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1 CAPÍTULO A FORMAÇÃO DAS CIDADES: HISTÓRICO E ATUALIDADE

1.1 A cidade: definição e suas primeiras formações

1.1.2 A urbanização a partir do século

Durante o século XX, de maneira particular, tais avanços ocorreram de forma acelerada, com o aprimoramento e consumo mais expressivo de produtos (como os veículos automotores, por exemplo) e do avanço na produção, agora realizada em série, a partir do sistema conhecido como fordismo. Esse sistema visava difundir uma produção em massa para que o consumo também assim o fosse, e de fato chegou a sê- lo, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, nos chamados “anos de ouro” no capitalismo. O fordismo não somente modificou a estratégia de produção de automóveis, mas de todas as grandes produções industriais; enfatizou a necessidade de o operário não precisar ter qualificação para exercer as atividades. Trouxe também para o âmbito das relações sociais a cultura de massificação do consumo, de modo que as pessoas que pouco ganhavam com o trabalho operário, ao adquirirem os diversos produtos expostos para consumo, colocavam novamente o dinheiro nas mãos dos investidores do capital.

Durante esse período e nas décadas seguintes, percebe-se um novo delineamento nas cidades, não só em seu aspecto físico como também nas relações sociais. A construção de mais estradas para interligar territórios e seu aprimoramento com os asfaltos e sinalizações, para melhor circulação de veículos; a construção de grandes centros empresariais, edifícios modernos; novos contornos na localização dos bairros, dos monumentos, dos serviços. O surgimento e evolução da tecnologia e da robótica começavam a acelerar o processo de chegada das informações, culminando na modernização dos meios de comunicação, os quais proporcionavam a chegada de informações com maior rapidez e precisão. Isso também influenciava o contexto das relações sociais, as quais se tornavam amplas, na medida em que possibilitava o contato cada vez maior entre os homens, entre povos. As cidades também se estendem em seus

limites e especificam seus acessos dentro delas; fragmentam-se em diversos espaços, com a presença de vários segmentos sociais, culturais. As indústrias vão sendo acrescidas dos sistemas financeiros que funcionam para movimentar a economia; ao mesmo tempo, porém, continuam crescendo as disparidades sociais, as revoltas populares e contestações até mesmo por parte de segmentos jovens, que ganham destaque em várias partes do mundo, os quais delatam os malefícios sociais, fruto do avanço de interesses privados.

O mundo foi palco, no cenário do século passado, em meio à busca por uma sociedade dita igualitária – com a tentativa frustrada da difusão do comunismo nos países – da definição dos centros de poder. Nesses locais, através de suas metrópoles, foi se constituindo uma soberania financeira, política, social que atualizou o esquema de dominação, sob o capitalismo, de umas nações sobre outras. Nas últimas décadas é possível contemplar uma realidade mundial ausente de fronteiras – no acesso a todos os países de toda a novidade tecnológica, informacional, de acesso a serviços – na chamada globalização. O mundo é denominado, dessa forma, como “aldeia global”, onde todos, de certa forma, compartilham dos mesmos avanços, onde as sociedades se diferenciam apenas pela localização geográfica, mas se tornam iguais em termos de necessidades de bens e serviços. Há uma “socialização da sociedade” (LEFEBVRE, 2001, p.91), ressaltando, conforme o autor, o aspecto “reformista” dessa socialização, no sentido de que tais avanços se dão em vista da manutenção do sistema vigente e à custa de uma maior exploração e segregação da sociedade, a partir do que se pode consumir.

As cidades, nesse sentido, são um reflexo do avanço e do contraste social. São referência para o homem do local o qual proporciona a satisfação de seus desejos. Ao ressaltar a busca do homem por “[...] lugares qualificados, lugares de simultaneidade de encontros, lugares onde a troca não seria tomada pelo valor de troca, pelo comércio e pelo lucro [...]” e de “[...] um tempo desses encontros, dessas trocas” (LEFEBVRE, 2001, p.104), enfatiza-se a necessidade do homem pela vida urbana, por tudo aquilo que hoje a cidade oferece. Ao mesmo tempo, porém, uma parcela considerável da população é atingida pela falta de meios para satisfazer tais necessidades, já que essa sofre com a falta de acesso a bens essenciais que os fazem usufruir da cidade. Mesmo com o crescimento da tecnologia nas técnicas de trabalho, dentre tantos outros fatores, o desemprego cresce em larga escala e o trabalho precário é evidenciado, tornando maior

o número de pessoas que não dispõem de recursos até mesmo para sobreviver nas cidades. Não há alternativas concretas, e, assim,

O resultado desse processo tem sido o agravamento da exploração e das desigualdades sociais dela indissociáveis, o crescimento de enormes segmentos populacionais excluídos do ‘círculo de civilização’, isto é, dos mercados, uma vez que não conseguem transformar suas necessidades sociais em demandas monetárias. As alternativas que se lhes restam, na ótica oficial, são a ‘violência e a solidariedade’. (IAMAMOTO, 2010, p.123)

Dessa forma, presencia-se um verdadeiro caos nas relações sociais na urbanidade, as quais são baseadas de maneira evidente, conforme a autora, na “banalização do humano” (idem p.125), em meio à denominação que a autora resgata de Marx como “era do capital fetiche” – o sistema capitalista que favorece a circulação do capital através do mercado financeiro, dos grandes negócios realizados por parte das instituições e empresas multinacionais, a partir dos créditos, empréstimos e juros na “relação do dinheiro consigo mesmo” (IAMAMOTO, 2010, p.125). Nesse contexto de circulação do capital, a “descartabilidade e indiferença perante o outro” são as bases das relações sociais que, de acordo com a autora, “[...] se materializa na naturalização das desigualdades sociais e na submissão das necessidades humanas ao poder das coisas sociais – do capital dinheiro e de seu fetiche” (idem, p.125). E ainda, a indiferença quanto à situação socioeconômica de um número crescente de homens e mulheres tem levado ao aumento da situação de pauperização desses nas cidades do mundo; é certo, portanto, que esse quadro expõe o movimento de degradação do ser humano que está por trás do que se considera como avanço ou amadurecimento das relações no chamado capitalismo maduro.

E assim, como produto da história e continuidade do abismo que se forma dentro da sociedade, a cidade é local da segregação social: aquele que possui recursos financeiros paga por lugares melhores, agora mais isolados do contato com o restante da sociedade. O isolamento social, que é produto de uma cultura de individualismo, também é a saída para se proteger do descontrole causado pela violência, pela desordem existente nos espaços. O consumismo, mais específico no atendimento das necessidades individuais e mais forte como imposição para satisfação das necessidades, é uma das peças que faz aumentar o contraste do acesso da sociedade aos bens e serviços. Na cidade, portanto, percebe-se a extrema contradição entre desenvolvimento tecnológico e

privação e pobreza, onde “[...] o desenvolvimento econômico é descaracterizado e bloqueado nos problemas sociais graves que gera, mais do que legitimado nos benefícios socialmente exíguos que cria e distribui” (MARTINS, 2002, p.13). A fragmentação do homem na contemporaneidade revela, portanto, além da dificuldade mais evidente da inserção dele no mercado de trabalho, o fato de que, para grande parte da população, permanecer na cidade não se dá por uma necessidade apenas de usufruir ou apropriar-se daquilo que ela contém, mas daquilo que ela pode oferecer para garantir palmo a palmo a sobrevivência.

1.2 A urbanização no Brasil: aspectos históricos e contemporâneos

Tomando-se o conceito abordado até aqui acerca da formação das cidades, pode- se considerar que o Brasil foi, desde sua formação inicial e durante séculos, um país considerado originário do campo. Isso tanto por sua economia se dar a partir da extração direta e cultivo de produtos da natureza, quanto por sua população, que se encontrava nos espaços agrários, desenvolvendo atividades nesse meio. Infere-se que durante o período colonial (que vai até o século XVIII), “[...] toda a nossa história é a história de um povo agrícola, é a história de uma sociedade de lavradores e pastores. É no campo que se forma a nossa raça e se elaboram as forças íntimas de nossa civilização”. (SANTOS, 2005, p.19). Nesse sentido, as relações sociais também são fundamentadas a partir da vida no campo, com aqueles que dependem das atividades desse meio para sua sobrevivência e, por isso, submetem-se a trabalhos para aqueles que detêm as terras, as propriedades rurais.

Porém, “[...] é a partir do século XVIII que a urbanização se desenvolve e ‘a casa da cidade torna-se a residência mais importante do fazendeiro ou do senhor de engenho, que só vai à sua propriedade rural no momento do corte e da moenda da cana’” (SANTOS, 2005, p.21). Destaca-se aí o surgimento das primeiras cidades brasileiras, na dinâmica de produção do excedente por parte do campo para sustentar esses novos espaços. Os senhores de engenho tornam-se os responsáveis pela administração do espaço urbano, que exporta a matéria-prima produzida no campo – à custa de trabalhos exaustivos de escravos e trabalhadores em geral –, enquanto importa recursos e materiais para a estruturação das cidades. Por isso, a sociedade começava a se transferir para os centros urbanos, ainda que em número reduzido, já que continuava concentrada no campo.

É no período de passagem política do Império para a República, no século XIX, que o Brasil começava a desenvolver seu processo de industrialização, trazendo recursos para implantação das primeiras fábricas nas cidades e, assim, demandava um maior contingente de mão de obra. A concentração populacional começava a se intensificar, com a substituição do regime escravo pelo trabalho livre, no qual era necessária a presença do trabalhador nas cidades. Os escravos que eram libertos, mas não eram aproveitados nas atividades do campo, acabavam migrando para a cidade; porém, muitas vezes não eram incluídos em atividades nesse local e acabavam aglomerando o espaço urbano que se formava. Assim, a presença de pessoas perambulando pelas ruas, em precárias condições de vida, que se encontravam fazendo bicos, mendigando ou mesmo à espera de alguma chance de emprego, já crescia em meio ao desenvolvimento dos centros urbanos no país.

Contudo, mesmo aqueles que eram assalariados não escapavam às limitadas condições de vida. Na verdade, a substituição do trabalho escravo pelo assalariado trouxe relativa mudança nas relações sociais: os trabalhadores não eram mais “posse” dos senhores de engenho – poderiam ter sua casa, sua individualidade, podiam “vender” sua força de trabalho para quem quisessem, por exemplo. Porém, estavam sujeitos às relações de mando daqueles que eram os proprietários dos meios de produção, os quais determinavam também a concentração de bens, de decisões políticas e administrativas, baseadas em interesses pessoais. Dessa maneira, pode-se dizer que, “[...] esta passagem [da economia agrária para a industrial] ocorre sem uma ruptura de modelos, ou seja, o modelo urbano-industrial se constitui como modelo hegemônico sem alterar as estruturas originárias do modelo anterior, mantendo uma estrutura agrária baseada no latifúndio e na concentração de renda [...]” (BOTEGA, 2007, p.65-66).

Diante dessa realidade, observa-se que, enquanto no início do período industrial (entre 1890 e 1920), a população nas cidades chegava a 10,7% do total, no período entre 1920 e 1940, esse número chegou a 31,24%. (SANTOS, 2005, p.25). Esses indicadores atestam a presença cada vez maior da população concentrada no espaço urbano que se formava, o que era fundamental para o desenvolvimento da economia, apesar de trazer sequelas para o desenvolvimento social. Enquanto expandiam-se os índices de exportação, crescia a precariedade da acomodação de pessoas nos centros urbanos, instalando-se em cortiços e espaços mal elaborados, próximos aos centros industriais, sem condições adequadas de saneamento. Os baixos salários que impossibilitavam o

consumo do mínimo necessário, além da falta de outros serviços necessários à saúde e bem-estar do trabalhador, faziam parte do cenário urbano brasileiro já nas primeiras décadas do século XX.

A partir dos anos 1940, a industrialização, enquanto “processo social complexo”, (SANTOS, 2005, p.30) assume no país, de fato, o caráter de propulsor do processo de urbanização, na medida em que era necessário o crescimento demográfico, tornando-o integrado ao processo de consumo e de relações. Afirma-se, dessa forma, que “[...] uma urbanização cada vez mais envolvente e mais presente no território dá-se com o crescimento demográfico sustentado das cidades médias e maiores [...]” (idem, p.30). Nessa dinâmica, é cada vez maior e mais rápido o crescimento populacional nas décadas seguintes. Todavia, a ocupação acelerada e desordenada do espaço urbano faz do processo de urbanização no Brasil uma ampliação dos problemas já vivenciados desde o início de seu processo. Não há, portanto, um controle ou busca suficiente de melhoria para todos os habitantes, para organizar a ocupação nos espaços existentes nas cidades. Dessa forma, “[...] a lógica de subordinar a política urbana e habitacional aos interesses da reprodução das relações capitalistas de produção tem orientado a ação do Estado” (BOTEGA, 2007, p.72). Ainda que, nos anos 1970-1980, os planos habitacionais oferecidos pelo Estado tenham sido criados em vista de, entre outras razões, organizar o espaço de moradia da classe trabalhadora, as condições de pagamento das residências oferecidas ainda estavam fora da realidade financeira da grande parte da população que estava à margem da participação na economia brasileira.

Na contemporaneidade, a ocupação do espaço urbano brasileiro pode ser verificada na assertiva de que:

O espaço de uma grande cidade capitalista constitui-se, em um primeiro momento de sua apreensão, no conjunto de diferentes usos da terra justapostos entre si. Tais usos definem áreas, como o centro da cidade, local de concentração de atividades comerciais, de serviços e de gestão; áreas industriais; áreas residenciais distintas em termos de forma e conteúdo social, de lazer e, entre outras, aquelas de reserva para futura expansão. Este complexo conjunto de usos da terra é, em realidade, a organização espacial da cidade ou, simplesmente, o espaço urbano, que aparece assim como espaço fragmentado. (CORRÊA, apud SANTOS, 2008, p.180).

Destaca-se que o espaço urbano brasileiro é ocupado de maneira tal que é possível identificar a atuação nesse conforme interesses e funcionalidades: o

desenvolvimento do comércio a partir de sua concentração no centro para circulação e consumo mais favoráveis; as áreas residenciais e de lazer são mais afastadas do centro, porém estruturadas de acordo com o nível econômico da população que habita nelas. E ainda, os espaços considerados de circulação e uso público (ruas, calçadas, praças, etc.) facilitam seu usufruto e o acesso de um lugar a outro. O espaço urbano – considerado como espaço fragmentado – possui em sua organização a finalidade econômica, restringindo o acesso de determinados espaços apenas àqueles que possuem condições para “circular” nele. Dessa forma, a condição econômica é o que possibilitará a presença das pessoas nos espaços mais favoráveis existentes nas cidades, produzindo aí também uma segregação socioespacial.

Nesse movimento, faz-se menção à formação das chamadas favelas, não se tratando de um fenômeno recente e se agravando na atualidade. Afirma-se que “[...] é na produção da favela, em terrenos públicos ou privados invadidos, que os grupos sociais excluídos tornam-se, efetivamente, agentes modeladores, produzindo seu próprio espaço [...]” (CORREIA, 1989, p.30). Essa ocupação, que inúmeras vezes se dá em locais considerados inadequados para qualquer construção, como nas encostas, por exemplo, é mais uma forma de buscar sobrevivência no meio urbano. Denota-se, dessa forma, que “[...] a exclusão e uma sociedade concentradora de renda serão as marcas de um processo de urbanização brasileiro, onde os olhos dos investimentos estão voltados somente para o capital imobiliário” (BOTEGA, 2007, p.66).

Por isso, o espaço urbano “[...] expressa muito mais que uma simples localização e arranjo de lugares; expressa um modo de vida” (CAVALCANTI apud SANTOS, 2008, p.181). Sendo assim, até mesmo o pertencimento social, ainda que seja a uma classe social considerada inferior em termos de aquisição econômica, será determinado a partir de seu pertencimento a um espaço ocupado, mesmo sendo um local onde se encontre uma situação degradante para uma acomodação. A distribuição da população nos espaços urbanos expressa, portanto, o contexto de desigualdades a que a sociedade está submetida dentro da dinâmica capitalista, sobretudo na economia brasileira. Também as mazelas existentes como consequência desse fato não se encontram somente em um espaço ou em outro, mas no contexto social do país como um todo, onde “o Brasil está estampado em suas cidades” (SANTOS, 2008, p.185). Dessa maneira, observar a realidade de um dado espaço urbano torna-se relevante como forma de conhecer mais de perto o contexto sob o qual o país está em movimento.

2 CAPÍTULO 2 - ESPAÇO PÚBLICO, A RUA E SEUS