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3. OS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS COMO PREVISTOS E

3.3. Conceito e evolução até nossos dias

Está pronto, assim, o conceito moderno de constituição, de matriz liberal-burguesa:

instrumento jurídico de limitação do poder estatal, via organização das funções estatais e

garantia de direitos humanos fundamentais.

Já o constitucionalismo, em sua acepção moderna, representa a teoria que busca a

limitação do poder estatal com fins de garantia dos direitos humanos fundamentais.

Tal conceito vai ao encontro daqueles até hoje utilizados pela doutrina constitucionalista mais abalizada sobre o tema, a saber:

Constitucionalismo é a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo

limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade. Neste sentido, o constitucionalismo moderno representará uma técnica específica de limitação do

poder com fins garantísticos. O conceito de constitucionalismo transporta, assim,

um claro juízo de valor. É, no fundo, uma teoria normativa da política, tal como a teoria da democracia ou a teoria do liberalismo104.

Constitucionalismo significa, em essência, limitação do poder e supremacia da

lei (Estado de direito, rule of the law, Rechtsstaat)105.

Inevitáveis três conclusões do até aqui exposto: i) o surgimento do constitucionalismo e a codificação das primeiras constituições e dos direitos humanos fundamentais (neste ponto da história, apenas as liberdades públicas) são frutos de lutas pelo reconhecimento de dada categoria como sujeito de direitos (a burguesia); ii) o resultado de tais lutas pelo reconhecimento molda o formato dos emergentes Estados Nacionais – não é sem razão que o primeiro modelo de Estado Constitucional de Direito é o liberal-burguês; iii) a doutrina constitucionalista e dos direitos humanos fundamentais possuem a mesma origem teórica iluminista-jusnatural, bem como seus instrumentos – constituição e declarações de direitos – se fundamentam e se justificam de forma mútua e recíproca, a tal ponto que um não consegue existir sem o outro. Ou seja, não há constituição sem a positivação e garantia dos direitos humanos fundamentais em seu

      

104CANOTILHO, José Joaquim Gomes. op. cit., p. 51.

bojo, e os direitos humanos fundamentais necessariamente precisam estar positivados nas cartas constitucionais dos diversos Estados Nacionais106.

Mas, a conclusão fulcral advém do maior legado deixado pelas três revoluções que esmagaram os alicerces dos Estados absolutistas e, em seu lugar, plantaram o moderno Estado de Direito: a inversão da premissa lógica para a elaboração de qualquer teoria política a ser desenvolvida, que até então considerava o “homem como o lobo do homem”107. Por esse prisma os direitos do homem seriam meras concessões e

benevolências praticadas pelo soberano, cujo poder era absoluto por necessidade de se colocar ordem nas coisas. A inversão dessa premissa enxerga uma “natureza humana boa”, com o homem livre no estado de natureza e, por decorrência, com a necessidade de um Estado em uma estrutura mínima e limitada, atuando dentro do extremamente necessário para garantir a vida em sociedade, e nada mais. Neste novo cenário os direitos do homem

passam a ser garantias contra a atuação estatal108.

Tal inversão de perspectiva, também influenciada pelo cristianismo, conforme já demonstrado no capítulo 1 (ideia da “sacralização da pessoa”), manteve seu curso histórico, moldando o constitucionalismo, mas agora de forma uniforme novamente, em um movimento de universalização, de molde a que os demais países ocidentais também

      

106Tal constatação é trazida por J.J. Gomes Canotilho: “A própria constituição – incluída na estrutura básica – é encarada como um procedimento justo que incorpora as iguais liberdades políticas e garante a liberdade de pensamento. O modo como se combinam as liberdades num esquema coerente outra coisa não é senão uma teoria das liberdades básicas assente numa concepção política da pessoa e indispensável à justificação de um regime constitucional. Mais uma vez, as teorias dos direitos básicos são momentos fundamentais de uma teoria normativa da constituição incluída numa teoria do político. A constituição é, precisamente, entendida como um procedimento político justo que incorpora as iguais liberdades políticas e procura assegurar o seu justo valor de modo que os processos de decisão política sejam acessíveis a todos numa base aproximadamente igual. Neste sentido, a Constituição será também o estatuto comum de cidadãos

iguais na medida em que incorpora e especifica as liberdades básicas”. CANOTILHO, José Joaquim

Gomes. op. cit., p. 1405.

107Famosa expressão hobbesiana, utilizada em seus escritos justificadores do Estado Absoluto, como mal necessário à organização da vida em sociedade, em razão da premissa de que a natureza humana seria má. 108Quem capta com maestria tal fenômeno é Norberto Bobbio: “De modo geral, a afirmação de que o homem

enquanto tal, fora e antes da formação de qualquer grupo social, tem direitos originários representa uma verdadeira reviravolta tanto na teoria quanto na prática políticas, reviravolta que merece ser brevemente comentada. A relação política – ou a relação entre governantes e governados, entre dominantes e dominados, entre príncipe e povo, entre soberano e súditos, entre Estado e cidadãos – é uma relação de poder que pode assumir três direções, conforme seja considerada como relação de poder recíproco, como poder do primeiro dos dois sujeitos sobre o segundo, ou como poder do segundo sobre o primeiro. Tradicionalmente, tanto no pensamento político clássico quanto naquele que predominou na Idade Média, a relação política foi considerada como uma relação desigual, na qual um dos dois sujeitos da relação está no alto enquanto o outro está embaixo; e na qual o que está no alto é o governante em relação ao governado (...). Mas tanto Locke quanto Kant são jusnaturalistas ou seja, ambos são pensadores que já haviam efetuado aquela inversão de perspectiva, para usar uma famosa expressão do próprio Kant, ainda que usada por ele num outro contexto, aquela “revolução copernicana” que faz com que a relação política seja considerada não mais ex

promulgassem suas respectivas constituições, dentro desse mesmo modelo formatado como fruto das experiências supratranscritas.

E a evolução histórica, conforme já largamente analisado no capítulo 2, se dá da seguinte forma: i) em razão da revolução industrial inglesa e surgimento da classe social do proletariado, altamente explorada pela burguesia, agora classe dominante econômica e politicamente, dá-se início a uma série de lutas pelo reconhecimento que culmina na formatação do Estado

Constitucional Social de Direito, com a positivação dos direitos humanos fundamentais de segunda dimensão (direitos econômicos e sociais), cujas duas primeiras e emblemáticas cartas

constitucionais são a mexicana, de 1917, e da República de Weimar, de 1919; trata-se de movimento que se estende durante o século XIX e primeira metade do século XX, cujo substrato teórico é retirado, notadamente, das correntes do materialismo histórico e da Teoria Crítica, em uma superação dos ideais iluministas; ii) já ao longo do século XX e dentro de um movimento constante de ampliação e universalização no reconhecimento dos sujeitos de direito, fruto de diversas lutas travadas, notadamente pelo direito à educação e ao sufrágio universal, ultrapassa- se a visão exclusiva individualista e se passa a uma abordagem também coletiva, fulcrada na solidariedade, dando origem ao modelo de Estado Constitucional Social e Democrático de

Direito (também conhecido como Estado Democrático de Direito), bem como aos direitos humanos fundamentais de terceira dimensão, notadamente de índole coletiva (direito à

autodeterminação dos povos, ao meio ambiente, ao sufrágio universal etc.)109.

Veja que o movimento é de ampliação e aperfeiçoamento dos mecanismos

garantidores da limitação do poder estatal e dos direitos humanos fundamentais, bem

como de universalização de tal modelo para todo o mundo ocidental e, atualmente, para

todo o universo, o que é evidenciado pela criação de um sistema internacional de proteção dos direitos humanos fundamentais, sempre atrelado à ideia de instituição de um modelo

constitucional democrático em cada Estado Nacional.

A evolução do modelo constitucionalista já chegou a tal ponto que, atualmente, debatem-se os diversos conceitos e modelos de constituição110; como os mecanismos       

109Para um apanhado desta evolução histórica do constitucionalismo até os nossos dias, confira-se: OLIVEIRA, Márcio Luís de. op. cit., p. 98-131.

110Entram aqui as diversas classificações de constituição, a partir dos critérios: i) formal – escritas e não escritas; ii) origem – promulgadas e outorgadas; iii) estabilidade do texto – rígidas, flexíveis e semirrígidas; iv) conteúdo – sintéticas e analíticas etc. Sobre o assunto, vide: i) BARROSO, Luís Roberto. Curso de

direito constitucional contemporâneo, cit., p. 103-105; ii) SOUZA NETO, Cláudio Pereira de;

SARMENTO, Daniel. op. cit., p. 51-65. Também as diversas definições de constituição, em seus aspectos histórico-político e jurídico (formal e material). O presente estudo se preocupa notadamente em analisar a constituição em seu aspecto jurídico.

garantidores do Estado de Direito se relacionam e interagem com os mecanismos garantidores do Estado Social e do Estado Democrático111; e de que forma as disposições

constitucionais devem ser interpretadas, inclusive, de molde a orientar a intepretação de toda a legislação infraconstitucional dos países112.

Ou seja, o direito constitucional e as respectivas cartas constitucionais passam a ser o centro do sistema normativo de cada Estado, possuindo elevada carga normativa, como

mola propulsora a compelir e orientar a atividade estatal e da própria sociedade, exigindo

a concretização dos princípios e regras gerais nela plasmados. Trata-se do inegável fenômeno da constitucionalização do Direito113.

Quanto ao Brasil, o caminho da evolução histórica de suas cartas constitucionais seguiu a tendência mundial, notadamente o caminho traçado por Portugal, sua antiga metrópole, cujo aparato jurídico sempre influenciou a evolução do direito em nosso país.

Interessante notar que a primeira constituição brasileira, de 1824, foi fruto da mesma revolução ocorrida em Portugal, em 1820, que deu origem à carta constitucional portuguesa de 1822: a revolução Liberal do Porto, que culminou com a instalação das chamadas “Cortes Constitucionais portuguesas”, as quais contaram com a participação de deputados brasileiros.

Por seu turno, ambas possuem marcada influência da Constituição espanhola editada em 1812, conhecida como “Constituição de Cádiz”, todas elas instituidoras de uma Monarquia Constitucional.

      

111Confira-se, a propósito: i) CANOTILHO, José Joaquim Gomes. op. cit., p. 92-102; ii) BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo, cit., p. 62-64 iii) SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. op. cit., p. 78-86; iv) SAMPAIO, José Adércio Leite. op. cit., p. 61-75; v) HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha, cit., p. 216-221. 112Para aprofundamento dos estudos sobre os diversos modelos de interpretação constitucional e como a

constituição deve servir de “lupa” para a análise da legislação infraconstitucional, confira-se: i) CANOTILHO, José Joaquim Gomes. op. cit., p. 1195-1254; ii) HESSE, Konrad. Elementos de direito

constitucional da República Federal da Alemanha, cit., p. 53-75; iii) BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo, cit., p. 290-377; iv) SOUZA NETO, Cláudio Pereira de;

SARMENTO, Daniel. op. cit., p. 391-463.

113Fenômeno muito bem sintetizado por Luís Roberto Barroso: “A ideia de constitucionalização do Direito aqui explorada está associada a um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, para todo o sistema jurídico. Os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional. Como intuitivo, a constitucionalização repercute sobre a atuação dos três Poderes, inclusive e notadamente nas suas relações com os particulares. Porém, mais original ainda: repercute, também, nas relações entre particulares”. BARROSO, Luís Roberto. Curso

Influência revertida quando da promulgação da primeira constituição republicana, que ocorreu primeiramente no Brasil (1891) para, somente em 1911, ser o regime político adotado em Portugal.

De qualquer sorte, Brasil e Portugal passaram pelos modelos de Estado Monárquico Constitucional Liberal, Republicano Liberal, Republicano Social e, atualmente, Republicano Social Democrático, sendo que a atual carta brasileira (1988) guarda grande influência da carta portuguesa de 1976, ambas fruto de um processo de redemocratização.

Por outro lado, a influência mútua e recíproca entre as cartas portuguesas e espanholas também é patente, o que permite afirmar a existência de uma tradição

constitucional ibérica já enraizada nos países integrantes da Península Ibérica e da

América Latina114.

3.4. A evolução teórica do constitucionalismo: de um documento político para um