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2 CAPÍTULO ESPAÇO PÚBLICO, A RUA E SEUS MORADORES

2.4 Sobre o morador de rua

2.4.2 Quem é o morador de rua: caracterização

A existência de pessoas que moram nas ruas nas principais cidades, nos diversos continentes do mundo, revela que há uma marca comum consequente das relações de desigualdades causadas pelo capitalismo. Pesquisas de cunho comparativo sobre a população de rua entre países, como Brasil e França, ou Brasil e Canadá, já foram realizadas e mostraram essencialmente que

[...] a pobreza tem um importante papel na homogeneização de certos contextos em escala mundial, tornando possíveis as comparações internacionais, sendo observáveis em países do Primeiro Mundo, onde as questões sociais pareciam elucidadas pelo menos para a grande maioria da população (GIORGETTI, 2006, p.22).

2 Expressão utilizada para designar os profissionais especialistas no tratamento daqueles considerados

Não se trata, portanto, de um fenômeno localizado, muito embora possam se perceber variações quanto ao atendimento à população de rua em alguns países; porém, tal questão se trata de um fruto do contexto global de acesso desigual a bens que proporcionem melhores condições de vida. A autora Giorgetti, em uma pesquisa realizada acerca da moradia de rua entre o Brasil e a França, também destaca uma homogeneização quanto ao principal aspecto relativo à presença de pessoas nas ruas nesses países: “[...] trata-se de indivíduos sem uma habitação e que satisfazem tal necessidade, seja procurando uma instituição social, seja se apropriando e transformando o espaço público em moradia” (GIORGETTI, 2006, p.24). Dessa forma, há uma caracterização geral daquele que é considerado como morador de rua, independente da situação social de cada país.

Particularmente no Brasil, não há como ignorar essa realidade, que se encontra presente em todas as principais cidades brasileiras e já se tornou tema de discussões e estudos, ainda que pouco notáveis se comparados à dimensão da questão discutida, por atingir o indivíduo em todas as dimensões de sua vida. Nesse sentido, algumas análises buscam revelar o que se encontra por trás da realidade do morador de rua, de sua trajetória, na tentativa de encontrar respostas para solucionar ou mesmo encontrar as bases que culminam na existência dessa problemática. Tais reflexões buscam antes definir quem é o morador de rua, através da definição de suas características, a fim de identificá-lo em meio à sociedade. Geralmente designam-se os moradores de rua como “[...] grupo populacional heterogêneo, composto por pessoas com diferentes realidades, mas que têm em comum a condição de pobreza absoluta e a falta de pertencimento à sociedade formal” (COSTA, 2005, p.3). Em outra definição sobre esse público, baseada no estudo comparativo feito entre a moradia de rua da França e do Brasil, observa-se que se trata de indivíduos (migrante, imigrante ou nascido em uma metrópole) que, após atravessarem momento de afastamento de todas as relações, seja de trabalho, familiar, seja social, não possuem mais bases de consumo, não conseguindo repor tais bases e prover seu bem-estar (GIORGETTI, 2006, p.25). Também em uma conceituação geral acerca da população de rua, afirma-se que este é “[...] um segmento social que, sem trabalho e sem casa, utiliza a rua como espaço de sobrevivência e moradia” (VIEIRA, BEZERRA e ROSA, 1992, p.47).

Em pesquisa recente, que relaciona a questão do trabalho e a população de rua no Brasil, há a denominação desta como o fenômeno o qual se destaca “como uma

expressão radical da questão social” (grifos do autor) (SILVA, 2009, p.26). Essa autora também, na concepção sobre tal realidade, apresenta seis características que irão definir quem é o morador de rua, a partir do reconhecimento de que a presença constante de sujeitos nesse espaço trata-se de um fenômeno ocasionado pelas desigualdades sociais: inicialmente, associado às múltiplas determinações, entre fatores estruturais,

biográficos, relacionados a desastres, etc. Em seguida, considerado como expressão da questão social, conforme já assinalado. O terceiro aspecto corresponde à localização do fenômeno nos centros urbanos, sendo esses os lugares propícios para que os moradores

de rua possam garantir a sua sobrevivência diária, ao contrário das pequenas cidades. Um quarto fator é o preconceito como valor atribuído moralmente pela

sociedade aos moradores de rua, com as históricas denominações pejorativas que são

atribuídas àqueles que estão nas ruas, e da intolerância com a qual essas pessoas são tratadas pelo restante da sociedade. O quinto fator que, de acordo com a autora, contribui para definir a população de rua dentro da sociedade é a manifestação

particular do fenômeno no território onde ocorre, pois embora se destaque que esse é

um fenômeno mundial, cada país, com seu perfil socioeconômico, é que irá dispor as formas de sobrevivência adotadas pelas pessoas nas ruas, e inclusive, influenciará no tempo de permanência delas nesses locais. Finalmente, o último aspecto seria a

tendência à naturalização do fenômeno, juntamente com a inexistência de políticas

sociais efetivas que reduzam a pobreza e garantam a melhoria de condições para os moradores de rua (SILVA, 2009, p.105-122). Tais fatores, de acordo com a autora, definem a existência da população de rua como um fenômeno vinculado à estrutura da sociedade capitalista, a qual tem nas desigualdades sociais a sua maior expressão.

Como se pode observar, esse segmento populacional possui as diferentes

realidades que o definem, tanto referentes àquilo que o leva às ruas, quanto ao que o faz

permanecer nelas. Por isso, uma das principais características desse público é a sua heterogeneidade, com “[...] origens, interesses, vinculações sociais e perfis socioeconômicos diversificados” (SILVA, 2009, p.123). Isto é, a rua acaba reunindo uma gama de histórias que sofrem as marcas das perdas, conforme já citado. Infere-se ainda, de acordo com levantamentos já realizados nas principais cidades do Brasil, que apesar de haver pessoas de todas as idades morando nas ruas, os homens são a maioria

encontrada na rua, numa média de 82%, segundo Pesquisa Nacional3 realizada no ano de 2008 (MDS, 20083 , p.6). Outros dados dessa pesquisa revelam a média da quantidade de pessoas adultas que podem ser caracterizadas como moradores de rua nas principais cidades brasileiras (31.922 pessoas). Sobre a escolaridade desse público, apesar de a quase totalidade não estudar atualmente (95%), foi constatado que pelo menos 74% sabem ler e escrever, enquanto 17,1% não sabem escrever, e 8,5% apenas assinam o nome. Podemos verificar no seguinte quadro acerca da formação acadêmica:

Tabela 1- Escolaridade dos moradores de rua – Geral (pesquisa entre 2007 e 2008)

Escolaridade % Nunca estudou 15,1 1º grau incompleto 48,4 1º grau completo 10,3 2º grau incompleto 3,8 2º grau completo 3,2 Superior incompleto 0,7 Superior completo 0,7

Não sabe/ não lembra 7,7

Não informado 10,1

Fonte: Pesquisa Nacional sobre a População em situação de rua, Meta, MDS/2008

A partir da informação de que a maioria da população pesquisada tem uma escolaridade precária, pode-se inferir que as possibilidades relacionadas ao aspecto profissional se tornam limitadas, podendo esse se constituir como um dos fatores preponderantes para a permanência nas ruas. Inclusive a pesquisa aponta a falta de trabalho como a segunda maior razão para a ida às ruas (29,8%), enquanto as situações de uso de álcool/ drogas são consideradas como principal motivo (35,5% dos entrevistados afirmam que estão nas ruas por causa do uso de álcool e drogas). O

3 Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS. Pesquisa Nacional sobre a

rompimento de vínculos familiares é também comumente citado como motivo de estada nas ruas (29,1%).

Seja qual for o motivo, o fato é que uma grande quantidade de pessoas encontra nas ruas o único local que irá abrigá-los, após terem sofrido situações que culminaram em seu “isolamento” social. Por isso, acabam se apropriando desse espaço, numa perspectiva de se utilizar daquilo que esse pode oferecer para garantir sua moradia e sobrevivência. Com os parcos recursos que possuem, arranjando-se com materiais retirados de lixo, portando objetos usados, vestindo roupas maltrapilhas e carregando pedaços de papelão, sacolas para dormir, os moradores de rua são vistos como “poluidores do espaço urbano” (FRANGELLA, 2005, p.203). Como se não bastasse, a sua presença nas ruas também destitui desses indivíduos a condição de serem vistos como iguais perante os demais cidadãos. São assim, “[...] excluídos de qualquer possibilidade de se tornar perceptível e, sobretudo, de qualquer direito ao respeito” (ESCOREL apud SOUSA, 2009, p.383), quando se sabe que, na verdade, eles não se encontram nas ruas espontaneamente, mas foram empurrados pelas circunstâncias, que excluem qualquer outra possibilidade que não seja ir para as ruas.

Desse modo, afirma-se que

A rua pode ter pelo menos dois sentidos: o de constituir num abrigo para os que, sem recursos, dormem circunstancialmente sob marquises de lojas, viadutos ou bancos de jardim, ou pode constituir-se em um modo de vida para os que já têm na rua o seu habitat e que estabelecem com ela uma complexa rede de relações (VIEIRA, BEZERRA e ROSA, 1992, p.93).

Dentro dessa reflexão, as referidas autoras trazem uma distinção – baseada na pesquisa realizada na cidade de São Paulo – acerca da ida para as ruas e a consequente apropriação que ocorre desse espaço, à medida do tempo em que permanecem nele. Tal distinção é baseada na concepção de que “[...] à proporção que aumenta o tempo, se torna estável a condição de morador” (VIEIRA, BEZERRA e ROSA, 1992, p.94). Dessa forma, é possível identificar pelo menos três tipos de situações relacionadas à permanência nas ruas, as quais consistem em: ficar na rua – como forma circunstancial, pela precariedade provocada pelo desemprego ou por estarem chegando à cidade em busca de emprego, de tratamento de saúde ou de parentes; estar na rua – quando se assumem estratégias de sobrevivência nas ruas para seu rendimento e já não a

consideram como um espaço tão “ameaçador”; e ser da rua – compreendida como a situação daqueles que já estão há um bom tempo na rua e, em função disso, foram sofrendo um processo de debilitação física e mental (VIEIRA, BEZERRA e ROSA, 1992, p.93). Ainda dentro dessa dinâmica, o prolongamento do tempo de permanência nas ruas pode influenciar nas possibilidades de saída desse local, que começam a se tornar mais difíceis no momento em que a pessoa que vive em uma constante falta de condições para alimentação, por exemplo, envolve-se geralmente em uso de álcool e sofre com a violência constante, perdendo qualquer tipo de perfil próprio para conseguir emprego.

Outros estudiosos sobre o tema, em pesquisa realizada na cidade do Texas, Estados Unidos, trazem a reflexão acerca das circunstâncias que levam as pessoas a morar nas ruas. De acordo com esse estudo, diversos fatores caracterizam a ida das pessoas para as ruas, mas que essas possuem em comum um contexto de perdas que marcam o início dessa trajetória e afastam cada vez mais essas pessoas daquilo que se considera como aspectos do pertencimento social. Tal movimento ocorre em várias dimensões da vida humana, das quais serão citadas algumas.

Conforme os autores, à primeira vista, o morador de rua se encontra nessa condição em consequência da perda da moradia, de seu local de referência privado, de permanência. Afirma-se que “[...] o desabrigo de uma forma ou de outra existiu ao longo da maior parte da história humana” (SNOW e ANDERSON, 1998, p.23) e que variam os motivos que levam as pessoas a tal situação: seja por desastres da natureza; pela condição própria do trabalho que os leva à migração; seja por fuga de situações políticas ou econômicas, entre outras causas.

A própria condição de pobreza, apesar de não ser o único fator para estar nas ruas, é considerada como componente que “empurra” as pessoas para tal situação, pois “[...] o grosso dos moradores de rua vem de famílias que estão no nível de pobreza” (SNOW e ANDERSON, 1998, p.233). Nisso, os demais estudiosos sobre o tema estão de acordo que esse é um dos fatores que mais condicionam a existência de moradores de rua, já que o agravamento da pobreza vai tornando mais difícil o acesso a recursos para sobrevivência.

A perda dos vínculos afetivos é uma característica também encontrada nos estudos que buscam definir os motivos que levam as pessoas a morarem na rua. Discussões familiares, uso excessivo de álcool e uso de drogas na residência são fatores

frequentemente encontrados e que têm inclusive trazido para as ruas pessoas que possuem boa condição econômica, mas que estão inseridas nessas problemáticas. Dessa forma, “[...] a erosão de uma rede de apoio familiar solidária tem se apresentado como o princípio-motor de ingresso dos indivíduos nas ruas” (SOUSA, 2009, p.395), pois compromete o pertencimento social.

A perda do trabalho ou mesmo a não-inserção no mercado de trabalho é um fator comumente associado à situação de rua. O trabalho ainda é considerado tema central na vida do homem, e “[...] o próprio desabrigo resulta em parte de problemas e tendências associadas com o mundo do trabalho remunerado” (SNOW e ANDERSON, 1998, p.185); não tê-lo é ser visto como não-contribuinte para a produção social e até mesmo como fracassado no papel de sustento pessoal e familiar.

Dessa maneira, afirma-se que

[...] em muitos casos, faz parte do processo de ida para a rua a busca, às vezes desesperada, de alternativas de sustento pessoal ou familiar. As pessoas nessa condição geralmente informam que têm uma profissão, mesmo que já não a estejam exercendo há vários anos. Conforme Castel (1997), em nossa sociedade, o trabalho confere identidade às pessoas [...] (COSTA, 2005, p.9).

Ainda dentro do contexto da perda do trabalho, há aquelas situações em que a busca constante de emprego faz o indivíduo permanecer na rua; há aquelas pessoas que migram do campo, de outras regiões, à procura de trabalho, mas que não têm estrutura de moradia ou familiar que o apoie no local; e há também aqueles que não possuem qualificação para emprego formal e acabam encontrando nas ruas o meio mais “adequado” a sua situação para se manterem.

Tais motivos, vivenciados em conjunto ou de maneira isolada, levam os indivíduos à situação de rua como sua última (ou única) alternativa de vida. Acabam por necessitar desse local para sua sobrevivência diária, recorrendo a diversos meios para se chegar a tal fim. Assim, “[...] para suprir as necessidades básicas, as pessoas que vivem nas ruas se utilizam de estratégias variadas, contam com a rede de serviços assistenciais e com a solidariedade da população” (COSTA, 2005, p.11). O que se verifica ao conhecer o modo como vivem os moradores de rua, na busca dessa sobrevivência, é que “[...] o que esses indivíduos situados de modo tão semelhante têm em comum não é um

conjunto forte e reconhecível de valores, mas um destino compartilhado e a determinação de se virar tão bem quanto possível” (SNOW e ANDERSON, 1998, p.77). Nessa perspectiva, percebe-se também que

Como as pessoas em toda a parte, os moradores de rua têm de comer, dormir, eliminar, viver dentro de seu orçamento e construir um senso de significado e amor-próprio. Os moradores de rua, entretanto, devem atender a esses requisitos de sobrevivência sem os recursos e estruturas de apoio social que a maior parte de nós dá como certas. [...] Além disso, a vida nas ruas é frequentemente permeada de um senso onipresente de incerteza. Não há garantias de que o que facilitou a sobrevivência de hoje funcionará amanhã (SNOW e ANDERSON, 1998, p.77-78).

Diante de tais necessidades que se dão diariamente para essa população, “[...] um dos problemas cotidianos mais prementes para os moradores de rua é achar um modo de obter algum dinheiro quase imediatamente” (SNOW e ANDERSON, 1998, p.201). O contexto urbano também não favorece o sucesso nessas estratégias de sobrevivência, seja pela própria estrutura urbana, seja pelas exigências para ingressar em um tipo de trabalho ou até pelos próprios outros indivíduos que rejeitam aquele que se encontra na rua. Destarte, entende-se que “[..] repertórios e estratégias de sobrevivência não surgem espontaneamente; são o produto de uma ação recíproca entre os recursos e a inventividade dos moradores de rua e as restrições organizacionais, políticas e ecológicas locais” (idem, p. 48).

Mesmo assim, essa população enfrenta tais contingências e cria modos de se

manter. Desenvolvem a mendicância, a catação de lixo, atividades informais (vigiar

carro, limpar para-brisa dos carros, prostituição, deslocamento para outras cidades para melhorar sua situação, etc.), entre outras atividades, para conseguir o sustento daquele dia, já que também não dispõem de recursos que possibilitem outras formas de conseguir dinheiro. A Pesquisa Nacional demonstra que grande parte desse público exerce alguma atividade remunerada, conforme a tabela a seguir:

Tabela 2 – Atividades exercidas pelos moradores de rua (%) -

ATIVIDADE %

Catador de materiais recicláveis 27,5

Flanelinha 14,1

Construção civil 6,3

Limpeza 4,2

Carregador/ estivador 3,1

Pedinte 15,7

Fonte: Pesquisa Nacional sobre a População em situação de rua, Meta, MDS/2008

A análise da Pesquisa Nacional, a partir dessas informações, é a de que a atividade de mendicância não é a preponderante entre os moradores de rua. De fato, esse público busca exercer funções ligadas ao recebimento imediato de dinheiro, visto que objetivam o socorro de necessidades pontuais. Assim, “[...] seu mundo restringe-se às ruas e seu trabalho só se dá nas ruas. Por esta razão, talvez, suas atividades ‘produtivas’ muitas vezes se resumem à obtenção do estritamente necessário à subsistência imediata: a comida” (BURSZTYN, 2000, p.43). Dessa forma, passam a desvendar o “universo” das ruas, recorrendo àquilo que ela pode dispor em seus espaços.

2.4.3 Relação entre espaço público e morador de rua nas cidades