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Para fechar o percurso, permito-me voltar, tal qual feito para introduzi-lo, a falar em primeira pessoa.

Percorri, para a construção deste trabalho, os universos da fundamentação dos direitos humanos e fundamentais e das jurisprudências sobre povos indígenas da Corte Interamericana e do Supremo Tribunal Federal. Dessa forma, como conclusão, pretendo fazer esses dois mundos analisados dialogarem entre si, isto é, realizar uma análise crítica das jurisprudências anteriormente esmiuçadas e, com isso, detectar pautados - ou ao menos tendentes - em qual(is) fundamento(s) dos direitos humanos e fundamentais estão julgando os dois Tribunais objetos de estudo deste trabalho. Tenho, afinal, uma pergunta lançada na Introdução para responder. É hora de fazê-lo.

Seria errôneo tentar traçar conceitos maniqueístas de “melhor” e “pior”, ou qualquer outro do tipo, no comparativo entre essas duas jurisdições. Isso seria contrário, inclusive, à proposta de Joaquín Herrera Flores - marco teórico que escolhi, na primeira parte desta dissertação, como mestre guia à mirada que, julgo, deve ser devotada a quaisquer direitos humanos e fundamentais, inclusive aos relativos aos povos indígenas - já que esse autor busca sempre entender os textos (nesse caso os contidos nos acórdãos e sentenças) em seus

contextos (nesse caso a realidade de cada um desses Tribunais) e propõe o rompimento com ideias simplistas, unitárias, homogêneas e hierarquizadas, dando lugar ao intrincado, complexo, múltiplo, plural e horizontal, adjetivos fundamentais para entender um universo tão permeado de desafios quanto o dos direitos.

Assim, antes de entrar no comparativo há que se recordar que se tratam de jurisdições bem diferentes entre si, voltadas a públicos diferentes, manejando instrumentos positivos diferentes (embora também muitos em comum), e, ainda, com composição,

localização, competências e poderes distintos. São ambas, portanto, Cortes peculiares às suas maneiras.

Não obstante o dito acima, creio que a longa pesquisa feita para essa dissertação - a qual mapeou quantitativamente e qualitativamente parte da jurisprudência dos dois lados e, dessa forma, buscou alcançar uma visão panorâmica do trato que devotam cada um dos Tribunais às questões e direitos indígenas - fornece algum substrato para que a tessitura de juízos de valor possa ser feita, nestas linhas finais, pautada em doses de embasamento e à margem da superficialidade.

É possível dizer que como resposta aos 3 casos analisados de violações de direitos humanos dos povos indígenas levados ao seu olhar, a CIDH - lembrar que todos eles tendo em comum a existência de problemas relativos à falta de titulação das propriedades de seus ancestrais no bojo de suas demandas - construiu 3 argumentações recorrentes.305

Assim, a análise comparativa a que se devota essa conclusão será metodologicamente estruturada a partir dessas argumentações, contrabalanceando o entendimento do STF e da CIDH sobre os mesmos temas.

Propriedade das terras indígenas: comunal X privada

A CIDH, atenta às peculiaridades dos povos indígenas no que tange à relação que estabelecem com suas terras, vêm firmando um conceito de propriedade bastante alternativo ao que se entende por propriedade sob o ponto de vista da concepção liberal. Estabelecendo que a propriedade dos povos indígenas sobre suas terras tradicionais não se destina ao uso privado, mas sim ao uso do povo enquanto coletividade e, que a terra não deve ser entendida somente como um lugar de morada e subsistência, mas muito mais que isso como o espaço onde a cosmovisão (vocábulo bastante recorrente nas sentenças) ameríndia pode desenvolver suas potencialidades (rituais, crenças, práticas culturais, etc.) a Corte fixou em sua jurisprudência o conceito de propriedade comunal.

305 Em sentido parecido concluiu SCHETTINI, que não fala em identidade cultural, mas fala em vida digna.

SCHETTINI, Andrea. Por um novo paradigma de proteção dos direitos dos povos indígenas: uma análise

crítica dos parâmetros estabelecidos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Revista Sur

O vocábulo comunal denota pertencimento a uma comuna ou comunidade. Propriedade indígena para a CIDH, portanto, relaciona-se estreitamente com a identidade cultural dos povos indígenas, pois é um conceito que engloba elementos corpóreos (a terra e os recursos naturais), mas também não corpóreos (as crenças, rituais, etc.).

Fortemente ilustrativo dessa postura o seguinte excerto do caso Pueblo Indígena Kichwa de Sarayaku:

Esta conexão entre território e os recursos naturais que usam tradicionalmente os povos indígenas e tribais, entendendo que são ambos necessários para sua sobrevivência física e cultural, assim como para o desenvolvimento e continuidade de sua cosmovisão, deve ser protegida pelo artigo 21 da Convenção para garantir que possam continuar vivendo seu modo de vida tradicional e que sua identidade cultural, estrutura social, sistema econômico, costumes, crenças e tradições distintivas sejam respeitadas, garantidas e protegidas pelos Estados.306

No mesmo sentido dispõe o trecho da sentença do caso Comunidade Indígena Xákmok Kásek:

Este Tribunal entendeu que há estreita vinculação dos povos indígenas com suas terras tradicionais e os recursos naturais ligados à sua cultura que nela se encontrem, assim como com os elementos incorpóreos que se desprendam deles e que devem ser salvaguardados pelo artigo 21 da Convenção Americana.307

Do lado do STF a propriedade das terras indígenas foi analisada em apenas um acórdão, já que o caso Belo Monte foi decidido somente em medida cautelar e sem discussão de mérito sobre esse tema.

Dessa forma, apesar de um único acórdão ser insuficiente para sustentar posturas radicais e generalizantes, pode-se dizer que ao menos na principal decisão até hoje sobre

demarcação de terras indígenas da história do STF este Tribunal mostrou-se bastante tímido a adotar uma postura crítica e avant la lettre sobre o tema. Aliás, em palavras menos eufemistas, julgou o STF no caso da demarcação das terras indígenas Raposa Serra do Sul inspirado majoritariamente em preceitos civis (quase todas as condicionantes impostas, por

306 Retirado da sentença. p. 40. 307Retirado da sentença. p. 23.

exemplo, falam em usufruto), minimamente em vieses constitucionais (não obstante alguns conceitos vagos da Constituição, tal como “índio”, tenham sido, nessa ocasião, interpretados pelos Ministros) e nulamente conectados com os diplomas internacionais de direitos humanos.

Notar que o STF, sendo o Brasil signatário da Convenção Americana, poderia ter utilizado os mesmos dispositivos manejados pela Corte para construir sua linha de raciocínio se assim desejasse - mas não o fez. Não se trata, pois, de um problema de texto - mas de concepção de direitos humanos e fundamentais, de olhar projetado.

Os debates no julgamento da demarcação da reserva Raposa Serra do Sol - apesar de ao final demarcarem a área, o que não se nega que foi um ganho à comunidade indígena, portanto digno de comemoração - privilegiaram discussões sobre soberania nacional e pacto federativo, dando, com isso, obscurizando se os Ministros estavam mais preocupados em justificar ao Estado de Roraima que ele continuaria sendo um Estado apesar da demarcação e ao Brasil que a nação brasileira não perderia o controle de suas fronteiras, tampouco a força de sua polícia, por conta das terras indígenas serem devidamente regularizadas.

Além disso, mais de uma condicionante permite, ignorando que esse (junto com a luta por terra) é um dos grandes dramas dos povos indígenas na atualidade, que sejam realizadas construções e edificações estatais na área demarcada, sem balancear quão desastrosas podem ser essas mega intervenções aos espaços naturais que habitam.

Por fim, importante dizer que em 2009, enquanto a CIDH já havia criado vários de seus precedentes, que inclusive poderiam ter sido utilizados pelo STF como inspiração hermenêutica, estiveram à margem do debate em Brasília temas como cultura, identidade, crenças e rituais tradicionais. Ao contrário disso, as condicionantes impostas à demarcação em tela são permeadas de um tom carregadamente protecionista dos bens e riquezas estatais - os próprios índios, estavam bem distantes de ocupar o centro do debate.

Consultar X não consultar

Em total abertura para dialogar com a Convenção 169, inclusive utilizando-a, na ausência de dispositivo específico sobre o tema na Convenção Americana, como texto positivo fundamentador, a CIDH firmou o direito dos povos indígenas à consulta pela

primeira vez em 2005 (caso Saramaka Vs Suriname), reafirmando-o em duas oportunidades posteriores (Caso Xakmok Kasek Vs Paraguai e Kichwa de Sarayaku Vs Equador).308

Para a CIDH, além de existir, a consulta deve ser prévia, acessível, aberta à possibilidade de acordos, informada e obrigatória - são os critérios estabelecidos pelo artigo 6º da Convenção 169 da OIT sendo não só observados e aplicados, como ampliados:309

Já no âmbito brasileiro, desta vez no caso Belo Monte, não obstante: i) houvesse inúmeros debates na sociedade civil alegando o impacto ambiental decorrente da obra nos povos indígenas, bem como apontando forte discrepância entre o potencial energético a ser gerado e os prejuízos sociais que esta causaria; ii) ser a consulta prévia, livre e informada direito consagrado por Convenção à qual aderiu o Brasil; iii) um próprio órgão jurisdicional ter decidido que as obras deveriam serem paralisadas até que verdadeiros estudos de impacto ambiental e consulta aos afetados fossem realizados; iv) finalmente, existissem recomendações da Comissão de Direitos Humanos pedindo tomada de providências por parte do Brasil no caso, o STF decidiu que a usina hidrelétrica de Belo Monte não poderia ser paralisada. O caso ainda não teve seu mérito julgado, mas a cautelar concedida à AGU novamente, acredito, só mira interesses estatais, desconsiderando os indígenas.

Identidade cultural

Ficou claro nos casos analisados que, embora a Convenção não disponha de artigo assegurando exatamente o direito à identidade cultural, este conceito já está consagrado na argumentação da CIDH, sendo outros tantos direitos (notadamente o direito à propriedade) da Convenção utilizados juntos para embasar essa ideia.310

Na pesquisa com a qual dialogou esta dissertação, quando da análise da jurisprudência sobre povos indígenas do STF (Gárzon, 2008), foi constatado que o STF raramente cita as etnias indígenas em suas decisões. Quando fui realizar a leitura dos 32 acórdãos gerados a partir da minha pesquisa cheguei à mesma conclusão: em alguns deles os nomes das comunidades são mencionados, mas, na maior parte das vezes, “indíos”, “indígenas”, “aborígenes” ou “silvícolas” são como os Ministros da cúpula do Judiciário

308 SCHETTINI, Op. cit. 309SCHETTINI, Op. cit.

brasileiro se referem aos povos indígenas. Existe muita diferença de postura nesse sentido nas sentenças da CIDH que são recheadas de dados históricos e pessoais das comunidades que lhe estão litigando.

Postos esses eixos e, sem poder me esquivar da dura tarefa de, ao final do caminhar, ter que responder mais perguntas do que semear novas dúvidas, concluo dizendo que:

1) Ambos os órgãos analisados são, reitere-se, campos de produção de poder e,

talvez, esse fato por si só os afaste de alcançar a interculturalidade em seu sentido mais precioso;

2) Uma prova da afirmação acima está em quão raros foram os indígenas

demandando sozinhos (em nome de si mesmos ou de seus grupos) dentre todos os casos analisados - são legitimados, mas nem por isso acessam esses campos;

3) Não obstante as duas ponderações feitas anteriormente, a atuação da CIDH

aproxima-se muito mais de um marco intercultural no trato aos direitos indígenas (e consequentemente aos próprios indígenas) do que o STF;

4) A visão que a CIDH desenvolveu e vem reiterando em sua jurisprudência nessa

temática representa uma tendência holística dos problemas enfrentados, da diversidade cultural que possuem, e do que precisam os povos indígenas;

5) O STF, por sua vez, quando da análise dos direitos envolvendo terras indígenas,

ainda pauta-se no velho conceito de propriedade liberal - tendente esse Tribunal, portanto, a uma visão universalista desse direito;¨

6) O STF, não embora a CF seja aberta aos tratados internacionais de direitos

humanos, não utiliza em suas fundamentações envolvendo a temática indígena o diálogo de jurisdições e, muitas vezes, simplesmente ignora o que dizem os documentos internacionais que o Brasil firmou compromisso em cumprir;

7) E, por fim e de grande relevância: percebeu-se que o problema do Direito (ou ao

menos dos juízes dos órgãos analisados, valendo essa observação para os dois Tribunais) ao lidar com os direitos indígenas não se encontra na falta ou pouca assertividade dos textos: é a