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4 DA DIFICULDADE DO ENQUADRAMENTO DO BÓIA-FRIA ENQUANTO

4.2 Conceito de trabalhador rural volante na doutrina

O trabalhador rural volante, também conhecido como trabalhador independente, bóia- fria, pau-de arara, tem recebido pouco estudo dos estudiosos do Direito de Trabalho, pelo fato de ser eventual, e não ser considerado assim, empregado. No Direito Laboral, interessante é a doutrina de Valentin Carrion, demonstrando a nova tendência do Justiça Laboral:

Trabalhador eventual rural: está protegido pelo direito do trabalho, isto é, pela doutrina mais recente sobre o que se deva entender por trabalhador eventual, e porque a exigência de “não eventualidade” anunciada pela lei (L. 5.889/73, art. 2º) ficou superada por outro dispositivo (art. 17 da mesma

lei). Não há como negar ao eventual o que lhe for aplicável: salário mínimo, descanso remunerado proporcional, jornada de 8 horas diárias e 44 semanais, além de adicional por horas extraordinárias ou noturnas. Sem

81 NASCIMENTO, Amauri Mascaro, Iniciação do direito do trabalho. LTr, São Paulo, 25ª edição, 1999, p. 180. 82 CONCEIÇÃO, Eva Regina Turano Duarte da – “Aspectos da Previdência Social Rural”. In: Revista de Direito

prejuízo de que a repetida contratação venha transformar a prestação eventual em contrato de trabalho por tempo determinado ou indeterminado, quando serão devidos aviso prévio, férias proporcionais e FGTS (v. art. 3“/l3, infra). O diarista ocasional faz jus a descanso semanal remunerado se prestou serviços em todos os dias úteis da mesma semana. Pela natureza de seu pacto não recebe aviso prévio, nem qualquer outra verba rescisória. Entretanto, o diarista ocasional deixa de sê-lo pela continuidade no

mesmo serviço (após 30 dias, mesmo que contratado “no ponto”, como os “boias-frias”). Depois desse prazo serão devidos aviso prévio, 13a

salário e férias. O trabalho do eventual ou safrista por intermédio de

empreiteiros de mão de obra, sem capacidade econômica, leva à aplicação da responsabilidade solidária do empresário rural, com apoio no princípio inserido no art.9º da CLT (v. art. 455/1)83. (destaquei)

Porém, em relação aos boias-frias, ou paus de araras, foi claro:

Paus de arara” ou “boias-frias”: Estes trabalhadores permanecerão teoricamente protegidos, mas abandonados na prática, enquanto a lei não determine que seu aproveitamento nos imóveis rurais se faça mediante con- trole dos sindicatos, prefeituras, casas de lavoura ou de outras autoridades delegadas, devendo sua contratação e pagamentos ser realizados por intermédio destas, sob pena de sua repetição. O transporte em veículos, sem proteção, clama aos céus pela frequência de desastres que se repetem; a legislação deveria aumentar a responsabilidade civil indenizatória, solidariamente, abrangendo o transportador, o intermediário da mão de obra, o proprietário rural, o tomador da mão de obra; e a fiscalização rodoviária, tolerando o desrespeito à regulamentação sem rigor, é conivente com as mortes, incapacidades e sofrimentos resultantes. Ainda se impõe a proibição de intermediários à mão de obra, mais um elemento a explorar o trabalhador, a descaracterizar, a dificultar a prova da relação; a proibição da

marchandage existe em inúmeras legislações estrangeiras84.

É no Direito Previdenciário que surge a preocupação, visando a sua integração à previdência social como segurados obrigatórios. O grande divisor de aguas, para o estudo do trabalhador rural, visando à caracterização como segurado obrigatório da Previdência Social é a Constituição de 1988, que uniformizou o tratamento entre os empregados urbanos e rurais, entre trabalhadores urbanos e rurais. Antes disso, o trabalhador volante – integrante da Previdência Rural – sua proteção era de cunho nitidamente assistencialista, sem a necessidade da competente contribuição para o custeio da Previdência Social.

Como já afirmado, todos aqueles que trabalham têm que fazer parte, necessariamente, da Previdência Social; fazendo parte do Seguro Social, por ser seguro, tem que contribuir, de alguma forma, para o custeio do mesmo. Todos os princípios e as regras constitucionais

83 CARRION, Valentin. Comentários à consolidação das leis do trabalho. São Paulo: Editora Saraiva, 36 ed.,

p.66.

estudados, em harmonia, dão suporte para a interpretação de que o trabalhador volante é segurado obrigatório da Previdência Social.

Almir Pazzionoto Pinto , enquanto Secretário de Estado de Relações de Trabalho do Estado de São Paulo, em 1984, escreveu artigo85, reconhecendo o vazio legislativo que rege

a matéria. Nele, apresentou resultado de um grupo de trabalho, para que a matéria fosse legislada pelo Governo Federal, visando a garantir direitos trabalhistas aos denominados trabalhadores boias-frias. Explicou ainda a origem do termo, que não é pejorativa, e, na visão do direito trabalhista, explicou com profundidade toda a problemática do trabalhador volante.

Ele é um volante, viajando de trabalho em trabalho, de fazenda em fazenda, de tarefa em tarefa, porque nenhum tomador de serviços o quer como empregado, nem mesmo safrista, utilizando-se do intermediário para fugir a isso e se desobrigar dos chamados “encargos sociais", bem como de outras responsabilidades que fatalmente emergem da relação de em- prego. Em outros casos, o tomador de serviços, sendo um pequeno proprietário rural, ou arrendatário, não está em condições de manter um quadro de empregados, mesmo durante pequeno período, e a sua safra, de curtíssima duração, só pode ser realizada economicamente com o concurso dos volantes.

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Das suas condições de vida não há necessidade de se comentar, pois são conhecidos os problemas que o bóia-fria enfrenta quando tem trabalho, e a miséria indiscutível em que mergulha quando não o tem.

Figura tradicional da nossa história, onde aparece no início da colonização, quando implantados os pequenos engenhos, foi ele abandonado pelo Estado e pela sociedade, e esquecido pela moderna tecnologia. Tanto que sua ferramenta principal ainda é o facão, folhão ou podão, e, se adotada a máquina colhedeira de cana, que, por sinal, oferece resultados sabidamente insatisfatórios, a conseqüência será a dispensa de numerosa mão-de-obra.86

Suas colocações continuam atuais, e o panorama legislativo infraconstitucional pouco mudou. A renovação veio com a Constituição de 1988; porém, na prática, ainda é lenta a evolução legislativa, visando sua integração à Previdência Social.

Elisabete Maniglia, em 2007, bem observou o problema do trabalhador rural bóia- fria que, praticamente, não mudou nada, em relação ao descrito por Almir Pazzianotto, em 1984, do ponto de vista da realidade social em que se vive o Brasil:

85PINTO, Almir Pazzianotto. “O Trabalhador Rural Volante”. In: Revista LTr Legislação do Trabalho

e Previdência Social. São Paulo: Ano 48, nº 06, junho, 1984.

86PINTO, Almir Pazzianotto. “O Trabalhador Rural Volante”. In: Revista LTr Legislação do Trabalho

A realidade do bóia-fria é de desalento. O contexto muda de acordo com as regiões, sendo que no Sul, a organização sindical toma menos penoso o esforço dos trabalhadores em ver os seus direitos respeitados. A população do meio rural encontra-se abandonada às margens das grandes proprie- dades, que fazendo olhos nus a função social da propriedade e pior com apoio estatal, mantém as raízes históricas do poder, que impedem o acesso à terra. O trinômio latifúndio, monocultura e economia de exportação reinante desde a colonização, perpetuam a miséria e a concentração da terra, com a conseqüente concentração de riqueza que acumula miséria, desemprego, degradação ambiental e a má qualidade de vida social87.

Nas relações trabalhistas, face à globalização e ao uso da tecnologia, em todos os setores da economia, o cenário mundial vem sofrendo transformações que, no Brasil, já se fazem notar há algum tempo. Com o aumento de encargos trabalhistas, carga tributária altíssima em relação a folha de salários, mecanização da lavoura, modificou-se sensivelmente o panorama social no campo. O empregador rural depreende que não necessita do empregado prestando-lhe serviços, continuamente, em sua terra.

Sobressai este fenômeno na indústria canavieira onde a modernização no corte de cana de açucar, que hoje não pode ser mais considerado como safra, ocorre em todos os períodos do ano, com crescente redução de mão de obra: uma colhedeira substitui mais de 80 cortadores de cana manual, como nos dá conta André Cabette Fábio88

O desemprego no campo direciona muitas famílias para a vida na cidade. Muitos destes trabalhadores, quando dispensados, formaram um mercado informal do campo, um verdadeiro exército de desempregados. De certa forma, trata-se da continuidade da escravidão, já que, a partir da libertação dos escravos, surge o trabalhador eventual ou volante, notoriamente conhecido por bóia-fria, que é uma constante no meio rural, como mão-de-obra barata, descartável, sem vínculo algum com o proprietário rural. Sem castigos físicos aparentes, esses, mas tão desprotegidos da lei quanto o foram aqueles.

O volante, nesta relação jurídica em que se enquadra, depara-se, apenas, com os direitos limitados em contratos de trabalho previamente estabelecidos. Movimenta-se entre a cidade e o campo, assimilando valores entre um e outro, criando conflitos em sua entidade, tentando sobreviver nas safras rurais, com seus ganhos obtidos em trabalho penoso e deixando seus créditos no consumo urbano, sem ao menos estabelecer uma relação empregatícia

87 MANIGLIA, Elisabete. “O Trabalhador Rural perante a Jurisprudência”. In: Trabalhador Rural - Uma análise

no contexto sociopolítico, jurídico e econômico brasileiro, em Homenagem a Fernando Ferrari. Curitiba: Juruá

Editora, 2007, p. 213/215.

88Disponível em: <http://economia.uol.com.br/agronegocio/noticias/redacao/2013/11/29/bóia-fria-da-lugar-a-

definida.

Frente a direitos garantidos constitucionalmente, mas sem o instrumental legislativo infraconstitucional adequado, o volante fica excluído da Previdência Social, por não recolher a competente contribuição previdenciária. Fica à margem do seguro social. Em tempo de intensa informatização, devem ser criados mecanismos de controle e arrecadação destas contribuições previdenciárias, por parte da Receita Federal do Brasil, incentivando o tomador de serviços a recolher a contribuição previdenciária e integrando o trabalhador rural volante ao Seguro Social.

Além da ausência de proteção previdenciária, outro problema grave enfrentado pelo trabalhador volante, mas que foge à sua integração à Previdência Social, é a ausência de empregadores. Com a modernização do campo, os latifundiários ligados às monoculturas investem na modernização do corte de cana, conforme referido acima, e de outras culturas, além de se utilizarem de outros recursos que suprem o trabalho outrora realizado pelos trabalhadores do campo.

Interessante é o posicionamento de José Antonio Savaris, que não coincide com a argumentação apresentada nesta dissertação, em relação ao trabalhador rural volante:

Se do segurado especial não se exige contribuição para a seguridade social, visto que a contribuição obrigatória incidente sobre o produto de sua comercialização (CF/88. Art 195,§ 89 e Lei n 8 212, art 25,1) pode não

existir na hipótese de inexistência de excedente a comercializar, não se justificaria, sob o prisma da isonomia, a dispensa de um tratamento previdenciárío mais restritivo ao bóia-fria, que só exerce esta profissão porque não tem acesso a qualquer outra que lhe confira alguma segurança, encontrando-se em uma situação de inferioridade econômica em relação ao segurado especial “89

Na realidade, a Constituição exige fonte de custeio para a Previdência Social, e o segurado especial que não tem produção, por criação jurisprudencial, se equipara ao que tem produção, recolhendo a contribuição previdenciária e se reconhecendo na qualidade de segurado. É uma exceção e criação jurisprudencial.

Entende-se que deve-se criar mecanismos que possibilitem o recolhimento da contribuição previdenciária, de todo o trabalhador rural volante que exerce atividade laborativa.

Hoje, com o uso da informática, a Receita Federal tem condições de criar estes mecanismos, como, por exemplo, criar um Cadastro Nacional de Trabalhadores Volantes,

89 SAVARIS, José Antonio. “Aposentadoria por idade ao trabalhador rural independente: A questão do bóia

com se fez com o Cadastro de Pessoa Física (CPF), que é utilizado para toda e qualquer atividade econômica. Aquele que é beneficiário do trabalho do volante tem que ser incentivado a recolher a contribuição previdenciária, mesmo se for em alíquota menor a ser estabelecida por lei, com incentivos, como se faz no caso dos empregadores domésticos. O que não pode acontecer é reconher o direito de segurado da Previdência Social, sem o pagamento da devida contribuição, senão, estaremos diante não mais do Seguro Social; sim, transmudando-se para um regime assistencialista.

Assentado na doutrina, a necessidade de proteção do trabalhador volante, face a todos os princípios e todas as regras que regem a Seguridade Social, em especial, a Previdência Social, que no dizer de Ana Paula Oriola de Raeffray, “a seguridade social esta fundada na solidariedade e na universalidade. É união solidária entre todos os indivíduos para enfrentar os riscos gerados pela própria sociedade moderna”90, deve-se buscar a integração do

trabalhador volante na rede protetiva da Previdência Social. O próximo passo é trazer a posição dos Tribunais, em relação aos trabalhadores volantes.

A jurisprudência sempre esteve um passo a frente, em matéria previdenciária, na proteção do trabalhador volante. Na ausência, lacuna, ou vazio legislativo, buscando dentro dos princípios constitucionais que regem a matéria, deu um passo importante para proteção do trabalhador rural, em especial, trabalhador volante ou bóia-fria.