Narrativa: Multiplicidade de Conceitos

2. Tipos e Modalidades de Texto Narrativo

Assumida a narrativa como discurso4, esclarecemos que, dentro do discurso narrativo, há vários tipos de narrativa ou narração. Shiro (2003) apresenta um conceito sobre tipo de narrativa (ou género5) argumentando que «The concept of genre is not easy to define. (…) genres are properties of discourse communities in the sense that they do not belong to individuals but to larger groups of speakers» (p. 167). A mesma autora refere, por exemplo, que em termos desenvolvimentais, nem todos os tipos de narração surgem em simultâneo, mencionando a narração de episódios de experiências pessoais como a forma narrativa mais precoce; apresenta, além da narrativa pessoal, o exemplo da narrativa ficcionada, ambos distintos na sua função comunicativa e no seu estilo ou estratégia textual. A distinção entre narrativa pessoal e narrativa ficcionada surge profusamente estudada na literatura. Estas narrativas, pessoais e ficcionadas, podem ser consideradas como dois tipos fundamentais de discurso narrativo, suscetíveis de serem ainda enquadradas em subcategorias, amplamente usadas com propósitos de investigação, avaliação e intervenção (e.g., Carole, Jesso, & McCabe, 1999; Kaderavek, Gillam, Ukrainetz, Justice, & Eisenberg, 2004; Labov, & Waletzky, 1967; Mishler, 1995; McCabe, Bliss, Barra & Bennett, 2008; Nelson, 2010; Shiro, 2003).

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A partir daqui, usaremos indistintamente os termos narrativa, texto narrativo, discurso narrativo e história. Bauman (1986), numa conceção mais alargada do conceito de narrativa, implica narrativa e o ato de contar histórias (storytelling) – se parece que a primeira era vista como uma tarefa mais literária, o autor confronta explicando que narrativas literárias tradicionalmente poderiam ser reconhecidas como histórias orais.

5 Os conceitos de tipo e género (“genre” ou “type”), têm sido usados com significado idêntico na literatura da especialidade no sentido da organização de critérios que classificam os textos narrativos. Consequentemente, neste trabalho, adotamos a designação “tipo” para falarmos acerca dos tipos na narrativa.

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Também Bakhtin (1986), distingue dois tipos de narrativa: a narrativa primária e narrativa secundária. A narrativa primária envolve a comunicação informal das experiências pessoais do dia-a-dia e a secundária implica uma organização mais complexa, frequentemente formalizada através da linguagem escrita. Esta é uma distinção importante pois muitos estudos privilegiam a investigação das formas narrativas primárias (e.g., Eisenberg, Ukrainetz, Hsu, Kaderavek, Justice, & Gillam, 2008; Fey, Catts, Proctor-Williams, Tomblin, & Zhang, 2004; Hudson, & Shapiro, 1991) e outros das formas secundárias (e.g., Bird, Cleave, White, Pike, & Helmkay, 2008; Bloome, Katz, & Champion, 2003; Bredosian, Lasker, Speidel, & Politsch, 2003; Ho, 2002; Roth, 2000). A narração pode, além das histórias pessoais - mais ou menos esboçadas em memórias autobiográficas (e.g., Abbott, 2002; McLean, 2008; Singer & Bluck, 2001) -, assumir diferentes tipos quanto ao estilo literário; por exemplo, as histórias ficcionadas que podem apresentar-se na forma de um conto de fadas ou de histórias tradicionais (Roth, 2000).

A narrativa, na linguagem verbal, pode assumir a forma oral ou escrita6. Independentemente do processo narrativo ou dos procedimentos para o desencadear, a produção de uma narrativa oral é bem diferente da produção de uma narrativa escrita. Alguns autores (e.g., Bird, Cleave, White, Pike, & Helmkay, 2008; Clemente, 1990; Scott & Windsor, 2000) estudaram comparativamente o tipo textual narrativo na sua modalidade discursiva, ou seja, na forma oral e na forma escrita. Curiosamente, Clemente (1990) não encontra diferenças significativas em qualquer das modalidades para um conjunto de variáveis ligadas à estrutura, à qualidade global e à produtividade. Ora, isto remete-nos para uma questão de fundo, bastante importante: ao que parece, para se observarem os requisitos linguísticos relativos a um tipo de discurso, o que é dominante não é a modalidade em que se expressa esse mesmo discurso mas, antes, o tipo discursivo, neste caso, o discurso narrativo.

6 Refira-se, ainda, a modalidade icónica e a modalidade gestual, de acordo com contextos específicos relativos aos indivíduos ou à ação. Exporemos, quase comparativamente, as modalidades escrita e oral por mais interessarem a este trabalho.

43 Assim, pelo menos no que respeita à estrutura e produtividade7, o que superintende à expressividade das variáveis linguísticas e sua natureza é o tipo de discurso e não a modalidade do mesmo. No entanto, há também um vasto número de estudos que se debruçaram apenas sobre a narrativa oral (e.g., Eisenberg, Ukrainetz, Hsu, Kaderavek, Justice, & Gillam, 2008; Kaderavek, Gillam, Ukrainetz, Justice, & Eisenberg, 2004) ou sobre a narrativa escrita (e.g., Corden, 2007; Silva & Spinillo, 2000; Willett, 2005) e que apontam para diferenças muito tipificadas nos dois modos narrativos. Essas diferenças envolvem, por exemplo, a formalidade linguística do discurso escrito face ao oral, bem como a proximidade contextual na narrativa oral face à descontextualização da escrita8. Estes aspetos têm implicações na formalidade do uso dos recursos linguísticos e das regras estabelecidas para o uso da linguagem escrita, regras que vão da economia lexical à clareza do texto, como forma de clarificação do que contextualmente é visível ou dito através de segmentos não-verbais ou suprassegmentais da fala. A modalidade escrita perdura no tempo o que permite que possa ser apropriada por todos sem necessidade de um interlocutor que a explicite, advindo daí a maior formalidade desta modalidade. Estes debates têm implicações, quer na aprendizagem, quer no ensino da narrativa. Sendo que a narrativa oral se aprende sobretudo de modo informal - por exemplo, em contextos familiares - e que a narrativa escrita se aprende no contexto formal da escola, parece que nem sempre se verifica entre ambas uma continuidade desenvolvimental. Dito de um outro modo, a modalidade narrativa escrita e oral tenderão a seguir um percurso desenvolvimental caracterizado por etapas idênticas (Bird, Cleave, White, Pike, & Helmkay, 2008).

Aparentemente, o que parece certo dentro da afirmação anterior é que cada uma das modalidades da narrativa desenvolve os elementos que a

7 Mais adiante, apresentar-se-ão os conceitos de estrutura e produtividade ao falarmos das dimensões da narrativa.

8 Este aspeto envolve por exemplo o estudo do uso de verbos no tempo passado, uma vez que o tempo do acontecimento não é o tempo da enunciação do mesmo; com incidência ligeiramente maior para o uso deste tempo na forma escrita em detrimento da forma oral que conta com a presença do interlocutor e de possíveis diálogos internos (Clemente, 1990).

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compõem de forma estrutural e progressivamente mais complexa. Percebe-se, assim, que ao estudarmos as suas diferenças estamos a estudar a complexidade dos seus elementos, ao longo do percurso desenvolvimental da criança, e não uma linha desenvolvimental narrativa consecutiva entre a modalidade oral e a modalidade escrita (e.g., Bird, Cleave, White, Pike, & Helmkay, 2008; Clemente, 1990; Scott, Roberts, & Krakow, 2008; Scott, & Windsor, 2000).

Desde muito cedo, as crianças começam a produzir narrativas pessoais das ocorrências quotidianas, quer em contextos familiares, quer em contextos educativos, das suas experiências típicas como a ida ao médico e a uma festa de anos (e.g., Nelson, 2010; Shapiro, & Hudson, 1991). Este é um fenómeno cultural. As crianças narram e ouvem narrar experiências e a isso são estimuladas, quer pelos pais, quando as inquirem sobre o seu dia, quer pelos educadores que, frequentemente, usam a história para ensinar conteúdos e para ensinar a historiar. Diríamos que a criança, esteja em que contexto estiver, tem a história como elemento dominante no seu dia-a-dia. A criança está exposta à narrativa oral nos diferentes contextos de vida e não tem propriamente uma estimulação intencionalizada e agendada curricularmente, quando passa pelos primeiros anos de desenvolvimento da linguagem. Compreende-se, assim, que a emergência da narrativa oral seja precoce (van Deusen-Phillips, Goldin-Meadow, & Miller, 2001) no desenvolvimento humano. Já na narrativa escrita, a criança necessita de dominar o código de escrita da sua língua para escrever a história, o que torna a tarefa mais complexa, sendo exposta, enquanto é escolarizada, a uma aprendizagem e ensino intencionalizado e estruturado. Assim, os estudos, independentemente da infinidade das suas variáveis e das questões em equação, normalmente restringem-se apenas a uma de entre estas duas modalidades de produção narrativa: a narrativa oral e a narrativa escrita. Apesar desta separação, diferentes modelos de análise da produção narrativa (ou elementos e parcelas de cada um deles, ou uma constelação de vários) são utilizados numa e noutra modalidade discursiva, o que se compreende à luz das perspetivas que aludem mais ao que é idêntico do que ao que é diferente nas modalidades narrativas (e.g., Clemente, 1990). Existem, no entanto, em contraponto, perspetivas que

45 defendem que as histórias orais, nas primeiras fases da escolaridade, tendem a ser estruturalmente mais completas do que as escritas (e.g., Fey, Catts, Proctor-Williams, Tomblin & Zhang, 2004). Ora, se lembrarmos que o desenvolvimento da linguagem oral precede, em muito, a aquisição da linguagem escrita será natural que assim seja. Sobretudo nos primeiros anos de “fusão” da narrativa oral e escrita, que ocorre na transição da educação pré- escolar para o 1º ciclo do ensino básico, diríamos, à semelhança de Kaderavek, Gillam, Ukrainetz, Justice e Eisenberg (2004), que há um desfasamento desenvolvimental entre a familiaridade da linguagem oral e a descontextualização da linguagem escrita. Os monólogos das crianças de tenra idade são das primeiras formas de narrativa, nas quais a criança representa o papel de vários atores concebendo, nesse contexto, uma audiência imaginária9, muito à semelhança do que, mais tarde, irá acontecer com a narração escrita. Na modalidade escrita, a linguagem passa de um direto para um diferido (dirigida a uma audiência suposta) sendo, nesse contexto, necessária uma maior planificação pois não se conta com o feedback do ouvinte. Paralelamente, em qualquer circunstância discursiva contextual, mesmo o comportamento não-verbal do ouvinte, pode ser entendido como parte de um processo de co-construção narrativa. De um ponto de vista desenvolvimental, poderíamos supor então que, adquiridas as competências gerais e específicas relativas à narração, é provável que ambas as modalidades narrativas se equiparem. Também é natural que, para níveis etários específicos, se notem avanços proporcionalmente diferentes entre as formas das narrativas, isto é, depois de adquiridas as competências para narrar oralmente, estando ainda a criança a desenvolver a escrita, pode verificar-se um maior desempenho na narrativa oral face à escrita mas, adquirida a escrita, o desfasamento tenderá a atenuar-se. A natureza provisória da linguagem oral transfigurará, através da escrita, a narrativa em algo definitivo e de maior rigor o que pode imprimir à narração uma maior complexidade. Revisitando Luria

9 A audiência imaginária é usada para explicitar que a criança ao desempenhar diversos papéis está apenas a dirigir-se a diferentes audiências, em nada se assemelha ao conceito que existe para ilustrar o egocentrismo na adolescência, pois sabemos que as crianças de tenra idade não têm operações formais, o que, logo à partida, tornaria esta transição de significados inverosímil.

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(1987), lembramos que o contexto imediato de comunicação na linguagem oral colabora na construção do significado; na linguagem escrita, essa colaboração é fornecida pelo próprio sistema léxico-gramatical da linguagem, o que nos permite dizer que a escrita torna mais consciente a linguagem oral.