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2 CAPÍTULO ESPAÇO PÚBLICO, A RUA E SEUS MORADORES

2.3 Concepções sobre o uso da rua

Em meio a essa dinâmica de segregação dos espaços urbanos, ainda é possível destacar nesses a existência de locais em que o acesso ainda se considera como sendo a todos, independente de sua condição financeira: os espaços das ruas e das avenidas, praças, praias urbanas, onde se vê claramente a presença de toda a sociedade. É nesses locais onde se pode descobrir quem de fato faz parte do contexto urbano. Circulando a pé, em carros de pequeno ou de grande porte, todos precisam passar por esses locais ou passar algum período neles, para ter acesso a outros locais, para o lazer, para o consumo, para apreciar outras pessoas; ou, utilizando o contexto brasileiro, para os grandes eventos populares (como o carnaval de rua, por exemplo, nas cidades de Olinda, Salvador), para as reivindicações políticas (como a marcha dos jovens pelo impeachment do ex-presidente Fernando Collor), para as festividades religiosas, com suas procissões que tomam as ruas. Enfim, são locais em que todos fazem parte, abertamente.

Tomando a rua como destaque para reflexão acerca de sua apropriação pelo homem, pode-se verificar que esse é um espaço considerado público, organizado pelo Governo, para o acesso de todos: em seu calçamento, sua iluminação, sinalização, construção de calçadas e conservação de todos esses objetos. É um espaço construído, delineado pelo homem para o uso de todos. Assim, as pessoas se apropriam desses

locais através de seu corpo, seja passeando, apreciando paisagens, trabalhando nele, seja correndo para o trabalho, entre outras atividades que caracterizam a utilização do espaço da rua.

Em uma discussão acerca dos sentidos do uso da rua, (CARLOS, 2007, p.53-54), destaca-se que essa pode ser apropriada apenas como uma passagem para a ida ao trabalho; pode ter um sentido em si mesma, quando utilizada como local de trabalho, a exemplo dos camelôs que montam seus negócios na rua (e ainda até mesmo o semáforo, segundo a autora, é apropriado como “local” de trabalho, onde se vendem vários objetos para os motoristas); pode ter o sentido ainda de normatização da vida, com suas placas e sinais indicando o controle da circulação social. As ruas, nesta reflexão, também tem o sentido de segregação social, no momento em que o uso de seus espaços só é possível através da aquisição daquilo que se oferece neles, como foi explicitado anteriormente. E ainda, a rua pode ter o sentido de ser local de formação dos chamados guetos urbanos, entendido como espaços onde se pode tecer uma cultura própria de um segmento da sociedade, mas que, como não se trata de uma maioria social, isola-se em determinados espaço; além disso, há os sentidos de festa e de reivindicação como próprios da rua.

Nessa reflexão, a rua também é apresentada no sentido do morar. É interessante que a autora descreve esse sentido como sendo restrito à cidade de São Paulo, mas sabe- se que essa realidade é presente nas capitais brasileiras e vem crescendo de forma significativa, especialmente nos últimos anos. Seja qual for a maneira em que se dá o significado da rua para a pessoa que se apropria dela, o fato é que esse local mantém em sua essência o sentido do encontro (CARLOS, 2007, p.54): para o encontro e diversão da família, o encontro de amigos para jogar cartas, festas entre vizinhos de um mesmo bairro.

Tais sentidos configuram a rua como sendo um espaço vivido, e ainda:

[...] representa a cotidianidade na nossa vida social [...]. Lugar de passagem, de interferências, de circulação e de comunicação, ela torna-se, por uma surpreendente transformação, o reflexo das coisas que ela liga, mais viva que as coisas. Ela torna-se o microscópio da vida moderna. Aquilo que se esconde, ela arranca da obscuridade. Ela torna público. (LEFEBVRE apud CARLOS, 2007, p.54).

A autora ainda considera que “[...] no movimento da rua encontra-se o movimento do mundo moderno” (CARLOS, 2007, p.50), considerando que

especialmente nas grandes cidades, a rua tem se tornado lugar mais de passagem do que de permanência, não encontrando nesse o seu lugar de referência fixa, mas de “acesso a”, isto é, de meio para se chegar até os locais aos quais estão destinados. E ainda mais, que a rua também está submetida ao sistema de rendimentos e de lucro, na medida em que “regula o tempo além do tempo de trabalho” (LEFEBVRE apud CARLOS, 2007, p.56), ao trazer apenas a possibilidade da compra de produtos como opção de utilização da rua pelo homem.

Ao abordar a sociedade urbana em seus estudos, o autor Lefebvre traz uma reflexão sobre a rua em seu sentido positivo e negativo ou, como ele mesmo afirma, traz argumentos “a favor e contra a rua” (LEFEBVRE, 1999, p.27). Na argumentação favorável à rua, o autor afirma não ser esse apenas um local de passagem e circulação, mas é o caminho de obsessão dos veículos e o espaço do encontro, além de ser o acesso aos demais lugares; e, ainda, é o local da mistura, do movimento, onde todos se tornam espectadores, atores, em um mesmo espetáculo. Também a rua traz consigo “[...] a função informativa, a função simbólica, a função lúdica” (idem, p.28) e, aparentando uma desordem, na verdade é espaço livre para a dinâmica dos elementos congelados da vida urbana. O autor aponta para o fato de que o movimento nas ruas, de certa forma, protege as pessoas da ocorrência de crimes, o que não ocorre quando se circula por alguma rua num momento sem movimentação; faz também memória dos acontecimentos revolucionários os quais, ao ocorrerem na rua, parecem gerar uma desordem, mas esses acontecem justamente com o objetivo de reivindicar por uma nova ordem (idem, p.28).

Já os argumentos que são contrários à dinâmica da rua, trazidos pelo autor, são no sentido de demonstrar que, apesar de proporcionar encontros, o que se experimenta são presenças superficiais em que, na verdade, “se caminha lado a lado” (LEFEBVRE, 1999, p.28), e não há o objetivo de se constituir um grupo social, mas de ir em busca da realização do consumo. Vista por esse ângulo, a rua se define como uma grande vitrine de mercadorias expostas para transformar o tempo do pedestre, ao passar pelas lojas, em tempo de compra e de venda, e essa assim passa a ser uma das formas da relação do espaço com o tempo. O autor ainda ressalta o fato de se poder falar em uma “colonização do espaço urbano” que se efetua na rua, pelos objetos exibidos para o consumo que se tornam o espetáculo das ruas e, ainda, que as festividades promovidas e autorizadas para ocorrerem nas ruas são, na verdade, uma apropriação caricata da rua,

diferente da apropriação através da manifestação pública (a qual ele chama de verdadeira apropriação), e que essa é combatida pelas forças repressivas (idem, p.29).

Complementando a ideia da rua como “local de repleta fluidez e movimento” (DAMATTA, 1997, p.57), ao se considerar que toda a dinâmica social é refletida no movimento da rua, também as sequelas da banalização do homem permeiam esse espaço. As experiências do mundo moderno nesse espaço podem ser verificadas quando se utilizam expressões ao se referir à rua como um espaço “onde cada um deve zelar por si” (idem, p.55), no qual “ninguém é de ninguém”, revelando o contexto da individualidade que orienta as relações na sociedade; é o lugar da malandragem, onde não há uma preocupação com o valor do outro, pois não se estabelecem relações permanentes com ele, só “de passagem”. O autor Damatta ainda argumenta que ficar doente ou morrer na rua, ter necessidades fisiológicas ou desmaiar em um local como a rua é viver uma experiência de isolamento e da sensação negativa de estar em um local desconhecido, já que a rua é um espaço de ninguém – onde não há identificação e responsabilidade sobre o outro (DAMATTA, 1997, p.59).

A rua também é denominada como “um local perigoso” (idem p.57), na medida em que em seus diversos locais podem ocorrer acidentes, mas sobretudo os atos de violência, pois que não há um controle absoluto sobre a circulação e atitudes das pessoas que transitam pelas ruas. É por isso que a sensação de insegurança também é algo vivenciado ao se passar pela rua – mesmo se houver um aparato policial no momento, numa tentativa de garantir a segurança e prevenir a ocorrência de crimes. Não há, portanto, uma associação da rua a um local favorável para se permanecer por muito tempo, já que se trata de um local caracterizado como inseguro. Nesse contexto, é demonstrado um lado negativo do significado da rua e que especialmente nas grandes cidades brasileiras, é frequente a violência em seus espaços.

O autor reflete também a respeito de expressões como “fiquei na rua da amargura” ou “vá pro olho da rua”, como símbolos de apartação de um indivíduo de determinado grupo social ao qual fazia parte; dessa forma, a rua é vista como o local de isolamento, como a alternativa para quem não tem mais referência social. A rua sinaliza, assim, a exclusão a que diversas pessoas estão submetidas, consequência da contradição do chamado desenvolvimento. Esse movimento de expulsão para a rua segue, na verdade, a ideia de que a rua é o local onde se deposita aquilo que não serve mais para estar no nosso meio; onde se joga o que não tem mais valor, como lixo que é posto na

rua. Por mais que se deseje passar por vias limpas e bem cuidadas pelo poder público, não há nenhum receio em se jogar lixo pela janela do carro, dos edifícios ou mesmo ao circular pelas ruas, pois ali não se tem uma necessidade de preservação imediata; a rua é o local do que é desprezado, daquilo que não tem utilidade alguma.

Da mesma forma, aquele que tiver chegado ao ponto de “parar na rua” e passa a permanecer nela é visto como alguém que foi desprezado e que esse é o lugar próprio para essa condição – de que “não serve mais”. Porém, diferentemente dos demais objetos jogados nas ruas (em que não há mais alternativas para seu uso), as pessoas que se encontram nessa condição continuam sentindo necessidades imediatas e secundárias, consideradas importantes; mas se esquece de se considerar tais necessidades. Por isso, as pessoas que passam a ter suas vidas resumidas a esses espaços tentam de alguma forma agora se utilizar dele para vencer a batalha travada diariamente pela sobrevivência.

A rua nada oferece que se possa permanecer nela de fato; mas ao mesmo tempo ela é a via de acesso a todos os recursos existentes na cidade. Experimentar a tentativa de conseguir algo através da rua é impulsionar a criatividade e a luta, no que diz respeito a elaborar estratégias que façam desse local um meio para se chegar ao objetivo desejado. Para tanto, é preciso que se vá a cada instante adentrando nesse espaço e conhecendo suas entrelinhas e, assim, apropriar-se, tomar posse, utilizar aquilo que a rua pode oferecer. A venda de objetos nos sinais, por exemplo, (CARLOS, 2007, p.59) é aquilo que pode ser reconhecido como uma forma de apropriação de um dos espaços da rua, local onde se concentram todos os veículos que circulam na cidade, e, a partir do contato com as pessoas que os conduzem, é possível obter alguma renda. Assim, “[...] o imprevisto, o inusitado aflora na rua e é passível de ser apreendido como elemento essencial ao entendimento do cotidiano e de sua superação” (idem, p.59). A rua, nesse sentido, torna-se não mais um local de passagem, mas a alternativa existente para que alguns encontrem nela a manutenção de sua sobrevivência.

Porém, tal forma de apropriação desse espaço urbano não é vista de forma agradável aos olhos dos demais “cidadãos”, pois estão modificando a finalidade da utilização do espaço da rua; estão, com sua permanência, descaracterizando a finalidade de “passagem” que a rua deve ter, além de comprometer a estética do local, desorganizando aquilo que deveria estar “em ordem”. Tornar um banco de uma praça a cama para dormir, as portas das lojas para abrigo durante a noite, as árvores das praças

como tetos para os momentos de banho com baldes, as calçadas como locais para comer, conseguir dinheiro ou deitar-se após umas doses de bebida são algumas das formas de apropriação da rua como um espaço onde se passa a viver. Chegar ao ponto de ter a rua como local de moradia, além da luta pela sobrevivência financeira, é visto como algo inadmissível por parte de um consenso generalizado, já que a rua não tem essa finalidade e não oferece aquilo que é encontrado no ambiente dito “do lar” que a caracterize dessa forma. Além disso, a noção de apropriar-se da rua da mesma forma como se apropria de um local para moradia submete-se à ideia de que o espaço que é de todos está sendo tomado por alguns, e isso contraria mais a aceitação da presença de pessoas morando nas ruas. E, ainda, implica dizer que os hábitos realizados no ambiente privado, como a casa, serão realizados ali, onde todos passam e veem, onde tudo é descoberto e contrasta toda a moralidade acerca da privação de certos costumes.

E no mais, ao se observar quem é aquele que se apropria do espaço da rua como sua moradia, aumentam-se os motivos da não-aceitação de tal atitude, por parte do restante da sociedade: são justamente aqueles considerados como “desprezados”, inúteis para o mercado de trabalho, para a família, para as unidades psiquiátricas, para o convívio social. Esse segmento da sociedade, que aumenta sua quantidade a cada dia, embora sob a repulsa e contestação do restante da sociedade, é visto como parte do cenário da cidade, de suas ruas, e existe não apenas no contexto atual, mas ao longo da história da formação das cidades e da constituição de seus espaços. Sendo pessoas de todas as idades e trajetórias de vida, os chamados moradores de rua “desenvolvem formas específicas de garantir a sobrevivência, de conviver e ver o mundo. Têm sobre a cidade um outro olhar, atribuindo novas funções aos espaços públicos” (VIEIRA, BEZERRA e ROSA, 1992, p.96). As pessoas que moram nas ruas buscam, dessa forma, ampliar o sentido de apropriação desse espaço e, com sua adaptação a tudo aquilo que faz parte da rua, enfrentam a indiferença, o medo, a desvalorização demonstrada pelo restante da sociedade quanto ao uso desse espaço. O próprio termo utilizado para denominá-los já enfatiza uma relação de contradições. Encontram-se entre a rejeição, por fazerem das ruas o seu local de moradia, e a naturalização de sua presença, por “merecerem” as ruas devido a seus infortúnios. Tal relação remonta a uma concepção de que a rua está sendo utilizada de uma forma para a qual ela não foi projetada, não importando se aqueles que assim o fazem sejam pessoas que não possuem referência, teto ou perspectiva de vida.

Nesse sentido, tornam-se válidas as reflexões que serão feitas posteriormente acerca daqueles os quais se apropriam da rua de forma permanente, tendo nela o sentido de moradia, pois além de estarem contra a maré da onda consumista, a qual adquire valor a partir do aspecto financeiro e dos bens, tornam pública a contradição em que se encontra a modernização da sociedade, que permite ainda a situação de miséria entre seus cidadãos.