• Nenhum resultado encontrado

Os direitos humanos e fundamentais dos povos indígenas e os juízes: olhares presentes na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Supremo Tribunal Federal MESTRADO EM DIREITO

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2019

Share "Os direitos humanos e fundamentais dos povos indígenas e os juízes: olhares presentes na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Supremo Tribunal Federal MESTRADO EM DIREITO"

Copied!
145
0
0

Texto

(1)

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Nathércia Cristina Manzano Magnani

Os direitos humanos e fundamentais dos povos indígenas e os juízes: olhares presentes na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Supremo

Tribunal Federal

MESTRADO EM DIREITO

(2)

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Nathércia Cristina Manzano Magnani

Os direitos humanos e fundamentais dos povos indígenas e os juízes: olhares presentes na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Supremo

Tribunal Federal

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Direito, sob orientação da Profª. Drª. Flávia Piovesan.

(3)

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________

_____________________________________

(4)
(5)

“Eu quero, quero

Um canto de paz O canto da chuva O canto do vento A paz do índio A paz do céu A paz do arco-íris A cara do Sol O sorriso da Lua Junto à natureza em comunhão

Eu tô voando feito um passarinho Ziguezagueando feito borboleta Tô me sentindo como um canarinho Eu tô pensando em minha violeta

Êta, êta, êta, êta, êta Êta, êta, êta, êta, êta

(6)

AGRADECIMENTOS

Gratidão é sentimento que sempre tento cultivar. Mas, que nesse momento, não cabe no peito, transborda! Sou imensamente grata:

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) cujo auxílio financeiro concedido durante o curso do meu mestrado foi absolutamente essencial para que eu pudesse ter permanecido, em regime de dedicação exclusiva, no programa de pós-graduação que escolhi cursar;

À Universidade Estadual de Londrina (UEL) onde iniciei meu percurso no Direito pelo ensino público e gratuito que ali recebi na graduação e por até hoje fazer parte das minhas melhores lembranças;

Assim, também a todos àqueles que lutaram (e ainda lutam) para que existissem as bolsas de fomento à pesquisa e o ensino superior público e gratuito no Brasil;

À minha orientadora Flávia Piovesan que me acolheu de braços abertos na PUC-SP e, desde o primeiro momento, estabeleceu comigo uma relação permeada por muito diálogo, carinho e confiança. Agradeço-te por ter dedicado seu tempo à leitura desse trabalho e pelas valiosíssimas contribuições que fez a ele; pela honra de integrar sua “Equipe de Direito Constitucional”; pelo privilégio de poder aprender muito sobre direitos e humanidade na convivência que tive como aluna, assistente e orientanda com você no decorrer desses dois anos;

Aos meus pais Odeval e Graça por um sem número de coisas, mas principalmente por terem, em diversos momentos e de variadas maneiras, recheado minha vida de incentivo, compreensão e muito amor;

Aos meus irmãos Haroldo, Nathalia e Heitor por serem irmãos no sentido mais preciso e precioso da palavra e ao meu sobrinho Henrique por ser tão lindo;

(7)

fundamentais em muitos momentos para que essa dissertação saísse e é por essas e tantas outras razões que o amor e admiração que nutro pelas duas só cresce!;

À Luana, ainda, gratidão eterna pelo endereço e cotidiano paulistanos;

Ao Vitor, por saber que será meu amigo e dividiremos muitos bons momentos para sempre!;

À Mariana por ser tão especial, parceira e sempre oxigenar minha cabeça com tantos outros assuntos que não o Direito;

Às meninas de Bonifácio (Estelinha e Nara) por, mesmo com cada uma de nós em um lugar diferente há quase dez anos, manterem-se tão “minhas”;

À Luciana e à Cris porque o mestrado foi só o começo: estou certa que a vida ainda reserva muitos projetos, sonhos e alegrias para realizarmos juntas;

À Aline, por ser uma companhia tão (re)energizante sempre que a gente consegue se encontrar!;

Ao PB por ter, tão generosamente, me aberto inúmeros caminhos e me ensinado tanto sobre Direito - principalmente acerca de onde não errar;

Aos professores Marcelo Sodré e Silvia Pimentel que, na minha banca de qualificação forneceram críticas essenciais para que esse trabalho revisitasse rumos anteriormente estabelecidos;

A todos os professores que ministraram aulas muito apaixonadas e extremamente impactantes sobre Teoria Crítica dos Direitos Humanos e também aos amigos que fiz e na companhia de quem passei momentos extremamente felizes durante minha estadia na Universidade Pablo Olavide, em Sevilla, em especial: Manuel, Carol Proner, Vicente, Cristina, Emma, Maria, Mariam, Andrea, Shana e Priscila;

Aos professores do curso “Introdução aos Estudos sobre Povos Indígenas” da USP por terem construído e descontruído tantas ideias em minha cabeça;

Aos membros da Equipe de Direito Constitucional, especialmente à Ciça, por terem compreendido minha ausência durante o período de reclusão para a escrita desta dissertação;

(8)

Aos companheiros do “Grupo de Estudos Direito, Estado e Sociedade” da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP-SP) por estarmos plantando juntos e pouco a pouco uma semente que eu acredito que ainda pode render muitos bons frutos;

A todos os pesquisadores ou autores com os quais pude dialogar neste trabalho; A todos aqueles que compartilharam comigo indicações de textos, artigos, reportagens, livros, congressos, filmes, músicas, além de opiniões, percepções, sensações, paixões, viagens (reais ou metafóricas), boas energias ou quaisquer outros contributos que possam ter servido, direta ou indiretamente, para a construção desse trabalho;

(9)

RESUMO

O trabalho busca compreender qual(is) concepção(ões) de direitos humanos e fundamentais é(são) predominante(s) na construção da jurisprudência sobre povos indígenas da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e do Supremo Tribunal Federal (STF). Para tanto, foram estudadas três correntes que, de maneira diversa entre si, dedicam-se a fundamentar os direitos humanos: a universalista, o relativismo cultural e a mirada crítica presente nas obras de Joaquín Herrera Flores. Seguidamente, partiu-se para uma análise quantitativa e qualitativa das jurisprudências sobre indígenas da CIDH e do STF e a partir dos dados colhidos, analisados e comparados foi possível ponderar que a primeira é mais aberta para ao diálogo e ao universalismo de confluência do que o segunda, já que vem interpretando as violações cometidas contra as populações ameríndias como violações comunais e dando destaque ao direito à identidade cultural, à consulta prévia, acessível e informada e à vida digna.

(10)

ABSTRACT

This project aims to understand which base(is) of the human and fundamental rights is (are) predominant in the jurisprudence’s construction in effect for indigenous communities of Inter -American Court of Human Rights (IACHR) and of the Supreme Federal Court (STF). In order to do so, three theories have been studied aiming to found the human and fundamental rights: universalism, cultural relativism and the critical perspective of the theoretical text present in the literary works of Joaquín Herrera Flores. After that based on collected and analyzed data, it was possible, based on comparison analyzes, to run a quantitative and qualitative study to conclude that the first jurisprudence (IACHR) is more open for the dialogue and confluency universalism. The conclusion was also based in the fact that the first jurisprudence (IACHR) has been interpreting violations committed against indigenous population as well as communal violations therefore highlighting the importance of cultural identity rights of the indigenous population, the right to be consulted and reinforcing their rights to have a dignified life.

(11)

SUMÁRIO

(12)

INTRODUÇÃO

“A expressão reta não sonha.

Não use o traço acostumado. (...) O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo.”

(Manuel de Barros1)

Falar sobre a escolha do tema dessa dissertação significa também falar um pouco de mim. Portanto, quebrando momentaneamente a impessoalidade que costuma reger as produções acadêmicas permito-me utilizar a primeira pessoa, adjetivos, coloquialismos e um pouco de paixão para construir as linhas desse introito.

Dedicarei essa Introdução não a iniciar teorizações ou simplesmente resumir o que falarei adiante, mas sim para dialogar um pouco mais sobre o próprio trabalho que se segue, seu processo de tessitura, metodologia, objetivos, problema de pesquisa, desafios do percurso, e peculiaridades.

Os papeis que chegam aos gabinetes dos juízes normalmente são brancos, digitados em letras padrões e ordenados em forma de volumes processuais. Normalmente, ainda, existem muitas e muitas brochuras esteticamente parecidas empilhadas em cima da mesa de trabalho de cada um deles. Dentro de cada processo desses, no entanto, existe uma história - que nem sempre é faticamente verdadeira e juridicamente relevante, mas mesmo assim não deixa de ser uma história contada por alguém que “está ali” porque acredita nela ou na demanda que faz por meio dela. E muitas vezes essas pessoas que vão aos povos Judiciários são, mais exatamente falando, um coletivo de pessoas: os povos indígenas.

(13)

Essa é a parte com certa dose de romantismo. A outra é que os órgãos judiciais pelos quais tramitam esses documentos e, ainda, o próprio ato de julgá-los e, com isso, dar fruto às sentenças, são verdadeiras expressões de poder2. Mais que isso: fazem parte da concorrência “pelo monopólio do direito de dizer o direito”3. É a lógica prevista na teoria por Bourdieu se

confirmando na prática.

Com isso quero dizer que acredito que existam duas esferas diferentes (mas não por isso estanques) no campo jurídico: o “direito escrito” e previamente existente e o “direito falado”4 ou posteriormente produzido.

Feitas essas ponderações formulo então, a seguinte pergunta: que ótica de mundo estão emprestando esses detentores de grande parcela do poder jurídico para os papeis por meio dos quais estão afirmando os direitos humanos e fundamentais dos povos indígenas?

Lançado está meu problema de pesquisa.

Se não tiver ficado claro me esforço para acender nova luz: o que pretendo nessa dissertação é enxergar como o corpo de juízes de duas esferas de poder diferentes - uma aqui (Supremo Tribunal Federal) e outra acolá (Corte Interamericana de Direitos Humanos) - estão tratando e julgando os processos relativos aos direitos dos povos indígenas que passam por suas mãos e olhos. Mais do que isso, como estão enxergando as demandas por trás desses processos, através de qual ótica de mundo.

Deve-se entender esta pesquisa, então, como uma sucessão de lentes - pretende-se que para fazer ver mais claramente, então, por que não falar em lupas? - enfileiradas: volto o meu olhar pessoal para entender influenciados por qual(is) concepção(ões) estão olhando os juízes do STF e da CIDH para os direitos humanos e fundamentais dos povos indígenas - os quais por sua vez concebem mais de uma possibilidade teórica de mirada. Em outro jogo de palavras: minha visão sobre qual visão de mundo têm, ao construir a jurisprudência sobre a

2 Bordieu diz que: “Os sistemas simbólicos, como instrumentos de conhecimento e de comunicação, só podem

exercer um poder estruturante porque são estruturados. O poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social) supõe aquilo a que Durkheim chama o conformismo lógico, quer dizer, uma “concepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna possível a concordância entre as inteligências.” In: BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 16. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. p. 09-10.

3 Ibidem, p. 212.

(14)

matéria, esses integrantes fundamentais do jogo jurídico acerca do fundamento dos direitos humanos e fundamentais dos povos indígenas.

Quem se interessar por entregar-se à essa narrativa precisa, então, aceitar o convite para essa dialética de olhares, já que a busca por vislumbrar os caminhos menos tortuosos para fazer dialogar o “eu” (que nessa dissertação pode personificar-se como o Direito) com o “outro” (que nessa dissertação pode personificar-se como os povos indígenas) estará o tempo todo permeando as próximas páginas.

Importante, agora que fixados a problemática e o objetivo essencial deste trabalho, adiantar uma hipótese de pesquisa central: iniciei meu percurso de investigação com a sensação5 de que os acórdãos e sentenças, apesar de fundamentarem-se em documentos normativos positivados que se revestem de um discurso de diálogo intercultural, ainda deixam muito a desejar no emprego deste. Como isso seria possível? Repito que advogo pela existência de dois mundos: o dos escritos e o do que fazem com eles.

Posso dizer que o gérmen desse trabalho surgiu da ideia de trabalhar com a problemática da fundamentação dos direitos humanos e fundamentais. Esse debate, apesar de bastante teórico, é extremamente instigante, atual e ainda com muito “fôlego acadêmico” para aqueles que encaram o desafio de se lançar por suas tortuosidades.

No entanto sentia que queria também agregar um pouco de “chão” para esse estudo - a inclusão do levantamento e análise crítica da jurisprudência do STF e da CIDH sobre povos indígenas, assim, foi essencial para conseguir aliar esses dois lados e realizar o corte de pesquisa necessário. Aliás, se fosse possível falar em qualquer trunfo ou quilate desse projeto, creio que seria justamente nesse ponto que ele residiria: no mapeamento e interpretação de casos jurisprudenciais realizados. Essa perspectiva empírica assumiu tanta relevância para esse trabalho que se pode dizer que responder à pergunta “Quais são os fundamentos dos direitos humanos?” acabou se tornando um mote secundário, já que aqui, recapitulando, pretendo, de forma muito mais pontual, descobrir se existe alguma tendência sobre a fundamentação dos direitos humanos e fundamentais nas jurisprudências sobre povos indígenas da CIDH e do STF. É bem diferente: muitas especificidades (contidas principalmente nos vocábulos “povos indígenas”, “STF”, “CIDH”) foram agregadas àquela pergunta genérica.

(15)

Para alcançar o fim desejado, a metodologia utilizada no trabalho envolveu pesquisa bibliográfica, normativa e jurisprudencial. Em alguns pontos específicos da escrita aprofundo em considerações e explicações metodológicas. Por ora, digo que incursionar por esses três universos metodológicos diferentes foi necessário justamente porque o trabalho é constituído de duas partes (uma teórica e outra normativo-jurisprudencial), as quais considero degraus necessários para chegar até o comparativo crítico da atuação jurisdicional entre a Corte Interamericana e o Supremo Tribunal Federal relativamente aos povos indígenas.

No primeiro capítulo tratei da fundamentação dos direitos humanos e fundamentais, expondo as principais correntes para entender como esses direitos podem ser mirados de diferentes maneiras: pelo universalismo, pelo relativismo e pela fundamentação crítica de Joaquín Herrera Flores.

Seguidamente, o segundo e terceiro capítulo dedicam-se a demonstrar qual é o

direito escrito sobre povos indígenas que temos hodiernamente, traçando um panorama da legislação existente sobre povos indígenas no Brasil (principalmente focando na Constituição Federal) e no mundo (principalmente focando nos tratados internacionais de direitos humanos sobre a matéria) e, também qual é o direito falado, isto é, como as jurisprudências das duas jurisdições objetos de estudo desta pesquisa vêm mirando os povos indígenas e construindo suas políticas judiciárias nessa matéria. Nessa parte emergem um levantamento legislativo, dados quantitativos e análises qualitativas.

No quarto e conclusivo capítulo alcanço o ápice da minha proposta, fazendo o comparativo crítico da atuação das duas Cortes e respondendo o problema de pesquisa proposto.

Por fim, importante dizer que entendo que o momento para estudar, pesquisar e utilizar a academia para produzir discussões científicas sobre povos indígenas não poderia ser mais oportuno. Sem receio de errar afirmo que faltam direitos humanos e fundamentais aos povos indígenas na atualidade ou, em outras palavras, que o panorama de grandes violações dos povos indígenas é hodiernamente uma questão de direitos humanos.

(16)

Sul? Ali, ao serem comprimidos em suas terras, vivem em condições bastante sub-humanas de moradia e têm dificuldade cada vez mais para conseguir os bens mais elementares para sociedades comunais normalmente baseadas na caça, pesca e extrativismo vegetal - alimento e água. Os resultados disso são, dentre outros, elevados índices de desnutrição infantil e um cenário que a Anistia Internacional em visita recente ao Brasil chamou de uma “zona franca de direitos humanos”.6

Continuando a linha de raciocínio, como encarar diversamente de uma questão de direitos humanos e fundamentais a quase dizimação do povo Jiahui e as inúmeras mortes que reduziram drasticamente a população dos Tenharim por conta da construção da Rodovia Transamazônica (BR-23) e que, até hoje, 40 anos depois, não foram devidamente investigadas e indenizadas?7

Podemos falar ainda que é sim uma questão de direitos humanos e fundamentais o fato da comunidade Guató, cujos indígenas vivem praticamente isolados no Pantanal, ter ficado por quase 50 dias sem água potável por inércia da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) em consertar o gerador de energia elétrica da comunidade8. Igualmente, a manutenção de 21 processos de demarcação de Terras Indígenas (Tis) na “gaveta” do Executivo9.

Por fim, como últimas observações, importante dizer que se privilegiou sempre a traduação da literatura estrangeira, principalmente das obras em espanhol, de forma a permitir maior fluidez ao texto. Ainda, todas os endereços eletrônicos acessados e constantes em nota de rodapé foram novamente verificados em agosto de 2013 quando da revisão final desse trabalho.

Postas essas considerações prévias, inicio meu percurso.

6 Para entender mais sobre como os problemas em torno dos guarani e kaiowa tornaram-se uma questão de direitos humanos consultar PIMENTEL, Spensy Kimitta. Elementos para uma teoria política kaiowa e guarani. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Antropologia Social da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2012.

7 Informação disponível em: <http://elaizefarias.com.br/index.php/povo-indigena-do-am-quase-extinto-pela-transamazonica-quer-investigacao-da-comissao-nacional-da-verdade/>. Último acesso em agosto de 2013. 8Informação disponível em: <http://www.prms.mpf.mp.br/servicos/sala-de-imprensa/noticias/2013/08/comunidade-indigena-isolada-no-pantanal-esta-ha-50-dias-sem-agua-potave>l. Último acesso em agosto de 2013.

(17)

PARTE I APORTE TEÓRICO

“Efetivamente, depois de quase três décadas da

ofensiva neoliberal e conservadora, seguimos buscando respostas onde aqueles que nos roubaram a carteira colocaram sua armadilha. Mesmo sabendo que ali não vamos encontrar nada, estamos empenhados em olhar somente onde nos é indicado, o que faz com que as sombras que se estendem ao redor da nossa forma de conhecer o mundo sejam muito maiores que as luzes que deveriam iluminar nossas

perguntas.”

(Joaquín Herrera Flores10)

(18)

CAPÍTULO 1: FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS11

Fundamentar é normalmente colocado como se sinônimo fosse de justificar12. Esta não é exatamente uma maneira errada de explicar o que seriam os tais fundamentos de que se pretende falar, mas, apesar disso, demasiadamente genérica.

A primeira parte desse trabalho é puramente teórica e objetiva analisar quais são as possíveis óticas de mundo existentes para olhar e compreender os direitos humanos e os direitos fundamentais. Ou, em outras palavras: quais são as correntes que explicam a ordem fundante desses direitos.

Serão analisadas três teorias voltadas à fundamentação dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, quais sejam, a universalista, a relativista e a superação desse debate bipolar pela ótica de Joaquín Herrera Flores. Assim, durante a narrativa desse capítulo sobrevirão três grandes subdivisões.

A razão dessa incursão jus-filosófica é de extrema relevância para essa dissertação e atende a duas motivações essenciais:

i) Fixar, demonstradas as diversas possibilidades, a linha ideológico-investigativa que a autora entende ser a mais adequada para tratar do tema dos fundamentos dos direitos humanos e dos direitos fundamentais;

ii) Servir de subsídio para, posteriormente, na parte III dessa dissertação, entender o modus operandi do Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro e da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no ato de julgar casos

11 Não se ignora a problemática de definição na seara conceitual que existe na doutrina e no direito positivo. Para esse trabalho, a distinção entre “direitos humanos” e “direitos fundamentais” seguirá a linha espacial, a mesma

estabelecida por SARLET, que diz: “Em que pesem sejam ambos os termos comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo “direitos fundamentais” se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão “direitos humanos” guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional.” In: SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2007.

12“A tentativa de encontrar nos escritos sobre o tema uma definição do termo “fundamentação” que seja de

(19)

envolvendo povos indígenas e, por conseguinte, traçar alguns juízos de valor comparativos sobre as atuações dessas duas jurisdições especificamente nesse âmbito.

Porém, antes de adentrar no tema propriamente dito, algumas poucas palavras serão devotadas para entender porquê a globalização acentuou a problemática da ordem fundante dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, robustecendo o embate entre universalistas e relativistas e acentuando os desafios de compreensão para o universo hermético da doutrina tradicional do Direito.

O terreno dos direitos humanos é terra de incertezas, experimentações, desafios e missões por cumprir. Com isso, embora normalmente os trabalhos acadêmicos sirvam para trazer respostas, certamente será inevitável lançar mão de alguns pontos de interrogação durante o decorrer dessa dissertação - especialmente desse primeiro capítulo. Mas, desafiadoramente, uma afirmação dará início à discussão: vive-se uma época de mudanças intensas.

Candau diz:

No mundo atual, a consciência de que estamos vivendo mudanças profundas que ainda não somos capazes de compreender adequadamente é cada vez mais aguda. Para muitos intelectuais e atores sociais, não estamos simplesmente vivendo uma época de mudanças significativas e aceleradas, e sim uma mudança de época. Essa realidade provoca perplexidade e suscita uma ampla produção científica e cultural, assim como um intenso e acalorado debate. Muitas são as leituras da crise global de paradigma que estamos atravessando. Cientistas políticos, sociólogos, economistas, filósofos, teólogos, psicólogos, informatas, literatos, físicos, artistas, diferentes produtores intelectuais e culturais se dedicam a analisar essa

problemática.13

Apesar disso, entende-se que seria ingênuo e inapropriado justificar a germinação de todas as vicissitudes do mundo a partir do fenômeno intitulado globalização14. Há, inclusive,

13 CANDAU, Vera Maria. Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões entre igualdade e diferença. Revista Brasileira de Educação, v. 13, n. 37, jan./abr, 2008. p. 45. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v13n37/05.pdf>. Último acesso em agosto de 2013.

14“O conceito de globalização é polissêmico. Vai desde o sentido de universalização das regras liberalizantes

(20)

aqueles que neguem a atribuição de qualquer importância a esse processo15. Nem tanto ao céu, nem tanto à terra: sustentará esse trabalho que a partir desse marco alguns efeitos foram gerados16, dentre eles a instalação de uma contradição17.

É inegável que, por um lado, tem-se cada dia mais a intensificação da padronização de respostas iguais para todos os cidadãos ditadas por uma ordem hegemônica, a qual enviesa para que o mundo torne-se homogêneo a partir de seus valores18.

Sobre isso, Geertz bem humoradamente assinala:

Podemos ver-nos confrontados com um mundo no qual simplesmente já não existam mais caçadores de cabeças, estruturas matrilineares ou pessoas que

mais precisamente, na afirmação do mercado total como espaço não somente de trocas econômicas, mas como espaço de socialização e de constituição da subjetividade.” CARBONARI, Paulo César. Globalização e

direitos humanos: identificando desafios. Disponível em:

<http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/carbonari/carbonari_globalizacao_dh_desafios.pdf>. Último acesso em agosto de 2013. p.1.

15“Antes de se adentrar na abordagem histórica da globalização, faz-se necessário elucidar que os estudiosos

do fenômeno se dividem, de acordo com David Held e Anthony McGrew, em dois grandes grupos, quais sejam, os globalistas - que percebem a globalização contemporânea como um acontecimento histórico real e significativo - e os céticos - para os quais a globalização não passa de uma construção primordialmente ideológica ou mítica, cujo valor explicativo se mostra marginal”. REYNALDO, Renata Guimarães. O movimento global e o papel dos movimentos feministas na efetivação de uma globalização contra-hegemônica. Dissertação de mestrado. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), 2012. p. 25.

16 Sobre o impacto especificamente no campo do Direito: Este mundo de segurança, conforto e auto-suficiência

[da lei] vem sucumbindo por todos os lugares, embora de variadas formas e em vários níveis de velocidade e intensidade. A revolução política, a luta social e a guerra têm empobrecido as fontes da lei, seu próximo e inevitável vínculo com a ética, a política, os fundamentos sociais da comunidade a que a lei se aplica. Sem o mesmo impacto verificado nos regimes fascista e comunista, em todos os Estados se percebe uma lenta e sub-reptícia revolução social que afeta o direito em seus princípios, bem como em sua aplicação diária e rotineira.”

BATISTA, Vanessa Oliveira. A globalização e os novos desafios no Direito Internacional. In: SILVA, Carlos A. C. Gonçalves da. COSTA, Érica da. (Orgs.). Direito Internacional Moderno. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004. p. 315.

17 O cientista político francês Dominique Wolton, nesse viés, aduz o seguinte: “A dinâmica econômica da

globalização é a concentração. Ela está acontecendo por toda parte e em tudo: na indústria petrolífera, na automobilística, na energia. Os grupos econômicos fazem isso e argumentam, demagogicamente, que, quanto mais poderosos forem, mais respeito terão à diversidade cultural dos países onde atuam. Isso é uma mentira. Mas há uma reação a essa uniformização proposta pela globalização. É essa resistência que vai se traduzir numa reivindicação cada vez mais intensa por uma identidade cultural.” WOLTON, Dominique apud CLEMENTE, Isabel e TRAUMANN, Thomas. A diversidade no mundo globalizado. Revista Época. Edição 426. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG74786-6014,00-A+DIVERSIDADE+NO+MUNDO+GLOBALIZADO.html>. Último acesso em agosto de 2013.

(21)

fazem a previsão do tempo pelas vísceras do porco. As diferenças sem dúvida continuarão a existir - os franceses jamais comerão manteiga com sal. Mas os bons e velhos tempos de lançar viúvas na fogueira e do canibalismo não voltam mais. Em si mesmo, como questão profissional, esse processo de suavização do contraste cultural talvez não seja tão perturbador. Os antropólogos simplesmente terão que aprender a compreender diferenças mais sutis, e seus textos talvez se tornem mais sagazes, ainda que menos espetaculares. Mas ele levanta uma questão mais ampla, ao mesmo tempo de ordem moral, estética e cognitiva, que é muito mais perturbadora e que está no centro de várias discussões sobre como justificar os valores: o que chamarei apenas para ter um nome que fique gravado na mente, de o Futuro

do Etnocentrismo.19

Continuando a linha de raciocínio sobre a contradição globalizante, não se pode esquecer que de outro lado passou a ser possível enxergar, a partir da suavização da rigidez fronteiriça de outrora, o alargamento da possibilidade de um diálogo entre as distintas culturas.

Dialeticamente existe um movimento no sentido de estabelecer um mundo permeado por direitos globais, mas, por outro lado, uma força contrária também faz com que se emerja com mais força as particularidades culturais que acabam por refletir no campo dos direitos. Levi-Strauss, muito mais qualificadamente, assinala: “Operam simultaneamente, nas

sociedades humanas, forças que atuam em direções opostas, umas tendendo para a manutenção e mesmo para a acentuação dos particularismos, outras agindo no sentido da

convergência e da afinidade.”20

Mas seria essa coexistência realmente possível?21 Ou outro rumo deve ser buscado?22 Embora ainda não se tenha debatido o suficiente para responder de pronto essas afirmações, o que de antemão pode ser evocado é que não seria exagero dizer que hoje os discursos sobre os direitos humanos e fundamentais estão em toda parte23 - o que significa

19 GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 68. 20LEVI-STRAUSS, Claude. Raça e história. 1952. p. 1.

21 FACHIN, Melina Girardi. Verso e anverso dos fundamentos contemporâneos dos Direitos Humanos e dos Direitos Fundamentais: da localidade do nós à universalidade do outro. Dissertação apresentada ao Programa de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo: PUC-SP, 2008. p. 3.

22Não sabemos para onde estamos indo. Só sabemos que a história nos trouxe até este ponto (...). Contudo,

uma coisa é clara. Se a humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. E o preço do fracasso, ou seja, a alternativa para uma mudança da sociedade, é a escuridão.” In: HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 562.

23 Uma palavra fetiche! O desafio dos direitos humanos na contemporaneidade consiste em entender a sua estrutura

(22)

assumir que estão sendo manejados por muitas outras áreas do conhecimento além do Direito e, inclusive, pelo mundo não acadêmico para se referir a um sem número de situações e grupos - como exemplos podemos citar, sem quaisquer pretensões de exaustividade, os movimentos das mulheres, GLBTS, dos negros, dos quilombolas, dos encarcerados e, claro, dos povos indígenas, grupo de interesse desse trabalho.

Apesar da vulgarização e inflação, ou até mesmo por conta delas, ainda é muito difícil encontrar um caminho sobre o que exatamente pretende designar o termo. O fato é que não são objetos, portanto palpáveis, senão uma abstração; não são direitos de bandido; não são direitos que dificultam o trabalho da polícia; e também não são direitos que se destinam a arrebatar uma parcela da soberania dos Estados24. Assim, com esses exemplos, claro está que, sem a devida verticalização no assunto, é mais fácil elencar o que não são os direitos humanos do que o que efetivamente sejam.

Além disso, já se tornou praxe perceber o tema somente a partir das violações que sobre ele recaem, isto é, fala-se muito mais dos direitos humanos quando eles não estão sendo cumpridos - por conta disso tem-se, justamente, que um dos grandes desafios contemporâneos, nessa seara de estudos, é minimizar o abismo existente entre seus enunciados teóricos (os quais exalam uma sensação de dever cumprido) e sua prática (nesse caso mais atrelada à ideia de que ainda há muito por se construir).

Não obstante o conceito majoritariamente em vigor hoje ainda seja o universalista, que apregoa que os direitos humanos são aqueles que qualquer indivíduo tem pelo simples fato de ser uma pessoa, isto é, derivam, com o perdão da redundância, naturalmente da natureza humana inerente a todos nós25, o presente trabalho pretende fixar como parâmetro norteador para a construção dessa dissertação um conceito de direitos humanos que seja encontram aprisionados.” In: BARETTO, Vicente de Paulo. O fetiche dos direitos humanos e outros temas. Rio de Janeiro, 2010. p. 8.

24VIEIRA, Oscar Vilhena. Três teses equivocadas sobre os direitos humanos. In: CONSÓRCIO UNIVERSITÁRIO PELOS DIREITOS HUMANOS. Manual de mídia e direitos humanos. p. 75-81. Nesse mesmo sentido apontam os resultados de uma pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo que demonstra que do total de entrevistados em onze diferentes capitais brasileiras

um percentual próximo entende que a expressão “direitos humanos” representa ou não “direitos que impedem ou prejudicam o trabalho da polícia” (37,7% e 48,4%, respectivamente) ou “direitos de bandidos” (39,5% e 46,3%,

respectivamente). In: CARDIA, Nancy. Direitos humanos segundo a pesquisa “Atitudes, normas culturais e valores em relação à violação de direitos humanos e violência”. 5º Relatório Nacional Sobre os Direitos Humanos no Brasil. 1ª ed. São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência da USP, 2012. Disponível em: <www.nevusp.org/downloads/down265.pdf>. Último acesso em agosto de 2013.

(23)

“capaz de compreendê-los em sua dinâmica, em sua complexidade, em sua natureza híbrida

e impura, mediante uma teoria realista e crítica.”26 Uma definição que rompa com

superficialidades meramente conceituais e que se importe faticamente com o respeito e o reconhecimento à pluralidade, diversidade e heterogeneidade para a construção concreta da dignidade de todos - nesse caso em especial dos povos indígenas.

A construção conceitual que mais se adequa a esses objetivos, segundo o entendimento da autora, é a de um dos pensadores da chamada Teoria Crítica do Direito27, a saber, Joaquín Herrera Flores, jurista espanhol que será o marco teórico de destaque da primeira parte desta pesquisa.

Flores, didaticamente, introduz o debate sobre seu pensamento trazendo a tríade necessária para uma explicação que se pretenda de ruptura, isto é, enfrentando o quê pensa sobre direitos humanos, além do porquê julga que eles devam existir e, finalmente, o para quê

eles destinam-se. Para ele:

Quando falamos de direitos humanos, falamos de dinâmicas sociais que tendem a construir condições materiais e imateriais necessárias para conseguir determinados objetivos genéricos que estão fora do direito (os quais, se temos a suficiente correlação de forças parlamentares, veremos garantidos em normas jurídicas). Quer dizer, ao lutar por ter acesso aos bens, os atores e atrizes sociais que se comprometem com os direitos humanos colocam em funcionamento práticas sociais dirigidas a nos dotar, todas e todos, de meios e instrumentos - políticos, sociais, econômicos, culturais ou jurídicos - que nos possibilitem construir as condições materiais e imateriais para poder viver.28 (grifos da autora)

E complementa dizendo relativamente ao “porque” e ao “para quê”, respectivamente:

26 PIOVESAN, Flávia. Prefácio. In: FLORES, Joaquín Herrera. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. p. 19.

27 As particularidades dessa escola de pensamento serão abordadas mais adiante. Basicamente, deve se ter em mente que um ponto importante na luta e concretização dos direitos humanos e fundamentais é a intenção da teoria que está por trás deles, que pode tanto ser emancipadora, quanto contribuir para a perpetuação do status quo. Por ora: “O direito, visto a partir dos pressupostos da “Teoria Crítica” deve constituir-se na afirmação da luta do ser humano por ver cumpridos seus desejos e necessidades nos contextos vitais em que está situado.”

FLORES, Joaquín Herrera. 16 premisas de uma Teoría Crítica del Derecho. In: PRONER, Carol. CORREAS, Oscar. (Orgs.). Teoria Crítica dos Direitos Humanos: in memorian Joaquín Herrera Flores. Belo Horizonte: Fórum, 2001. p. 13.

(24)

Começamos a lutar pelos direitos porque consideramos injustos e desiguais os processos de divisão do fazer humano. Para tanto, todas e todos precisamos dispor de condições materiais - e imateriais - concretas que

permitam o acesso aos bens necessários para a existência.29 (grifos da autora)

(...) os direitos humanos seriam os resultados sempre provisórios das lutas sociais pela dignidade. Entenda-se por dignidade não o simples acesso aos

bens, mas que tal acesso seja igualitário e não esteja hierarquizado “a priori”

por processos de divisão do fazer que coloquem alguns, na hora de ter acesso aos bens, em posições privilegiadas, e outros em situação de opressão e subordinação. Mas, cuidado! Falar de dignidade humana não significa fazê-lo a partir de um conceito ideal ou abstrato. A dignidade é um fim material. Trata-se de um objetivo que se concretiza no acesso igualitário e

generalizado aos bens que fazem com que a vida seja “digna” de ser vivida.30 (grifos da autora)

Mas para saber a razão deste ser o conceito adotado e quais são os outros refutados e, mais do que isso, entender como surgiram (ou foram inventados) os direitos humanos e como ocorreu seu fixar até a ligação destes com a ideia da dignidade - “dueto” praticamente unívoco no mundo ocidental hodiernamente - é necessário voltar-se ao estudo do fundamento31 dos direitos humanos e dos direitos fundamentais32.

Uma ressalva deve ser (re)feita: somente debater sobre quais são os fundamentos dos direitos humanos e dos direitos fundamentais não é o principal objetivo dessa dissertação, senão um de seus capítulos alicerçantes. Certamente esse tema, bastante apaixonante, é capaz de render, por si só, uma dissertação de mestrado inteira. Mas, no caso deste estudo, essa primeira parte destina-se principalmente a situar o debate33 sobre o fundamento dos direitos humanos e fundamentais, trazendo seus elementos essenciais para posteriormente fazer uma análise comparativa da jurisprudência do STF e da CIDH de forma a compreender o viés interpretativo que essas jurisdições vêm aplicando em suas decisões no que concerne aos direitos diferenciados das populações ameríndias.

29 Ibid, p. 36. 30 Ibid, p. 37.

31 ASIS ROIG apud GUTIERRÉZ. Universalid de los derechos humanos: uma revisión a sus críticas. Madrid: Instituto de Derechos Humanos “Bartolomé de las casas” - Universidad Carlos III de Madrid, 2011. p. 35. “Todo conceito de direitos humanos pressupõe uma tomada de postura sobre sua justificação e toda justificação parte de um conceito prévio de direitos humanos.” Tradução da autora.

32 Nesse diapasão, por exemplo, STOLZ, Sheila. Ponderações sobre o caráter universal dos direitos humanos. São Paulo: Anais do Conpedi, 2009. p. 8835. A autora diz que: “Precisamente agora que a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) completou sessenta anos de sua adoção (10/12/1948), muito se fala sobre os Direitos fundamentais da pessoa humana. Porém, tal expressão, exige que se explique em que consistem os Direitos Humanos, por que são essenciais e qual o seu conteúdo, validez e vigência.”

(25)

Discussões prévias pontuadas é possível partir à análise das concepções propriamente ditas.

1.1. A concepção universalista

Para começar, julga-se importante esclarecer a confusão que comumente é feita entre os termos “universalismo” e “universalidade”34:

Nesse sentido:

Usualmente o termo "universalidade" se refere, em se tratando de Direitos Humanos, a pelo menos três diferentes dimensões, ainda que vinculadas entre si. Desde o plano lógico, a universalidade se refere à titularidade dos direitos; titularidade esta que é atribuída a todo e qualquer ser humano pelo simples fato de sê-lo. Com base neste ponto de vista, a universalidade apresenta como principais características a racionalidade e a abstração, características que são congruentes com esta titularidade plena e extensiva a todos os seres humanos. Desde o âmbito temporal, a universalidade dos Direitos Humanos pressupõe que ditos direitos são válidos independentemente de questões históricas. Desde o plano espacial, por universalidade se entende que a cultura dos Direitos Humanos deve ultrapassar as fronteiras geopolíticas estatais incluindo, conseqüentemente, todos os indivíduos e todas as sociedades políticas sem exceção. Com base nestas primeiras definições, também penso que é necessário chamar a atenção para o uso indiscriminado dos termos "universalismo" e "universalidade" dos Direitos Humanos. Penso que deveríamos falar de universalismo em referencia a uma qualidade própria e exclusiva destes direitos. Nesse sentido, os Direitos Humanos exigem uma reflexão racional correspondente ao primeiro uso da palavra. O termo universalidade diz respeito ao uso da palavra de acordo com os contextos histórico e geográfico. Cabe ressaltar, no entanto, que é muito difícil pretender que os usos dos referidos termos sigam com exatidão as diferenciações aqui apontadas, exatamente porque ambos são empregados indiscriminadamente

como se fossem sinônimos.35

Feito isso, o segundo necessário passo é situar o interlocutor: se aqui a pergunta representativa dos fundamentos dos direitos humanos e fundamentais (Por que temos

34 Podemos falar ainda em universalização, que com o aglutinamento do sufixo “ação” indica justamente o processo de tornar universal. Essa diferenciação também está presente em BRITO, Laura Souza Lima E. Liberdade e direitos humanos: um estudo sobre a fundamentação jusfilosófica de sua universalidade. Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2010.

(26)

direitos?) fosse feita, certamente a resposta seria algo girando em torno de “porque somos

todos humanos e dotados de dignidade por esse ‘simples’ fato”. Ensina Flávia Piovesan:

Para os universalistas, os direitos humanos decorrem da dignidade humana, na qualidade de valor intrínseco à condição humana. Defende-se, nessa perspectiva, o mínimo ético irredutível - ainda que se possa discutir o

alcance desse “mínimo ético” - e dos direitos nele compreendidos.36

A extensão desse “mínimo ético” variará de acordo com a gradação de universalismo que cada adepto da teoria tenha. Sim, é possível falar em nuances dentro da mesma corrente, notadamente um universalismo radical37, um universalismo forte e um universalismo fraco38.

O universalismo radical, explica Daniela Ikawa desconsidera totalmente a cultura na natureza humana e pauta-se somente na razão moral individual. O homem, para essa teoria, está completamente solto de qualquer sociedade, totalmente independente e auto-suficiente.39

Sobre esse extremo da teoria universalista, importante advertir:

The dangers of the moral imperialism implied by radical universalism hardly need be emphasized. Radical universalism is subject to other moral objections as weel. Moral rules, including human rights, function within a moral community. Radical universalism requires a rigid hierarchical ordening of the multiple moral communities to which individuals and groups belong. In order to preserve complete universality for human rights, the radical universalist must give absolute priority to the demands of the

cosmopolitan moral community over all other (“lower”) moral

communities.40

Um bom exemplo de pensador universalista radical seria Locke, para quem o ser humano é auto-suficiente fora do meio social, isto é, é um ser atraído pelo prazer e afugentado

36 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 46. 37 DONELLY, Jack. Universal Human Rights in Theory and Practice. 1999. p. 109-114.

38 IKAWA, Daniela. Universalismo, relativismo e direitos humanos. In: RIBEIRO, Maria de Fátima. (Org.). MAZZUOLI, Valério de Oliveira. (Org.). Direito internacional dos direitos humanos: estudos em homenagem à Professora Flávia Piovesan. Curitiba: Juruá, 2004. p. 120.

39 Ibidem, p. 119.

(27)

pela dor, com uma razão tão somente instrumental e voltada para a satisfação de suas necessidades mais eminentes.41

Descendo um degrau, no universalismo forte, tem-se que:

O valor intrínseco do homem seria a principal fonte de validade da moral e o principal fundamento do direito, poderia, por sua vez, ser ilustrado pelo indivíduo kantiano. Esse indivíduo não é um ser essencialmente sensível, como o lockeano, mas um ser dual, formado parcialmente pelas paixões, parcialmente pela razão. Essa razão não é instrumental como em Locke, mas essencial ao homem kantiano, visto que seu uso dará ao ser humano a possibilidade de se tornar livre, de tomar decisões morais de caráter universal, isto é, decisões que levarão em consideração o outro. A razão kantiana é, contudo, assimilada individualmente e não pelo diálogo com outros homens. Há, por conseguinte, embora por motivos outros que os lockeanos, também em Kant uma forte tendência individualista a se privilegiar direitos civis e políticos sobre outros direitos. Em Kant, todavia, o caráter não instrumental da razão poderia mais facilmente do que a sensibilidade lockeana servir de base para a configuração de direitos sociais como direitos universais, na medida em que permitiria mais facilmente a inclusão do outro. Esse caráter da razão kantiana poderia, nesse sentido, afastar o indivíduo kantiano deum universalismo radical. O universalismo forte poderia, ainda, ser ilustrado pela teoria de direitos de Ronald Dworkin, uma vez que essa teoria, de base individualista, abre espaço para a inclusão

da ideia de background rights ou de background justification. Dworkin

combina a ideia de um direito à liberdade moral e política com uma fundamentação de pano de fundo de cunho utilitarista, que fornece à sua teoria de direitos uma consideração do conjunto, da sociedade como um todo. Dworkin parece seguir, ainda, uma linha similar à de Charles Taylr ao defender que obrigações sociais não nascem necessariamente de contratos,

mas de uma história compartilhada, que “atrai” obrigações, e de uma

interpretação crítica, no que toca à satisfação, por parte do grupo, de condições tangentes à reciprocidade, à pessoalidade e à consideração do outro. Novamente, a consideração do conjunto, do outro, permite mais facilmente do que em um universalismo radical individualista uma fundamentação mais ampla, apta a abarcar não apenas direitos civis e

políticos, mas também, em certo grau, direitos sociais.42

Finalmente, é possível falar em universalismo fraco, o qual comporta duas situações: i) a do reconhecimento tanto da dignidade (valor intrínseco) quanto da cultura (valor extrínseco) como fontes de validade da moral e fundamentos do direito; e ii) a adoção da cultura como o único elemento caracterizador do homem, do direito e da moral - mas não qualquer cultura, senão uma necessariamente aberta ao diálogo com outras culturas. Aqui se

(28)

enquadrariam as teorias de Boaventura de Souza Santos, Charles Taylor e Abdullah Ahmed Na-Na’-Im43.

Conforme já dito anteriormente, os direitos humanos e os direitos fundamentais são um padrão e uma noção teórica que ocupam espaço central em nossos tempos: um verdadeiro lugar comum na comunicação humana. Assim, é possível dizer que após mais de duzentos anos de sua existência e transcorridos quase sessenta e cinco anos da Declaração Universal de Direitos Humanos possuem indiscutível existência e vitalidade.44

Nas palavras de Gutierréz:

Avanços certos em matéria de reconhecimento formal e material dos direitos humanos, impulsionados pelo Direito Internacional e pelo Direito interno da quase totalidade dos Estados democráticos serviram de base para impulsionar a ideia de que estes são uma realidade no mundo todo, isto é,

gozam hodiernamente de uma espécie de onipresença.45

Douzinas, no mesmo sentido: “Os direitos humanos venceram as batalhas ideológicas da modernidade.”46

Então, possível fixar uma premissa: a concepção universal de direitos humanos e dos direitos fundamentais é a vigente hoje em dia, já que há um consenso internacional sobre ela47. Tal consenso foi firmado em 1948 e repetido na Convenção de Viena, de 1993. Isso não quer dizer que tal concepção esteja imune a críticas, apenas que é um fato dos nossos (e aqui impossível excluir-me) tempos.

Alguns textos sobre metodologia de pesquisa para o Direito ensinam que se deve atentar sempre para evitar incursões desnecessárias ao longo da história na tessitura dos trabalhos jurídicos. Isso porque os juristas nem sempre, pelo próprio tipo de formação acadêmica que receberam, são gabaritados para essas interfaces; e, ademais, na maior parte das vezes, essas remissões não se mostram tão indispensáveis para o entendimento dos debates propostos quanto supõem.48

43 Ibidem, p. 124.

44 SUARÉZ, Op. Cit (2011), p. 33. 45 Ibidem, p. 33.

46 DOUZINAS, Costa. O fim dos direitos humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2009. p. 2. 47 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 26.

(29)

Mesmo sabendo disso, nessa etapa do trabalho não será possível evitar por completo devotar alguma atenção a certos aspectos históricos. A regra terá que ser contrariada, mas com a devida parcimônia: pretende-se fazê-lo da maneira mais cirúrgica possível e fixando pontos principais de partida (Iluminismo) e de chegada (a proclamação da Declaração Universal de 1948).

Isso porque a história dos direitos humanos e dos direitos fundamentais é produto de um intrincado processo histórico-semântico, no decorrer do qual as alterações sociais ensejaram que fossem encontradas novas maneiras de descrever a sociedade. Isso faz com que se possa afirmar que: “a fórmula dos direitos humanos recolhe o plexo de transformações

ocorridas na Modernidade”.49

Assim, falar de direitos humanos e de direitos fundamentais é falar da própria história ocidental50. É, vivendo na contemporaneidade, colocar-se justamente diante da

concepção contemporânea de direitos humanos51.

É tão central esse tema que se pode dizer que, num jogo lúdico de palavras, o Direito se fundamenta nos fundamentos dos direitos:

Especificamente, o direito e a política modernos encontram nos direitos a representação de sua fundação ou, ainda, os pressupostos de sua fundação, uma espécie de fundamento dos fundamentos. Assim, até que se chegasse ao momento em que os direitos humanos fossem direitos declarados e, portanto, reconhecidos como tais de forma positivada, séculos de experiência histórica e semântica foram condensados na forma de novas teorias, cuja complexidade cuidava de ocultar, na novidade dos direitos, o velho paradoxo

das fundações que não conhecem fundação.52

Deverá servir de norteador para as páginas que se seguem, dentre tantos possíveis recortes53 para falar desse caminho percorrido pelos direitos humanos e fundamentais até que trabalhos que tenho examinado não dispensa uma incursão desse tipo, muitas vezes apresentada sob a fórmula “Evolução História do(a)...”, seguindo-se a menção ao objeto que está sendo examinado. É com frequência que, nesse momento, surge a referência a uma antiga e, literalmente falando, mitológica legislação: o famoso Código de Hamurabi! - daí o título deste trabalho.” Último acesso em agosto de 2013.

49 MAGALHÃES, Juliana Neuenschwander. O paradoxo dos direitos humanos. Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n. 47, p.29-64, 2008. p. 32.

50 FACHIN, Op. Cit., p. 10.

51 Termo utilizado por Flávia Piovesan. 52 MAGALHÃES, Op. Cit.

(30)

fossem positivados em Declarações e Constituições, tal como hoje é corriqueiro, principalmente o marco teórico da obra “A invenção dos direitos humanos”, de Lynn Hunt. A autora estabelece três etapas primordiais para o advento desses direitos: a Declaração da Independência dos Estados Unidos, em 1776; a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da França, em 1789; e a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, em 1948.

Antes de iniciar o percurso, importante fixar algumas advertências sobre o próprio narrar histórico, já que estamos partindo do pressuposto de que os direitos humanos foram construídos historicamente (pelo menos entre os séculos XVIII e XX). Deverão estar sempre em mente durante a leitura das próximas páginas dois alertas, a saber: a de que não se pretende deixar entender, aqui, que a humanidade está necessariamente seguindo uma estrada ascendente, isto é, falar de história e do passar dos tempos não é necessariamente falar de progresso; e a de que nem tudo na história é movimento e evolução.54

Ao final desse capítulo, espera-se ter algumas ideias que, mesmo que em um primeiro momento possam parecer desconexas, forneçam aos que entre elas realizar um diálogo, uma visão do que é essa concepção e que, ao mesmo tempo, frise-se, fuja dos excessivos regressos históricos ou da maneira eminentemente descritiva com que tradicionalmente o tema vem sendo tratado.

1.1.1 Algumas influências até 1776

Não se ignora que já existissem manifestações sobre direitos em tempos anteriores ao século XVIII. Mais do que isso, até se comunga que essas concepções foram importantes para o amoldamento da posterior. O sentido do corte de tratar mais detidamente dos eventos históricos significativos para a construção da concepção universal a partir da Revolução Americana é intensificar os esforços no estudo da fase, digamos, mais “borbulhante” e decisiva dessa visão de mundo.

Mas isso não significa negar, por exemplo: que durante o período axial se enunciaram grandes princípios e diretrizes até hoje bastante influentes55; que o surgimento da

54 VILLEY, Michel. O direito e os direitos humanos. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.

55“O século VIII a.C é apontado como o início do período axial, não só porque é o século de Homero, mas

(31)

escrita56 teve uma parcela de importância no processo de afirmação histórica da pessoa humana e de seus direitos humanos e fundamentais57; que é possível falar de concepções adjacentes aos direitos humanos e fundamentais no período medieval; e, principalmente que o jusnaturalismo, notadamente em sua fase teológica58, ou, em outras palavras, os ensinamentos sobre a pessoa advindos do cristianismo foi um ponto considerado por muitos como o primeiro inspirador de uma formação ética basilar aos direitos que estão sendo aqui tratados59. Significa somente que elas serão apenas pinceladas e que não significarão o centro de nosso debate.

Iniciando essas pinceladas, sobre a existência de direito na Antiguidade e no período Medieval, por exemplo, temos que:

No mundo antigo e medieval podem ser encontradas importantes aportes à formação de uma consciência em torno da dignidade humana, mesmo sem que sejam propriamente direitos humanos, mas atributos que foram somando-se até que se chegasse a consolidação propriamente dita da noção moderna que hoje compartidos. Então, antes do trânsito da modernidade

de liberdade e razão, não obstante as múltiplas diferenças de sexo, raça, religião ou costumes sociais. Lançavam-se, assim, os fundamentos intelectuais para a compreensão da pessoa humana e para a afirmação de direitos universais, porque a ela inerentes”. In: COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 21-23.

56“Foi nas civilizações gregas, em especial na cidade-estado de Atenas, que a organização social assentou-se

no império da lei escrita (nomos êngraphon). Ao lado das leis escritas - que tinham como baldrama a condição subjetiva havia outra categoria de normas não escritas - nomos ágraphon - que tinham como alicerce a compreensão divina.” FACHIN, Op. Cit., p. 17.

57 Ibidem, p. 24.

58 O jusnaturalismo passou por outras duas fases, uma anterior (cosmológica, em que o Direito Natural era explicado como derivado da natureza das coisas) e outra posterior (antropológica, em que os frutos do Direito Natural derivavam da razão do homem). Algumas conceituações importantes: i) Direito natural significa “a idéia abstrata do Direito, o ordenamento ideal, correspondente a uma justiça superior e anterior – trata-se de um sistema de leis que independe do direito positivo, ou seja, independe das variações do ordenamento da vida social que se original no Estado” ii) “O jusnaturalismo é uma corrente jusfilosófica que crê na existência de um conjunto de valores éticos universais inerentes ao homem, decorrendo, destarte, da própria natureza humana sendo superior bem como anterior ao direito positivo, o que se contrapõe aos ideais do juspositivismo”. In: CICCO FILHO, José Alceu. Colaboração do jusnaturalismo para o surgimento do fenômeno da codificação

e dos direitos universais. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_75/artigos/Alceu_rev75.htm>. Último acesso em agosto de 2013.

59 “Na tradição bíblica, Deus é o modelo de pessoa para todos os homens. Sem dúvida, o cristianismo,

(32)

existia a ideia de dignidade humana, mas sua realização não se concebia

através do conceito de direitos humanos e fundamentais.60

Voltando o olhar para aclarar compreensões presentes, tem-se que as principais características desse período, compreendido entre a Idade Antiga e a Moderna e também conhecido como “A Idade das Trevas”, eram a sociedade estratificada (dividida entre servos e nobres), a ordem econômica pautada no feudalismo e a Igreja ocupando o ápice de seu poder sobre os homens, interferindo fortemente em todas as relações humanas, nas expressões artísticas, etc.

Foi nesse contexto que surgiu pela primeira vez, então, o emprego do termo dignidade: “Foi no medievo, por meio do pensamento de São Tomás de Aquino, que o gérmen

da ideia de dignidade da pessoa humana abrolhou.”61

Aquino pode ser considerado um visionário por suas palavras. Mas a Igreja não estava preparada para abrir os olhos muito além de seu clericalismo dominante e atentar para suas percepções. Enquanto isso, e principalmente após o episódio devastador da Peste Negra, os homens daqueles tempos, assolados por fome, miséria e por redescobertas recentes (como por exemplo a em relação à Arte Clássica), passaram a demandar por novas respostas que não só as vindas de Deus. Uma outra fase, muito mais centrada no individualismo começou a eclodir.62

É por isso que se pode dizer que nos séculos XVI e XVII foi reconfigurada a teoria dos direitos naturais, sobre a qual “influiu o racionalismo humanista de H. Grocio, dando

com ele um impulso à evolução dos direitos naturais, sobretudo à sua laicização ou

dessacralização conforme se fazia relativa a necessidade de Deus nos assuntos humanos.”63

Muitos séculos de história em pouquíssimas palavras e eis que se está diante da Modernidade. Com ela, o Estado, a burguesia, o desbravar de terras, o Renascimento, as atitudes introdutórias do capitalismo, as Reformas Protestantes e também a “invenção dos direitos humanos”.

E sobre ela Villey diz:

60 GUTIÉRREZ (2011), Op. Cit., p. 90. Tradução da autora. 61 FACHIN, Op. Cit., p. 22.

62 VILLEY, Op. Cit., p 121.

(33)

Ora, essa ontologia nova, essa radical transformação das relações entre palavras e coisas, pela qual Guilherme de Ockham inaugura a via moderna - não pude abster-me de mencioná-la, tão rica ela é de consequência. Inagura-se a era em que, largando-Inagura-se a obInagura-servação realista da natureza, o pensamento se instala no idealismo. (...) A jurídica moderna empreenderá extrair o direito

não da natureza das cidades, mas da “natureza do homem”.64

1.1.2 1776 e 1798: a “invenção” dos direitos humanos

Escolheu-se essa autora para tratar do tema devido à sua abordagem bastante peculiar, o que se julga não ser inapropriado para uma dissertação de mestrado, justamente por ser este um espaço de, também, experimentar e trazer o inusitado em contraponto às fórmulas certas, mas também muitas vezes repetidas, dos trabalhos acadêmicos. Em outras palavras: é verdade que nesse subcapítulo sobre a concepção universal dos direitos humanos a autora deste trabalho permitiu-se um recorte “aventureiro”.

Um pouco sobre a obra em si: escrita pela professora de História Moderna da Europa na Universidade da Califórnia (EUA), a “Invenção dos Direitos Humanos” fala de como os direitos humanos tornaram-se verdades autoevidentes por meio da análise de três documentos que foram responsáveis por quebrar o paradigma jusnaturalista até então em curso e fazer desabrochar o paradigma positivista - conforme já dito, a Declaração de Independência, de 1776, a Declaração de Direitos dos Homens e do Cidadãos, de 1798 e a Declaração Universal de Direitos da ONU de 1948.

Mas certamente o que tem de mais singelo e inovador na obra é que ela não traça apenas um inventário destas declarações ou uma descrição minuciosa das instituições e eventos históricos da época; em distinto enfrentamento, analisa as manifestações mais prosaicas daquele contexto (com foco para a literatura lida naquele momento), isto é, o que se passava pelas mentes humanas do período de forma a demonstrar como essa mudança de pensamento sobre o que se entendia pela pessoa e por seus direitos (até então muito atrelada a religião, como foi visto anteriormente) em curso durante a Modernidade foi essencial para a reformulação do conceito de indivíduo e, consequentemente, para a ascensão dos direitos humanos.

Obviamente que essa sua abordagem, voltada a essas “pequenas coisas” do dia-a-dia, não exclui ou nega outras que se concentram nos fatos históricos, econômicos e sociais do

(34)

período. Apenas é diferente e tem sua razão de ser, pois, na concepção de Hunt, compactuada por este trabalho, não basta saber da razão para determinar como aconteceram os direitos humanos, mas também das emoções.65

Para defender a tese de que a característica natural dos direitos ganhou uma expressão política direta (e pode-se dizer positiva) pela primeira vez na Declaração de Independência Americana de 1776 e depois na Declaração dos Direitos do Homem e dos Cidadãos de 1798 diz:

Embora se referisse aos “antigos direitos e liberdades” estabelecidos pela lei

inglesa e derivados da história inglesa, a Bill of Rights inglesa de 169866 não declarava a igualdade, a universalidade ou o caráter natural dos direitos. Em

contraste, a Declaração de Independência insistia que “todos os homens são criados iguais” e que todos possuem “direitos inalienáveis”. Da mesma

forma, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão proclamava que

os “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”. Não os homens franceses, não os homens brancos, não os católicos, mas “os homens”, o que tanto naquela época como agora não significa apenas

machos, mas pessoas, isto é, membros da raça humana. Em outras palavras, em algum momento entre 1689 e 1776 direitos que tinham sido considerados muito frequentemente como sendo de determinado povo - os inglês nascidos livres, por exemplo - foram transformados em direitos humanos, direitos

naturais universais, o que os franceses chamavam les droits de l’homme, ou

“os direitos do homem”.67

Segundo Hunt, a primeira vez que o termo “direitos do homem” conseguiu fazer-se circular na França foi por conta da obra “O contrato social” de Jean Jacques Russeau, datada de 1762.68 Antes, Voltaire já havia falado em “direito natural” no seu “Tratado sobre a Tolerância”, mas o termo não havia, nesta ocasião, feito muito sucesso.

65 HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. (Versão para e-book).

66 Além da Bill of Rights, outras cartas anteriores foram a Petition of Rights de 1628 e o Habeas Corpus Act, de

1679. Mas elas não eram consideradas “cartas de liberdade”, tinham apego feudal e verticalizava seu conteúdo entre vassalos e suseranos - não se tratava, então, de direitos humanos, mas de direito estamental. Nesse sentido HERKENHOFF, João Batista. Curso de direitos humanos. vol. 1. São Paulo: Acadêmica, 1994. p. 56.

67 Ibidem, p. 5.

68 A autora explica que “Durante o século XVIII, em inglês e em francês, os termos “direitos humanos”,

Imagem

Tabela 1 -  Casos gerados pelo termo de busca “indígena” na  jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos
Tabela 3 - Sujeitos ativos perante a Comissão Interamericana de  Direitos Humanos nos casos envolvendo povos indígenas
Tabela 4 - Sujeitos passivos perante a Comissão  Interamericana de Direitos Humanos nos casos
Tabela 6 - Principais temas presentes nas sentenças da Corte  Interamericana de Direitos Humanos
+6

Referências

Documentos relacionados

Figura 93 – Variação do perfil da intensidade de amônia formada durante a introdução de H2 na mistura gasosa, obtida na configuração de superfície para diferentes materiais

Região Posterior: Aumento da atividade mais do lado direito o que pode justificar queixa de dor na região das costas. Antes

Para que este sistema passe de um aglomerado de módulos controladores à apenas uma tecnologia existente, principalmente na percepção das pessoas que integram cada

A magnitude do Reservatório, seu sistema de dependência entre reservatórios, a quantidade de municípios e da população direta e indiretamente influenciada, a

Faculdade de Economia da UFBA.. O trabalho identifica as estratégias adotadas pelo governo, através do PRODETUR, na tentativa de promover o desenvolvimento integrado

Observamos que a redução da expressão das proteínas não afetou a invasão do parasita no tempo de 2 horas, mas que a baixa expressão da proteína WASP se mostrou capaz de permitir

(...) logo depois ainda na graduação, entrei no clube, trabalhávamos com este caráter interdisciplinar, foi aí que eu coloquei em prática o que muito ouvia em sala (Rita - EV). Esse

Entrelaçado a isso, poderia contribuir a sugestão de preparação de atividades para alunos dos CLLE de nível 1, no lugar de ser aluna na turma deles (relato de 7 de março);