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Breve resgate histórico sobre a existência do morador de rua O contexto de desigualdades existente na sociedade faz com que contingentes

2 CAPÍTULO ESPAÇO PÚBLICO, A RUA E SEUS MORADORES

2.4 Sobre o morador de rua

2.4.1 Breve resgate histórico sobre a existência do morador de rua O contexto de desigualdades existente na sociedade faz com que contingentes

cada vez maiores da população se encontrem em condições precárias de vida, a ponto de não ter outra alternativa para a sobrevivência a não ser estar nas ruas. Cada vez mais a presença de pessoas – homens e mulheres de todas as idades – adaptando-se a um modo

de vida nesse espaço se faz evidente no cenário de vários países, sobretudo no Brasil,

onde esse contingente parece aumentar ao longo dos anos. Tal condição, porém, não se encontra apenas no contexto contemporâneo. Verifica-se que, historicamente, a existência de pessoas nas ruas como consequência da falta de acesso às condições mínimas de sobrevivência já era frequente, bem como as parcas ações para enfrentar tal questão.

A existência de pessoas morando nas ruas não é recente. Verifica-se já a presença dos estrangeiros que perambulavam pelas ruas dos grandes centros já na Idade Antiga (como, por exemplo, na cidade de Roma) e durante a era pré-industrial, com a “onipresença de mendigos” (SNOW e ANDERSON, 1998, p.29). De acordo com os autores,

[...] não há certeza sobre como exatamente essas pessoas conseguiam sobreviver. A mendicância era um meio comum de subsistência e se combinava, às vezes, com roubo e prostituição, mas ‘muito do seu tempo parecia ter sido gasto perambulando, à espera para se envolver no que quer que estivesse acontecendo (SOLPERG, 1960 apud SNOW e ANDERSON, 1998, p.29).

As pessoas que se encontram nessa situação já desenvolviam comportamentos que se caracterizavam como “adaptações a necessidades ambientais” (SNOW e ANDERSON, 1998, p.75). Os moradores de rua tinham, assim, o espaço urbano como

seu espaço de moradia e de sobrevivência, sem o apoio estrutural comum aos considerados incluídos.

Na Idade Moderna, as ações do Estado europeu com relação às pessoas em condição de pobreza funcionavam no sentido de oferecer auxílios assistenciais (como se pode recordar a Lei dos Pobres na Inglaterra – 1601) à população incapaz para o trabalho; porém, esses recursos não eram destinados àqueles considerados como mão de obra disponível. Ao contrário, a esses era destinado estímulo à aceitação de qualquer trabalho, por pior que fosse; e caso não se aceitasse, eram condenados com as mais diversas punições. E ainda no século seguinte, a criação, na Inglaterra, da Speenhamland Law (1795) se destinou a complementar a renda dos trabalhadores com um auxílio mínimo, pois a condição de pobreza já era considerável; porém, não havia políticas diretas voltadas para as pessoas que viviam nas ruas, para quem a situação de miséria era ainda mais evidente.

Para Karl Marx, essas pessoas eram consideradas como o lumpen, que na tradução significa “homem-trapo”; eram vistos como a escória da sociedade, como aqueles incapazes de se organizarem como classe, que não colaboram para a unificação da sociedade e, pelo contrário, apenas se beneficiam dela. Por isso, Marx se referia de modo pejorativo à presença dessas pessoas no círculo social, citando em suas obras algumas características desse segmento:

[…] Lado a lado com roués decadentes, de forma duvidosa e de origem duvidosa, lado a lado com aventureiros rebentos da burguesia, havia vagabundos, soldados desligados do exército, presidiários libertos, forçados foragidos das galés, chantagistas, saltimbancos,

lazzarani, punguistas, trapaceiros, jogadores, maquereaus

(alcoviteiros), donos de bordéis, carregadores, literati, tocadores de realejo, trapeiros, amoladores de faca, soldadores, mendigos – em suma, toda essa massa indefinida e desintegrada, atirada de ceca em meca, que os franceses chamam la boheme; [...]. (MARX, 2002, p.97- 98).

Em outra obra de sua autoria, Marx ainda traz o conceito de lumpen como sendo do “proletariado em farrapos”; em sua explicação, esse segmento seria constituído de “[...] elementos desclassificados, miseráveis e não-organizados do proletariado urbano” (MARX, 2001, p.108) ou ainda como a “[...] putrefação passiva dos extratos mais baixos da velha sociedade” (MARX, 1999, p.24).

Tais camadas mencionadas acima costumavam fazer parte do quadro do centro urbano, no local de maior movimentação econômica e social. Diversos estudos

históricos constatam a existência daqueles que não se incluíam na dinâmica de atividades proletárias. Além de idosos e crianças desamparados pela família e que ficavam pelas ruas, pedindo ajuda para se sustentarem a cada dia, a existência de pessoas adultas era evidente e cada vez maior pelas ruas, a viverem de esmolas, de bicos, de roubos ou outros modos de conseguirem sustento diário. O autor Castel, em sua discussão acerca do trabalho, cita a presença daqueles que classifica como

supranumerários (CASTEL, 2005, p.25), destacando o seu grande número nos centros

urbanos, mas que “não fazem nada de socialmente útil” (idem, p.25) e que, por isso, não possuem um lugar na sociedade; não representam força de pressão, pois “[...] não atuam diretamente sobre nenhum setor nevrálgico da vida social” (idem, p.25). O autor ainda diz que a situação daquele que é denominado de vagabundo é, de certa forma, contraditória, pois “[...] em falta quanto ao imperativo do trabalho, também é, muito amiúde, rechaçado para fora da área da assistência” (CASTEL, 2005, p.42), considerando que a vulnerabilidade desse segmento se dá, em certa medida, pelo “enfraquecimento das proteções” (idem, p.45).

Sem trabalho, sem apoio do Estado, destituídos das condições básicas para se inserirem na sociedade, as pessoas adultas que perambulavam pelas ruas – consideradas aptas para o trabalho – ainda sofriam dos estigmas que os denominavam como:

“[...] indivíduos mal-afamados: caymands (isto é, aqueles que mendigam sem motivo; tratava-se da versão pejorativa do mendigo válido), velhacos, biltres (mendigos simulando enfermidades), ociosos, luxuriosos, rufiões, tratantes, imprestáveis, indolentes [...] (CASTEL, 2005, p.120).

No auge da industrialização, no século XVIII-XIX, a intensificação daquela massa de pessoas que estavam fora da dinâmica do trabalho constituiu a situação de pauperismo generalizado. A denominação de lumpen para as massas que se encontravam nas ruas classificou-as como pertencentes a uma “classe perigosa” à ordem social. Porém, constata-se que a maioria das pessoas rotuladas dessa forma era destituída de bens no aspecto econômico e nos aspectos sociais, afetivos, morais. Dessa forma, pode-se afirmar que a moradia de rua é consequência de uma modificação na teia de relações sociais de indivíduos, a qual “perdeu a força ou se esgarçou” (SNOW e ANDERSON, 1998, p.25).

Afirma-se que um fator comum que os levava à condição de moradia nas ruas seria o rompimento social com os principais setores da sociedade (família, trabalho, moralidade); consequentemente, as pessoas que passavam por tal situação acabavam tomando os espaços públicos, retratando a sua “falta de referência”. Os locais de maior movimentação eram geralmente ocupados por certo número de pessoas, como forma de ali disputarem o ganho de qualquer forma para sobreviverem. Desse modo:

Realmente, saber que a maioria dos indivíduos rotulados de mendigos ou de vagabundos era, de fato, formada por pobres coitados levados a tal situação pela miséria e pelo isolamento social, pela falta de trabalho e pela ausência de suportes relacionais, não podia desembocar em nenhuma política concreta no quadro das sociedades pré-industriais (CASTEL, 2005, p.139).

Eram, portanto, sujeitos que estavam desprovidos também de qualquer mobilização, seja por parte da sociedade, seja do Estado, para que saíssem da situação de circulação e permanência nas ruas, pois eram também desprovidos de “[...] papéis consensualmente definidos de utilidade social e valor moral” (SNOW e ANDERSON, 1998, p.28). Assim, pode-se perceber que a presença de pessoas habitando nas ruas – tendo esse espaço como local para sobrevivência – fazia parte do cenário urbano e, dessa forma, não estimulava maiores ações que buscassem modificar a situação desses indivíduos.

A presença das pessoas que moram nas ruas persiste ao longo dos séculos, concomitantemente com as transformações ocorridas com o capitalismo na sociedade, em diversas partes do mundo. Sobretudo nas economias capitalistas formadas

tardiamente, nos países considerados subdesenvolvidos – porque seu desenvolvimento

no sistema capitalista não ocorreu no mesmo período da Europa –, a existência de pessoas que moram nas ruas acompanha a formação socioeconômica desses países.

No Brasil, no século XIX (início da Primeira República), relatos afirmam que o fim do regime escravocrata teve por consequência a ocupação dos pobres no espaço urbano, os quais se movimentavam pelas ruas em busca de emprego e de um teto para abrigar-se. Registra-se que naquele período os antigos escravos, forros, habitantes vindos do interior do país, além de brancos pobres, constituíam a massa de pessoas que perambulavam pelas cidades. De fato, tal realidade era composta por “[...] uma série de trabalhadores pauperizados e expropriados e a eles juntam-se os imigrantes europeus.

Estes se enquadram nas mais diversas atividades para garantirem a sobrevivência” (JUSTO, 2008, p.11-12). Constata-se que os fatos históricos da Abolição da escravatura e da instauração do regime republicano deixaram à margem um sem-número de pessoas em condições miseráveis de vida, tendo que sobreviver em diversos espaços da cidade. Afirma-se que essas populações eram “[...] acusadas de atrasadas, inferiores e pestilentas, [e] [...] seriam perseguidas na ocupação que faziam das ruas, mas, sobretudo, seriam fustigadas em suas habitações” (MARINS, 2001, p.133), as quais eram construídas em sua maioria sob a forma de cortiços, feitas sobre palafitas, mocambos, demonstrando a situação de miséria em que essas populações se encontravam.

Tais locais, considerados como insalubres, foram foco de diversas doenças e pestes que assolavam a população das capitais – inclusive com registro de grande quantidade de mortes – nesse novo período político-social. A cidade do Rio de Janeiro é tida como exemplo da realidade encontrada nas demais cidades, com as ruas imundas e as casas “[...] sem infraestrutura de esgotamento e abastecimento de água” (MARINS, 2001, p.140) e que encontrava poucos recursos científicos para combater os efeitos dessas epidemias. As medidas impostas posteriormente, consideradas de cunho sanitarista, tiveram como uma de suas principais ações a demolição das habitações irregulares, buscando também reformular a urbanização da cidade. Na verdade, havia nessas ações o desejo “[...] de arrancar do seio da capital as habitações e moradores indesejados pelas elites dirigentes” (idem, p.141), como forma de organizar o espaço em vista de seus interesses, restringindo o acesso aos principais pontos da cidade àqueles que faziam parte do perfil elitista, buscando dar um aspecto luxuoso e atraente à cidade e aos investimentos internacionais. Porém, muitas das medidas não obtiveram sucesso, pois o surgimento das favelas, por exemplo, não eliminou a precariedade da construção de habitações e, ainda, ocupou espaços dentro das cidades, obrigando a convivência das elites com as camadas populares. Ainda, a obrigatoriedade da reforma sanitarista, através da campanha geral de vacinação, somada à série de demolições de habitações, gerou um caos nas ruas do centro da cidade do Rio de Janeiro, no episódio conhecido como “a Revolta da Vacina”.

Ainda no Rio de Janeiro, nos anos seguintes, as reformas nas ruas e avenidas centrais tinham como quadro de ações a expulsão dos “ocupantes das ruas”, para não somente dar lugar aos novos prédios e construções, mas também de reservar as ruas

àqueles que, de acordo com a lógica de interesses, deveriam circular por elas, “privatizando” um espaço que a princípio deveria ser público (MARINS, 2001, p.150). Nesse período já existia a perseguição às chamadas “classes subalternas”, com a

vagabundagem sendo considerada como crime comum, com o tratamento violento por

parte do Estado, como forma de resolução dos problemas causados pela presença de pessoas perambulando pelas ruas. Também há referência aos “menores vadios”, aos mendigos e prostitutas, como focos de atuação do Estado, com o intuito de “sanear a sujeira” – tirá-los das ruas. Com isso, “[...] junto com os loucos que vagavam pelas ruas, toda uma ‘escória’ formada por ladrões, prostitutas, bêbados, mendigos etc., constituintes das ‘classes perigosas’, deram trabalho para os alienistas2. Estes tinham entre seus objetivos imediatos a moralização do espaço público” (JUSTO, 2008, p.12).

Na atualidade, com a condição de banalização do ser humano em todos os lugares do mundo, da disseminação da indiferença diante da precarização da situação de vida das pessoas, desconsidera-se a trajetória de vida daqueles que moram nas ruas e, dentro dela, o contexto de infortúnios em sua situação financeira, nas relações sociais, familiares, profissionais, entre outros. Tais vínculos, uma vez rompidos, fragilizam sobremaneira a condição moral de permanecerem inseridos socialmente e, ainda, são rotulados como “merecedores da rua” por suas “imperfeições ou falhas morais” (SNOW e ANDERSON, 1998, p.26-27). É a respeito desses aspectos que tratará o item a seguir.