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Direitos sociais sob o prisma restritivo das “políticas públicas”: uma visão crítica

5. DIREITOS SOCIAIS E SUA PROTEÇÃO JURISDICIONAL: DO ATIVISMO

5.2. Direitos sociais sob o prisma restritivo das “políticas públicas”: uma visão crítica

Começo afirmando que a doutrina pátria majoritária aborda o tema da proteção jurisdicional dos direitos humanos fundamentais sociais pelo prisma das chamadas

políticas públicas, tema inserido na intersecção entre o direito administrativo e o direito processual civil209 – abordagem notoriamente diversa da proposta neste trabalho e que,

portanto, conduz a conclusões também diversas das que serão aqui expostas.

Tal realidade é de fácil constatação a partir de consagrada definição doutrinária de “política pública”210 cunhada por Maria Paula Dallari Bucci:

Política pública é o programa de ação governamental que resulta de um

processo ou conjunto de processos juridicamente regulados – processo

eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando

      

208“Afirmei, no início, que o importante não é fundamentar os direitos do homem, mas protegê-los. Não preciso aduzir aqui que, para protegê-los, não basta proclamá-los. Falei até agora somente das várias enunciações, mais ou menos articuladas. O problema real que temos de enfrentar, contudo, é o das medidas imaginadas e imagináveis para a efetiva proteção desses direitos.” BOBBIO, Norberto. op. cit., p. 36-37. 209Para maior aprofundamento sobre o tema “políticas públicas” dentro deste enfoque

administrativo/processualista, indico duas importantes coletâneas de artigos jurídicos: i) BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico, cit.; ii) GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo (Orgs.). O controle jurisdicional de políticas públicas. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

210Outros conceitos de política pública, nesta mesma linha de concretização, no plano material, de direitos assegurados aos cidadãos frente ao Estado, com ênfase na atividade administrativa e interventiva estatal executada pelo Poder Executivo, são encontrados em: i) BITENCOURT, Caroline Müller. Controle

jurisdicional de políticas públicas. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2013. p. 44-76; ii) JORGE NETO, Nagibe

de Melo. O controle jurisdicional das políticas públicas: concretizando a democracia e os direitos sociais fundamentais. Salvador: JusPODIVM, 2008. p. 51-58.

coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados.

Como tipo ideal, a política pública deve visar a realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que se espera o atingimento dos resultados211. (grifado)

Fácil perceber que tal conceito de “políticas públicas” está intimamente atrelado à atividade da administração pública, de execução dos diversos comandos normativos plasmados em dado ordenamento jurídico estatal com vistas a vincular as diversas ações do Estado, em uma atividade interventiva em prol dos cidadãos – atividade concretizadora, no

plano material, dos direitos assegurados.

E a função estatal por excelência, histórica e teoricamente ligada a tais atividades, é o Poder Executivo, a quem compete, de forma muito sucinta e grosso modo, a “execução das leis”, conforme construção clássica de Montesquieu.

Leis essas editadas pelo Poder Legislativo, via legislador ordinário, eleito pelo voto dos cidadãos dentro da lógica democrática representativa, em que a regra da maioria configura critério objetivo claro e seguro, a ponto de ser confundida com o próprio conceito de democracia.

Como ao Poder Judiciário fica atrelada a tarefa proeminente de controlar as atividades das duas outras funções estatais em termos de adequação constitucional e legal,

não podendo agir de ofício, mas somente por provocação – princípio da inércia da

jurisdição, sendo talvez o maior instrumento de controle de tal função estatal –, não é de se estranhar que os estudos acerca da efetivação dos direitos humanos fundamentais sociais deem grande ênfase e proeminência às atividades legislativas e executivas, abordando o Poder Judiciário dentro de uma linha restritiva, de não intervenção sobre os programas governamentais voltados à implementação de tais direitos.

Sucede que tal viés de estudo, com todo o respeito, não observa os dois importantíssimos e imprescindíveis pontos de partida utilizados neste trabalho para a análise dos direitos humanos fundamentais: i) a evolução histórica e teórica dos direitos humanos fundamentais dentro de um contexto de lutas pelo reconhecimento do ser humano como sujeito de direitos e do processo de sacralização da pessoa humana; ii) o movimento constitucionalista, também em seu contexto evolutivo.

      

211BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006.

Foi da análise conjunta desses dois movimentos histórico-teóricos que foi possível extrair a inexorável conclusão no sentido de que os direitos humanos fundamentais caminham rumo à universalização, como conquistas e garantias que se estendem a toda a humanidade, alçadas à categoria de normas jurídicas constitucionais como verdadeiros pilares dos Estados Nacionais, constituindo direitos subjetivos dotados de grande carga eficacial, protegidos por importantes mecanismos, também constitucionais.

Se assim o é, também o Poder Judiciário passa a assumir papel de protagonismo como função estatal garantidora dos direitos humanos fundamentais, inclusive os sociais, já que se trata de poder responsável pela importante função de “guarda da constituição”, conforme inquestionável construção teórica clássica.

Tal constatação, aliada à noção de que as funções estatais, não obstante independentes, devam guardar relação de harmonia entre si (harmonia entre os poderes, conforme assegurado no artigo 2º, da Constituição), fazem com que não haja mais espaço a interpretações no sentido de que ao Poder Judiciário não caberia exercer o papel de garantidor da efetividade dos direitos humanos fundamentais sociais.

O que ocorre é que o tema “políticas públicas”, ao ser estudado pelo viés administrativo-processualista, ainda caracteriza o Poder Judiciário dentro da lógica de Estado de Direito liberal-burguês, ou seja, como se o juiz ainda exercesse a função de mera “boca da lei”, para utilizar expressão consagrada cunhada por Montesquieu.

É como se ao Poder Judiciário somente competisse a realização da justiça “comutativa” ou “retributiva”212, qual seja, a resolução de conflitos individuais entre

particulares, sem o exercício de controle sobre as atividades estatais, ou acerca da garantia daquele espaço de liberdade aos cidadãos, dentro da lógica da não intervenção estatal em certas áreas (direitos humanos fundamentais de primeira dimensão).

Não se discute com a profundidade necessária a transformação das funções judicantes e seus novos papéis em razão da transformação daquele Estado de Direito liberal no Estado Social de Direito, e a evolução deste para a atual conformação de Estado Social e Democrático de Direito.

De fato, com o surgimento, a sedimentação e o desenvolvimento dos direitos humanos fundamentais sociais e de terceira dimensão (transgeracionais), inverteu-se

      

212Para um enfoque filosófico sobre a justiça comutativa, confira-se: LOPES, José Reinaldo de Lima.

completamente a lógica de atuação estatal: de uma vedação de atuação pelo Estado para uma exigência cada vez maior de sua intervenção, pois o número de direitos assegurados cresce paulatinamente, assim como as pessoas beneficiadas.

Surge, assim, uma nova espécie de conflitos, entre Estado e cidadãos, entre o Estado e a coletividade como um todo, e mesmo entre diversas funções estatais, conflitos esses a serem dirimidos pelo que se passa a chamar de “justiça distributiva”213.

E a quem compete exercer o controle jurisdicional de tais conflitos? Inegavelmente, ao Poder Judiciário214, mesmo que com sua arcaica estrutura moldada a partir do modelo

de Estado de Direito liberal, datado do século XVIII, e que ainda permanece em termos gerais inalterada, não obstante seja patente sua insuficiência para fazer frente a tais conflitos, típicos do atual modelo de Estado.

5.3. Rebatendo os principais argumentos contrários à legitimidade do Poder