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2 CAPÍTULO ESPAÇO PÚBLICO, A RUA E SEUS MORADORES

2.4 Sobre o morador de rua

2.4.3 Relação entre espaço público e morador de rua nas cidades brasileiras

Os espaços públicos são utilizados pelos moradores de rua como referência para conseguir sua subsistência e abrigo. Tal realidade foi comprovada no Brasil através de inúmeras pesquisas realizadas nos níveis local e nacional. De acordo com os dados da pesquisa do MDS feita junto às pessoas adultas que se encontravam instaladas nas ruas, no período da noite, nas capitais e em outras cidades de grande porte do Brasil, verifica- se que a maioria delas se adapta às ruas para dormir, justificando inclusive a preferência por essa alternativa aos albergues, os quais, segundo os entrevistados, são caracterizados pela falta de liberdade e pela rigidez nos horários que devem ser seguidos, além da proibição do uso de álcool e drogas no local; e o espaço da rua, ao contrário, não possui “restrições” para tais práticas.

Gráfico 1: Local onde os moradores de rua dormem (%) – Pesquisa entre 2007 e 2008.

Fonte: Pesquisa Nacional sobre a População em situação de rua. Meta, MDS/2008.

A pesquisa ainda afirma que, entre aqueles que preferem dormir em albergues, a maioria o faz por temer a violência durante o período da noite nas ruas (69,3% afirmaram esse motivo); 45,2% buscam conforto de um local para dormir. Esse é, aliás, um dos poucos recursos oferecidos pelas entidades governamentais e até mesmo por ONGs, em algumas cidades, para o morador de rua. Assim, tal população procura se adaptar à vivência nas ruas, encontrando galpões, terrenos vazios ou colunas de viadutos para se abrigarem à noite, fazerem suas necessidades ou fugir das agressões durante o dia; utilizam chafarizes públicos ou mangueiras de estabelecimentos comerciais, como postos de gasolina para tomar banho, entre outros recursos existentes, os quais compõem os espaços públicos das cidades. Muitos passam o dia nesses locais ou só o procuram à noite, quando cessa o movimento de toda a sociedade, e tais espaços se esvaziam, dando liberdade para a instalação. Essa realidade é retratada também na Pesquisa Nacional, a qual demonstra que os principais locais que os moradores de rua em geral utilizam para tomar banho, por exemplo, são a própria rua (32,6%), os albergues (31,4%), os banheiros públicos (14,2%) e a casa de parentes e amigos (5,2%). Já em relação aos locais utilizados para fazer suas necessidades, os entrevistados apontaram da seguinte forma:

0 10 20 30 40 50 60 70 80

Rua Albergue Ambos

22,1

Fonte: Pesquisa Nacional sobre a População em situação de rua. Meta, MDS/2008.

Cabe frisar nesse ponto que, apesar de não ser o local mais procurado, o uso dos estabelecimentos comerciais é citado como um dos recursos utilizados pelos moradores de rua para fazerem suas necessidades. Porém, não se sabe ao certo se tal uso não se dá com algum tipo de reclamação posterior, pois é comum esse tipo de prática por parte dos donos dos estabelecimentos, que tentam impedir a entrada dos moradores de rua nesses locais. O que se sabe é que, de fato, os moradores de rua vão adaptando suas necessidades diárias àquilo que esse espaço pode oferecer e “[...] transformam o espaço público – as ruas – em seu universo de vida e de sobrevivência privado. Às vezes tornam-se perigosos, na medida em que praticam delitos; ou simplesmente são estigmatizados como risco à segurança pública” (BURSZTYN, 2000, p.20).

Nesse movimento, os moradores de rua também vão acrescentando novos objetos aos monumentos já existentes, dando novo aspecto à paisagem construída. Remete-se assim à reflexão de que “[...] morar na rua dá um novo sentido ao uso do espaço público [...], enquanto o espaço coletivo de circulação torna-se espaço de morar. Esta subversão de regra faz da ocupação das ruas um fato conflituoso” (VIEIRA apud JUSTO, 2008, p.10). Ainda, quanto mais demarcam seu “espaço nas ruas” com seus poucos pertences, “mais escandalizam os demais usuários do espaço público” (idem, p.10).

Nesses locais, além de realizarem as estratégias de sobrevivência diária já citadas, acabam desenvolvendo hábitos referentes ao convívio social, tais como: reuniões em rodas, conversa entre si, namorar, beber, fumar (algumas usam drogas),

32,5

25,2 21,3

9,4 2,7

Gráfico 2: Locais onde os moradores de rua fazem suas necessidades (%) - dados entre 2007 e 2008. Rua Albergue/Abrigo Banheiros Públicos Estabel.comerciais Casa de parentes/amigos

entre outros. Também buscam pernoitar em grupos como forma de se protegerem dos perigos da noite e, de alguma forma, obterem alguma “segurança”; destaca-se o fato de que nesses grupos “[...] a pessoa recupera, até certo ponto, sua identidade pessoal e social; ela é aceita na condição de igual, enquanto que, por outros segmentos sociais, é discriminada e inferiorizada” (VIEIRA, BEZERRA e ROSA, 1992, p.59). Dessa forma, procuram encontrar nas ruas a satisfação mínima de suas necessidades, já que esse é o local que lhes resta para aí sobreviver. A rua torna-se, nesse sentido, um modo de vida, conforme se reflete a seguir:

Ser morador de rua não significa apenas estar submetido à condição de espoliação, enfrentando carências de toda sorte, mas significa, também, adquirir outros referenciais de vida social, diferentes dos anteriores, baseados em valores associados ao trabalho, à moradia, às relações familiares (VIEIRA, BEZERRA e ROSA, 1992, p.96).

Ainda de acordo com as autoras, “cair na rua” – passar a morar nas ruas – significa romper com as formas socialmente aceitas de vida (VIEIRA, BEZERRA e ROSA, 1992, p.97) e que, gradualmente, conforme o tempo que se permanece nesses locais, vão dando lugar a uma nova forma de vivenciá-las. Assim, “[...] a rua deixa de ser o contraponto negativo da casa (...) trata-se, na verdade, de um processo de perdas, por um lado, e de novas aquisições por outro” (idem, p.98). Sendo assim, desenvolvem nas ruas os hábitos citados, considerados de cunho privado – pois são realizados ordinariamente em ambientes considerados como tais –, tornando-os expostos no ambiente público. Essa exposição é que também causa indignação, pois isso não é considerado aceitável como comportamento social e nem a rua é considerada como local para a realização de tais atos.

Por tal motivo é que a presença dessas pessoas nos espaços públicos é vista como sinal de desordem, de caos na sociedade. Essa presença é vista com desprezo, com nojo, pelas pessoas que passam e veem os moradores de rua. É vista com indignação por parte daqueles que têm estabelecimentos comerciais ou públicos, porque os moradores de rua estão “afugentando os clientes”. Os moradores de rua são vistos como um “lixo”, e não mais como pessoas que estão nesse ambiente atingidos por diversas contingências, que não estão nas ruas por uma simples escolha. Dessa forma, a vida dos moradores de rua é apontada “[...] não apenas pela ausência de moradia permanente, convencional, mas também por uma ausência ou atenuação de papéis

consensualmente definidos de utilidade social e valor moral” (SNOW e ANDERSON, 1998, p.28). Assim, os moradores de rua são desvalorizados, desrespeitados em sua condição humana e são isolados cada vez mais do convívio e da aceitação social, sendo diminuídas as chances de saída das ruas e, consequentemente, aumentando a necessidade de apropriar-se do espaço das ruas como moradia.

Por isso mesmo, a utilização das ruas como ambiente de moradia ocasiona desde ações individuais de reclamações com os próprios moradores a ações de cunho geral, como a retirada dessas pessoas por parte da polícia, dos órgãos públicos (estes afirmam que realizam ações com vistas à organização do espaço público do qual o Estado é responsável); há uma resistência social ao fato de que as ruas acabam sendo apropriadas por várias pessoas para moradia e sobrevivência.

Verifica-se em ações publicamente conhecidas tal rejeição, como espancamentos e até assassinatos dos moradores de rua, por parte daqueles que demonstram com isso não aceitar a presença desse público. Donos de estabelecimentos que jogam óleo, água nas calçadas dos locais para que não se abriguem em frente às lojas; ações policiais, que se dão tanto pela retirada das pessoas dos bancos das praças, das calçadas, quanto pela destruição dos poucos pertences dos moradores de rua durante a madrugada; e até mesmo medidas governamentais, com o intuito de “limpar” a cidade, retirando as pessoas das ruas e jogando-as em albergues provisórios ou cercando com grades os locais onde se instalam as pessoas nas ruas, impedindo o acesso destas.

Tais práticas, como se sabe, são também históricas e consideradas como reflexo da forma como a problemática do morador de rua é tratada no Brasil. Existem, inclusive, produções artísticas que mostram, por exemplo, a realidade da visão do poder público no trato da população de rua no país nos anos 1960, através do assassinato de mendigos no Rio de Janeiro, com o intuito de tornar a cidade “limpa” para a visita da Rainha Elizabeth (filme Topografia de um desnudo). Episódios conhecidos nacionalmente, como a chacina da Candelária (assassinato de seis crianças e dois adultos que dormiam ao relento), ocorrido no ano de 1993, no Rio de Janeiro; o assassinato do Índio Galdino, no ano de 1997 (que foi queimado por jovens enquanto dormia em um ponto de ônibus na cidade de Brasília), a pichação de um mendigo em Porto Alegre, no ano de 2010, e tantos outros crimes contra moradores de rua denotam o preconceito a partir do qual se vê essa problemática ainda na contemporaneidade.

Dessa forma, os moradores de rua estão completamente expostos à insegurança pessoal, estão desprotegidos por todos os lados, são sujeitos à violência permanente e, ainda, são vistos como os marginais, como os violentos (embora muitos utilizem dessa atitude para se defenderem ou para conseguirem o que não possuem), dos quais a sociedade deve ter medo, deve se afastar. A instalação das pessoas para morar na rua é sinônimo de perigo, do “fim da tranquilidade” da sociedade, apenas pelo fato de morar na rua, independente das circunstâncias que as trouxeram até lá, de quem sejam ou do que precisam.

Portanto, não há uma aceitação da presença das pessoas morando nas ruas; não há uma aceitação da sua instalação nos espaços de passagem, do transitório. E não importa como devem sair dessa situação, importa que não ocupem esses espaços, não incomodem a passagem, o caminho daqueles que transitam; não importunem a ordem estabelecida.

2.5 A resposta à apropriação dos moradores de rua dos espaços públicos: o