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CAPÍTULO 2: O OLHAR DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS SOBRE OS POVOS INDÍGENAS

2.1 Povos indígenas das Américas

Antes de falar sobre como a Corte Interamericana de Direitos Humanos vem construindo sua jurisprudência sobre os povos indígenas, entende-se ser necessário devotar alguma atenção a compreender quem são esses índios que possuem suas histórias e demandas transcorrendo no órgão jurisdicional do Sistema Interamericano. Está certo que a CIDH em seus julgados normalmente é bastante criteriosa ao explicar as características e particularidades (região habitada, história de ocupação das propriedades ancestrais, principais rituais sagrados, etc.) das etnias envolvidas nos casos julgados, mas isso não impede de tentar traçar, aqui, um panorama mais amplo dos povos indígenas que habitam o continente americano.

A América (ou as Américas) é formada por 35 países independentes, a maior parte deles componentes da chamada América Latina. É pacífico - e até um verdadeiro “senso comum” - que antes da chegada dos espanhóis e portugueses os povos que habitavam essas terras eram os ameríndios168. Muito mais até hoje não se sabe, mas é taxativo que devem ser evitadas as considerações que taxam essas populações como primitivas.

Manuela Carneiro da Cunha explica melhor:

Sabe-se pouco da história indígena: nem origem nem as cifras da população são seguras, muito menos o que realmente aconteceu. Mas progrediu-se, no entanto: hoje está mais clara, pelo menos, a extensão do que não se sabe. Os estudos de casos existentes na literatura são fragmentos de conhecimento que permitem imaginar mas não preencher as lacunas de um quadro que gostaríamos fosse global. Permitem, também, e isso é importante, não incorrer em certas armadilhas. A maior dessas armadilhas é talvez a ilusão de primitivismo. Na segunda metade do século XIX, essa época de triunfo

168“É tradicionalmente aceita a hipótese de uma migração terrestre vinda do nordeste da Ásia e se espraiando de norte a sul pelo continente americano, que poderia ter ocorrido entre 14 mil e 12 mil anos atrás. No entanto, há também possibilidades de entrada marítima no continente, pelo estreito de Bering: se é verdade que a Austrália foi alcançada há uns 50 mil anos por homens que, vindos da Ásia, atravessaram uns 60 km de mar, nada impediria que outros viessem para a América por navegação costeira”. MELTZER, David apud CUNHA,

do evolucionismo, prosperou a ideia de que certas sociedades teriam ficado na estaca zero da evolução, e que eram portanto algo como fósseis vivos que testemunhavam o passado das sociedades ocidentais. Foi quando as sociedades sem Estado se tornaram, na teoria ocidental, sociedades “primitivas”, condenadas a uma eterna infância. E, porque tinham assim parado no tempo, não cabia procurar-lhes a história. (...) Na realidade a história está onipresente. Está presente, primeiro, moldando unidades e culturas novas (...). Está presente a história ainda na medida em que muitas das sociedades indígenas ditas “isoladas” são descendentes de “refratários”, foragidos de missões ou do serviço de colonos que se “retribalizaram” ou aderiram a grupos independentes como os Mura. (...) Está presente a história também no fracionamento étnico (...).169

Pois bem, o fato é que a América foi invadida170 e que houve um genocídio171 da população aborígene que cá estava. Mas também é fato que houve sobreviventes e que a construção da história indígena continua sendo escrita.

Assim, por conta de não ser propósito deste estudo listar exatamente quais, quantos e onde vivem todos os povos indígenas desse continente, escolheu-se, aqui, falar de apenas algumas populações latino-americanas que justamente estejam enfrentando na atualidade grandes desafios - figurarão, nessa apresentação, como representantes dos indígenas de todo o continente e servirão para mostrar que as lutas por sobrevivência, transcorridos todos esses 500 e tantos anos, ainda não são poucas e se irradiam por toda parte.172

a) Índios mapuche das comunidades de Mellao Morales e Huenctru Trawel Leufú (Argentina), Reserva de Jach’a Suyu Pakajaqui (Bolívia) e populações indígenas do Panamá

Na província de Neuquén, Argentina o conflito foi originado pela assinatura de um contrato permitindo a exploração de cobre nos limites da reserva indígena173 que pertence à

169 Ibidem, p. 11-13.

170Há quem fale também em “conquista”. Nesse sentido, por exemplo, SOUZA FILHO, Carlos Frederico Máres

de. O renascer dos povos indígenas para o Direito. 1ª. ed, 8ª reimpressão. Curitiba: Juruá, 2012. p. 43.

171 Expressão cunhada por Manuela Carneiro da Cunha. Op. cit (2012), p.17.

172 Mapa mostra pontos de tensão para indígenas em 10 países. 23 de abril de 2012. Disponível em:

<http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/04/120423_vale_mapa_indios_3.shtml>. Último acesso em 20 de agosto de 2013. Observação: o rol de conflitos foi retirado desta fonte, mas as informações foram, na medida do possível, complementadas e atualizadas.

173 Para saber mais sobre o processo de demarcação das terras desses povos consultar: AYLWIN, José. Políticas

públicas y pueblos indígenas: el caso de las tierras mapuche em Neuquen (Argentina) y la Auracania (Chile). 2004. Disponível em: <http://lanic.utexas.edu/project/laoap/claspo/rtc/0041.pdf>. Último acesso em

uma comunidade mapuche. Desde 2008 suas demandas judiciais tramitam pedindo a anulação desse pacto; em 2012 as obras foram paralisadas para que os indígenas fossem consultados.

Situação parecida enfrenta o povo indígena boliviano da província de Pacajes, departamento de La Paz, onde um projeto hidrometarlúgico voltado à extração do mesmo minério e capitaneado pela Corporación Miera de Bolívia e pela empresa coreana Kores174 foi iniciado na reserva em que vivem. Sem qualquer licença ambiental admitindo esse empreendimento, já foram gerados alguns impactos bem negativos na região, tais como o desvio do curso e a poluição do rio local. Nesse caso, a comunidade recorreu à CIDH para tentar frear o empreendimento175.

Finalmente, o Projeto Mesoamérica que tem como escopo interligar o Panamá à América do Norte pelo México e à América do Sul pela Colômbia prevê investimentos bilionários em construção de estradas e integração de redes elétricas. Os povos indígenas da região temem ser afetados e exigem seu direito à consulta prévia.

b) Território Indígena Parque Nacional Isiboro Secure (Tipnis, Bolívia) e povo huicholes (México)

Na região das províncias de Beni e Cochabamba a construção de uma estrada causou bastante polêmica por afetar povos do Parque Tipnis - local onde vivem, espalhados em 64 comunidades, 12 mil integrantes dos povos yurucaré, moxenho e chimane.

O projeto da rodovia teve como motivação reduzir a distância de 900 quilômetros, transponível somente em três dias de viagem, entre duas localidades - Vila Tunaria (município pertencente à província de Cochabamba) e San Ignacio de Moxos (município pertencente à província de Beni).

De um lado, os motivos que levariam a construir a estrada estão relacionados às consequências trazidas à região por sua difícil acessibilidade, o que a transforma em um espaço bastante carente em infraestrutura e praticamente não servido por serviços públicos

174 Informação disponível em: <http://www.noticiasaliadas.org/articles.asp?art=6423>. Último acesso em agosto

de 2013.

175 Realizou-se busca <http://search.oas.org/es/cidh/default.aspx> pelo nome da Reserva no site da Comissão

Interamericana de Direitos Humanos para saber mais informações sobre a petição inicial, mas nada foi

encontrado. Além disso, foram verificados os informes de admissibilidade

<http://www.oas.org/es/cidh/decisiones/admisibilidades_2000-2002.asp#inicio> dos últimos 10 anos (2004- 2013), mas o caso não figurava no rol de petições admitidas. Último acesso em agosto de 2013.

essenciais. Além disso, pecuaristas das redondezas acabam dependendo de intermediadores da cidade de Santa Cruz de la Sierra para conseguir vender a carne bovina que produzem.

De outro, indígenas e ambientalistas tinham previsões de impactos ambientais bastante negativos gerados pela facilitação do acesso, dentre eles a derrubada da floresta do parque por madeireiros e plantadores de coca. 176

Após consulta realizada pelo Tribunal Superior Eleitoral da Bolívia, com os indígenas em 58 das comunidades do complexo, durante o período de julho a dezembro de 2012, a maioria decidiu permitir a construção da estrada, desde que com alguns limites, a saber, que seja ecológica, que não altere seus modos tradicionais de vida, que eles possam colaborar no traçado da rota e também que seja feito um estudo de impacto ambiental prévio.177

Também é a construção de uma rodovia que está desajolando índios, destruindo seus locais sagrados e degradando mananciais na região de Bolaños-Huejuquilla (Jalisco), no México178. Desde 2005 os indígenas lutam para tentar impedir as obras.

c) Comunidade Agrícola Diaguita de los Huascoaltinos (Chile) e indígenas das províncias de San Juan Ostuncalco, Cabricán e Huitán (Guatemala)

Nos dois lugares a exploração de ouro é o que ameaça os povos indígenas chilenos e guatemaltecos. Na Guatemala a exploração foi iniciada em 2005 e os indígenas a desaprovam pois, além de poluir o rio de seu território, a riqueza gerada não beneficia em nada a população local.

176 FUSER, Igor. Bolívia, entre a preservação e o desenvolvimento. Revista Desafios do Desenvolvimento.

Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA). 2011. Ano 8. Edição 70 - 29/12/2011. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=2669:catid=28&Itemid=23 >. Último acesso em agosto de 2013.

177 In: Bolívia: os indígenas do Tipnis autorizam estrada, mas impõem condições. 07 de janeiro de 2013.

Disponível no portal Información y análisis de América Latina (Infolatam):

<http://www.infolatam.com.br/2013/01/08/bolivia-os-indigenas-do-tipnis-autorizam-estrada-mas-impoem- condicoes/>. Último acesso em agosto de 2013.

178 Para saber mais sobre os problemas indígenas no México consultar: SALAS, Marcela; BIBRIESCA, Sérgio;

MONCAU, Joana; MUÑOZ, Gloria; PIMENTEL, Spensy. Um panorama das lutas indígenas contra os

grandes projetos econômicos no México. Disponível em:

<http://desinformemonos.org/PDFTODOS/portugues/12.pdf>. Último acesso em agosto de 2013. Dizem, por exemplo, que: “Minas, estradas, programas turísticos, pontes, planos imobiliários, grandes cadeias de mercado,

agronegócios e produção de energia eólica são apenas alguns dos projetos nacionais e transnacionais que incidem sobre territórios indígenas no México. A autonomia e a organização coletiva são a resposta que vem de baixo.”

Já os huascoaltinos que habitam a fronteira do Chile com a Argentina se opõem ao Projeto Pascua Lama179 que, iniciado há mais de dez anos, está acarretando inúmeros prejuízos ambientais para a região onde vivem. Este caso foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 10 de janeiro de 2007 com informe de admissibilidade180 da petição (nº 141/09) emitido em 30 de dezembro de 2009, ocasião em que, dentre outras coisas, a Comissão decidiu continuar com sua análise de mérito do caso. No âmbito interno chileno a Corte de Apelações de Copiapó, norte do país, ratificou em julho de 2013 uma decisão judicial emitida anteriormente pela paralisação das obras do projeto mineiro. Apesar de ainda caber recurso ante à Corte Suprema, por ora as obras estão suspensas, já que o entendimento dos juízes que analisaram foi de que as obras estão afetando gravemente os recursos hídricos da localidade e que é necessário existir um plano de rastreamento e monitoramento voltado à fiscalização do cumprimento das leis ambientais181.

d) Populações indígenas da província de Manta (Equador) e Terras Awá das províncias de Tumaco e Puerto Assis (Colômbia)

Por conta da construção de projetos bilionários de corredores de transporte intermodais, alguns povos indígenas equatorianos e colombianos estão, respectivamente, sendo ou na iminência de serem, prejudicados. No caso da Colômbia, o projeto, que não foi submetido à consulta prévia, ainda está em fase de estudo e atravessaria territórios indígenas ancestrais; já no Equador as obras estão em curso e objetivam ligar a cidade de Manta à Manaus por meio de construção de estradas, aeroportos e conexões fluviais - os indígenas tampouco foram consultados, apesar de opinarem no sentido de que as obras afetarão seus territórios localizados nas cercanias do rio Napo.182

179 O “Pascua Lama” é um projeto de mineração binacional (Chile-Argentina) liderado pela empresa “Barrick

Gold”. Informação disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Pascua_Lama>. Último acesso em agosto de 2013.

180 Disponível em: <http://www.cidh.oas.org/annualrep/2009sp/Chile415-07.sp.htm>. Último acesso em agosto

de 2013.

181 In: Justiça ratifica paralisação de projeto de mineração de Pascua Lama. Santiago do Chile, 15 de julho

de 2013. Disponível no Portal Información y análisis de América Latina (Infolatam): http://www.infolatam.com.br/2013/07/16/justica-ratifica-paralisacao-de-projeto-de-mineracao-de-pascua-lama/. Último acesso em 20 de agosto de 2013.

182 O economista Héctor Mondragón, especialista em assuntos indígenas, diz sobre o caso colombiano: “É claro que há interesses na região. E o resultado do conflito é que os índios acabam sendo expulsos, e a terra fica vazia. A mesma terra que vai valer muito dinheiro quando essa estrada existir. (...) Imagine que alguém possa viajar do Brasil a Tumaco. Essas terras vão valer milhões.” In: Valorização do sul da Colômbia aumenta

violência contra nativos. Disponível em:

<http://operamundi.uol.com.br/conteudo/reportagens/1127/valorizacao+do+sul+da+colombia+aumenta+violenci a+contra+nativos.shtml>. Último acesso em agosto de 2013.

e) Parque Nacional Yasuní (Equador) e Departamento de Madre de Dios (Peru)

Nesses dois lugares o principal desafio enfrentado pelos indígenas é a exploração petrolífera - no caso peruano cumulada com a extração de gás e a construção, já finalizada, da estrada Interoceânica, ligando o Peru ao Brasil183.

É a brasileira Petrobrás a responsável pelo projeto exploratório na área onde vivem povos isolados (tagaeri e taromeane) no Equador. Em 2007, por meio de uma iniciativa chamada “Yasuní Ishpingo Tambococha Tiputini” (ITT) tentou-se evitar a invasão do parque por meio de um acordo com o governo equatoriano que previa que caso metade do que se arrecadaria com o projeto de exploração fosse financiado por organismos internacionais o plano de extrair petróleo do local seria abandonado. O próprio Programa das Nações Unidas para o Desenvilvimento estabeleceu um fundo fiduciário para administrar as doações, mas como elas não alcançaram o patamar pactuado, o presidente do país declarou em agosto de 2013 que não tem mais alternativa que não a de dar seguimento ao projeto.184

f) Povos indígenas da bacia do Rio Xingu e povos indígenas do nordeste brasileiro - Brasil

No Brasil, dentre tantos outros problemas, a construção da usina Belo Monte, na região paraense de Altamira e a transposição do rio São Francisco são duas grandes obras que estão afetando povos indígenas brasileiros.

O caso Belo Monte será tratado mais detidamente no capítulo destinado à análise da jurisprudência sobre povos indígenas.

Sobre a transposição do rio São Francisco, importante pontuar que ao menos 18 populações estão sendo prejudicadas (dentre elas os Truká, Tumbalalá, Pankararu, Anacé,

Tuxá, Pipipã, Kambiwá, Xocó e Kariri-Xocó), posto que se trata do terceiro maior rio do país e até o presente momento, já foram construídas 7 hidrelétricas e 30 barramentos no curso de suas águas.

Segundo o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) que produziu, entre agosto e outubro de 2008, um relatório para denunciar os impactos decorrentes do projeto, as

183 “Do gigantesco investimento no projeto de mais de US$ 2,8 bi, apenas US$ 18 mi foram destinados à mitigação dos danos sociais e ambientais da obra no Peru”. Informação disponível em: Estrada Interoceânica:

os impactos sociais sobre as cidades da região. 23 de outubro de 2012.

<http://economia.estadao.com.br/noticias/economia,estrada-interoceanica-os-impactos-sociais-sobre-as-cidades- da-regiao,131992,0.htm>. Último acesso em agosto de 2013.

184 Ecuador abre el Parque Nacional Yasuní a las petroleiras. 19 de agosto de 2013. Site do movimento pelos

comunidades indígenas afetadas reclamam: “o reconhecimento de suas identidades étnicas e territoriais; o direito de serem devidamente informados e consultados a respeito da transposição (...); o direito pleno aos seus territórios e desmilitarização das áreas que se encontram invadidas pelo Exército Brasileiro para execução de obras, e desintrusão de outras áreas invadidas por posseiros, fazendeiros e empresas que tem desencadeado conflitos violentos em terras indígenas; o direito de acesso à justiça (...); a garantia de segurança e de um tratamento justo e igualitário pelo sistema de justiça do país (...); o direito à autodeterminação indígena e um modelo de desenvolvimento sustentável que respeite a natureza e seus modos de vida e de produção.”185