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4 CAPÍTULO O PERCURSO PARA A REALIZAÇÃO DE UMA PESQUISA JUNTO AOS MORADORES DE RUA DA CIDADE DE

4.1 Primeiro passo: encontrar o sujeito

Os primeiros contatos com o tema desse estudo deram-se no desenvolvimento das atividades como Assistente Social em um Programa Social da Prefeitura Municipal de Natal-RN, intitulado “Programa Canteiros Reconstituindo Vidas”. Tratava-se de um Programa Social constituído por Projetos Sociais voltados para o segmento adulto e adolescente dos moradores de rua da cidade de Natal-RN e tinha por objetivo resgatar esse público das ruas, através da profissionalização, com capacitação e encaminhamento

para o mercado de trabalho e estágios. Dessa forma, o Programa era visto como uma novidade, por atuar junto a um segmento “invisível” aos olhos dos transeuntes – os moradores de rua - e inspirava questões acerca desse universo, o qual se começava a ter acesso em seus interstícios.

A partir daí, na atuação diária, nas abordagens realizadas às pessoas que estavam nas ruas, o olhar já se modificava: o desejo de procurar conhecer a realidade das pessoas “de rua” já se manifestava de forma contundente. Através da aplicação de questionários e investigação da situação socioeconômica das pessoas abordadas, foi possível perceber o fato de que havia pessoas que passavam o dia na rua, desenvolvendo atividades para conseguir dinheiro, mas que não moravam na rua. Há pessoas que passam o dia na rua, limpando para-brisa de carro, pedindo esmola, cuidando de carros e que, à primeira vista, parecem ser habitantes daquele local, mas não o são: têm suas residências, ainda que nas favelas e cortiços, de maneira precária. Ao recorrer à literatura que trata sobre moradores de rua, há de fato uma diferenciação trazida pelos autores acerca da permanência no espaço público, que os distingue em denominá-los como pessoas que têm as ruas como seu local de moradia ou não. Assim, perceber que existia essa diferenciação fez com que o “olhar” começasse a entrar em foco, já que tais estudos proporcionaram uma maior segurança para a realização de uma nova abordagem ao público em questão.

Ainda em relação à atuação profissional anterior ao início da pesquisa, as abordagens eram realizadas durante o dia, no momento em que as pessoas estavam desenvolvendo atividades pelas ruas. À primeira vista, havia dificuldade em perceber se aquelas pessoas que estavam exercendo atividades nesses locais também habitavam neles (perguntas que já aguçavam a curiosidade). Somente quando alguém era entrevistado para coletar seus dados é que se sabia sobre sua situação de moradia.

Dessa forma, surgiu a necessidade de reconhecer quem de fato é o morador de rua que tomou a atenção a partir de então. Porém, somente a atuação no trabalho não se configurava como suficiente para encontrar os sujeitos em questão. Assim, a partir da percepção de que “[...] as pesquisas propendem para reconhecer uma pluralidade cultural, abandonando a autoridade única do pesquisador para reconhecer a polivocalidade dos participantes [...]” (CHIZZOTTI, 2003, p.231), era preciso assumir uma decisão de aprofundar-se naquilo que já havia começado, agora necessitando munir-se de teoria, técnica e ações que fundamentassem uma resposta para tais

questionamentos e com isso pretender despertar uma discussão mais aprofundada sobre esse tema. Assim, já durante o Mestrado, buscou-se encontrar as formas com as quais se poderia encontrar o “morador de rua” e conhecer seu modo de viver.

Dessa feita, deu-se um novo início: percorrer os caminhos para efetivar uma pesquisa sobre moradores de rua, revelando o modo de viver desse segmento na sociedade. O levantamento bibliográfico acerca desse tema, a busca de reportagens, programas sociais, leis que dão assistência a essa camada populacional foram desvelando a “presença” dos moradores de rua no cenário social. Tais levantamentos levaram ao conhecimento de que a questão do morador de rua é discutida no meio acadêmico basicamente por cientistas sociais e antropólogos e, ainda, pela área da psicologia. Os estudiosos trazem como produto de aproximações junto aos moradores de rua reflexões e análises acerca dos motivos que levam pessoas a ter esse local enquanto moradia, bem como sobre a maneira de viver na rua. Geralmente são estudos baseados em realidades locais (pesquisa em um município) e que são apresentadas com vistas a assimilar a realidade nacional sobre a moradia na rua. A pesquisa apresentada pelo Governo Federal no ano de 20088, que abrangeu todo o país, traz a quantidade de moradores de rua existentes nacionalmente e em cada Estado e ainda revela um perfil característico sobre o morador de rua.

Com isso, parecia que a suposta inquietação havia sido respondida, tendo encontrado o morador de rua. Porém, ainda se buscava reconhecer a relação entre o morador de rua e os espaços públicos na realidade local, na cidade de João Pessoa-PB, no intuito de constatar como era a vida dos moradores de rua daquela cidade.

Segundo a literatura corrente sobre o tema, as pessoas que têm as ruas como espaço para moradia e sobrevivência permanecem geralmente em locais onde há grande fluxo de circulação de pessoas, tais como os centros comerciais, e nas principais avenidas das cidades. Assim começou-se a percorrer alguns pontos da cidade de João Pessoa-PB, à procura desse público, para dar início ao que se pode considerar como uma nova etapa da pesquisa, do encontro com o sujeito: o de começar a procurar onde estava o morador de rua da cidade de João Pessoa-PB.

A partir do mês de março/2010, em visitas ao centro da cidade, caminhando pelo local, ou mesmo só passando dentro do ônibus, foi perceptível a presença de pessoas

8 Trata-se da Pesquisa Nacional sobre a População em situação de Rua – 2008, já mencionada no capítulo

que exerciam atividades de limpador de para-brisa, vendedores de frutas e pedintes pelos arredores do principal ponto de referência do centro da cidade9. Daí passou-se a observar esse movimento com mais frequência, passando a visitar o local por três vezes na semana, em média, e nos sábados, durante dois meses, para tentar identificar se dentro desse universo havia moradores de rua.

A partir dessas visitas foi possível notar a existência de um grupo que, em todos os momentos em que foi encontrado, estava sob as árvores desse ponto do centro da cidade. Eles eram vistos somente durante o dia, já que nas observações feitas durante a noite, nenhuma pessoa se encontrava nesse local; o que parece, portanto, que aquele ponto era utilizado como ‘parada’ para descanso ou até mesmo para uso de drogas (percebia-se a utilização de garrafas à boca – característico de cola de sapateiro). O grupo se caracterizava pela presença de uma média de oito pessoas (a maioria era homem), com idade aparente de até trinta anos, que estavam com roupas maltrapilhas e algumas sacolas.

Tais observações implicaram no levantamento de algumas reflexões: a literatura afirma que a permanência na rua é o que assinala alguém como sendo morador de rua. Parece óbvio, mas a princípio, somente uma observação “de longe” não é suficiente para identificar uma pessoa como tal. Conforme exposto anteriormente, há pessoas que passam o dia nas ruas, mas têm a sua referência de casa, ainda que seja em barracos/cortiços. Essa “impressão” que foi trazida da experiência profissional tornou-se como uma forma de “filtrar” as buscas pelo morador de rua.

No caso das observações ao grupo, enquanto essas eram feitas durante o dia, parecia evidente que aquelas pessoas que estavam ali eram moradoras de rua, pois, nos horários da manhã e da tarde em que se passava por lá, o grupo estava presente no mesmo local, com pedaços de papelão sendo utilizados como objeto sobre os quais dormiam em plena luz do dia. Porém, ao se ter a ideia de começar a andar pelo local à noite, foi verificado que eles não se encontravam; e diante do conceito citado anteriormente, havia dúvidas se aquele grupo se tratava de moradores de rua ou não. Mas a característica de se apropriar dos diversos espaços existentes na cidade poderia ser considerada na observação da rotina desse grupo – que nesse caso, provavelmente utilizava outro local para dormir – e, dessa forma, ser identificado enquanto moradores

9 Esse ponto é conhecido como o Parque Solon de Lucena: há uma Lagoa, que marca o ponto central da

cidade, e ao redor diversas avenidas e centros comerciais. Por esse ponto de referência desloca-se para outros bairros, para o terminal rodoviário da cidade, havendo circulação constante de pessoas.

de rua da cidade. Porém, não foi possível elucidar tal questão através de uma aproximação ou até mesmo ouvir o relato deles, pelo fato de que, em todos os momentos observados, essas pessoas se encontravam fazendo uso da cola de sapateiro.

De qualquer maneira, isso serviu como constatação de que o relato do sujeito era também importante para distingui-lo dentro daquilo que se considerava como morador de rua. E, ainda, que a figura dele está “escondida” entre diversos atores do movimento diário da rua; e para reconhecê-lo, era preciso aprofundar o encontro, que até então estava reduzido a um “localizar”. Era preciso, de fato, “abordar”, ter acesso ao sujeito. Porém, tal necessidade se colocava como um desafio, na medida em que as pessoas que foram localizadas até o momento não se encontravam em condições favoráveis para uma abordagem. E também não havia o interesse em encerrar as observações sem ter constatado a presença dos moradores de rua da cidade de João Pessoa-PB e sua apropriação dos espaços públicos da cidade. Dessa forma, somente encontrando algum lugar estratégico de visita, de passagem dos moradores de rua existente na cidade é que ocorreria a oportunidade de aproximação a esse público. Nos relatos de experiências e pesquisas com moradores de rua em outras cidades, é frequente a menção aos albergues mantidos por prefeituras ou entidades filantrópicas, onde os moradores de rua pernoitam. Embora em número reduzido em relação à demanda existente e mesmo com uma série de exigências para usufruir dessas, verifica-se uma considerável circulação nos albergues diariamente, e, em alguns casos, ocorre até disputa por vagas nesses locais.

Em pesquisa no site da Prefeitura e ligações para seus respectivos órgãos, foram obtidas informações sobre um albergue destinado a moradores de rua adultos da cidade, criado em 2007, mas que, no ano referente à Pesquisa (2010), não foi localizado no endereço informado tanto pelo site da Prefeitura quanto pelas informações fornecidas por telefone pela Secretaria de Desenvolvimento Social (SEDES) da Prefeitura de João Pessoa. Também houve visita ao chamado “Restaurante Popular” (tipo de restaurante que faz parte dos Programas Sociais mantidos pelo Governo Federal), por esse ser considerado um local de acesso amplo, o qual oferece refeições ao custo de R$ 1,00 e que supostamente um morador de rua poderia procurá-lo para fazer refeição. Havia uma expectativa de encontrar ao menos algumas pessoas de que se tivesse a impressão de serem moradores de rua e abordá-las com uma conversa informal, no anseio de

comprovar ou mesmo negar as impressões já existentes e obter outras informações sobre sua vida nas ruas.

Na chegada ao local, já observando a fila enorme que se fazia à entrada, houve já uma grande decepção: as pessoas que estavam na fila não aparentavam serem de rua, fato comprovado ao conversar com alguns deles, os quais eram, em sua maioria, trabalhadores do comércio, que encontravam no restaurante popular uma alternativa de custo mais barato.

Porém, a visita não foi perdida completamente: iniciou-se uma conversa com um flanelinha que estava na fila, nas proximidades (foi identificado assim pela flanela na mão e por ele mesmo ter citado que trabalhava no estacionamento em frente ao restaurante). E muito à vontade, o rapaz começou a falar sobre sua rotina de atividades na rua, mas informou que não dormia nesse local, apenas trabalhava nele – então já não houve mais o mesmo interesse por adentrar em sua realidade, por não se tratar de um morador de rua. Ainda durante a permanência no restaurante, foi abordado outro homem que estava na mesma mesa, o qual deu informações de que talvez fosse possível encontrar pessoas moradoras de rua naquele restaurante em um horário anterior ao movimento dos demais frequentadores, pois segundo ele, os moradores de rua não ficam no meio do povo, ficam em um horário só para eles. Mas depois desse dia, em visitas posteriores ao local, no horário indicado pelo rapaz, não foi constatada movimentação alguma de pessoas que se caracterizassem como sendo de rua.

Tal experiência levou a firmar a necessidade de saber qual espaço que ele ocupa,

quais lugares ele frequenta durante o dia e durante a noite. E, ainda, de que não havia

como buscar respostas para essas perguntas sem algo que intermediasse de fato os sujeitos: era necessário ter acesso a este universo e ouvir seus relatos.

Havia a clareza desse rumo da pesquisa; porém, não havia como concluí-lo. Por isso, foi feita a busca por algum estudo acerca dessa realidade em João Pessoa, na tentativa de encontrar, senão a resposta, pelo menos algum caminho anteriormente percorrido, que pudesse iluminar tais perspectivas. Foi encontrado um artigo na área das Ciências Sociais10, em que basicamente a autora afirma ter utilizado o intermédio de uma instituição filantrópica para fazer a abordagem pretendida em sua pesquisa aos

10 Trata-se do artigo de: SOUSA, Anne Gabriele Lima. Sou feio, pobre, sujo e alcoólico: emoções e

moradores de rua. Porém, não fazia menção à instituição e não foi possível entrar em contato com a autora para obter essa informação.

Foi quando, enfim, tomou-se conhecimento da existência de uma instituição filantrópica que atuava diretamente com moradores de rua. E assim, após contatos para confirmar as informações obtidas e fazer a devida identificação, foi possível chegar àquele que seria o intermediário do verdadeiro encontro com o morador de rua da cidade de João Pessoa-PB.