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CAPÍTULO 2: O OLHAR DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS SOBRE OS POVOS INDÍGENAS

2.2 Marco positivo internacional

Este tópico destina-se a, antes de apresentar a jurisprudência da CIDH, pontuar quais são os principais documentos jurídicos especificamente voltados aos povos indígenas que existem no âmbito internacional e regional de proteção aos direitos humanos. Notar que serão excluídos da análise os documentos que não tenham sido pensados prioritariamente para esses grupos, mas que certamente também podem ser utilizados para proteger os povos indígenas, quais sejam, A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1945), a Convenção sobre eliminação de todas as formas de discriminação racial (1965), o Pacto internacional sobre direitos civis e políticos (1966), a Convenção sobre eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (1979), a Convenção sobre a tortura (1984), a Convenção internacional sobre os direitos da criança (1989), a Declaração Americana dos direitos e deveres do homem (1948), a Convenção Americana sobre direitos humanos (1969), a Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura (1985), o Protocolo de San Salvador sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1988) e a Convenção de Belém do Pará para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher (1994).

Essa discussão normativa está aqui alocada para demonstrar que os juízes da CIDH podem tomar essas legislações por base para a fundamentação dos seus julgados186 -

185 Relatório de denúncia: povos indígenas do Nordeste impactados com a transposição do Rio São

Francisco. Disponível em: <http://www.cimi.org.br/pub/publicacoes/1241549933_relatapoinmetransp.pdf>.

Último acesso em agosto de 2013.

186 Uma ressalva: nada será dito sobre a Convenção Interamericana de Direitos Humanos já que esta não trata de

direitos especificamente dos povos indígenas e que seu emprego como principal instrumento balizador das decisões da CIDH é bastante óbvio.

obviamente é possível que interpretem ainda mais favoravelmente do que está previsto nos textos, já que os enunciados abaixo (e também os elencados acima) indicarão sempre o parâmetro protetivo mínimo a ser seguido.

Relevante pontuar, ainda, que no âmbito da OEA não há ainda qualquer tratado particularmente voltado aos povos indígenas - está em fase de discussão um documento desse tipo, temporariamente nomeado “Projeto da Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas” e atualmente em trâmite na Comissão de Assuntos Jurídicos e Políticos do Conselho Permanente da OEA. Para Clavero, a proposta de uma jurisdição internacional interamericana de promoção e defesa dos direitos dos povos indígenas seria bastante oportuna, mas deve vir acompanhada da revisão das jurisdições nacionais.187

2.2.1 Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos dos Povos Indígenas

Depois de 22 anos em curso, a ONU aprovou, em 13 de setembro de 2007, uma Declaração especificamente voltada à proteção dos povos indígenas. No preâmbulo do documento muitas são as justificativas para sua existência, com destaque para três delas:

Afirmando que os povos indígenas são iguais a todos os demais povos e reconhecendo, ao mesmo tempo, o direito de todos os povos a ser diferentes, a considerarem-se a si mesmos diferentes e a ser respeito dessa maneira; (...)

Afirmando ademais que todas as doutrinas, políticas e práticas baseadas na superioridade de determinados povos ou pessoas pessoas ou que a propugnam aduzindo razões de origem nacional ou diferenças raciais, religiosas, étnicas ou culturais são racistas, cientificamente falsas, juridicamente inválidas, moralmente condenáveis e socialmente injustas; (...)

Consciente da urgente necessidade de respeitar e promover os direitos intrínsecos aos povos indígenas que derivam de suas estruturas políticas, econômicas, sociais e de suas culturas, de suas tradições espirituais, de sua história e de sua concepção de vida, especialmente os direitos a suas terras, territórios e recursos.188

187 CLAVERO, Bartolomé. Los derechos de los pueblos indígenas. p. 8. Disponível em:

<http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/4/1841/23.pdf>. Último acesso em agosto de 2013.

188 Texto integral disponível em: SHIRAISHI NETO, Joaquim. (Org.). Direito dos povos e das comunidades

tradicionais no Brasil.: declarações, convenções internacionais e dispositivos jurídicos definidores de uma política nacional. Manaus: UEA, 2007. p. 211-230. Texto originalmente em espanhol. Tradução da autora.

Essa Declaração conta com 46 artigos e assegura aos povos indígenas, dentre outros direitos: o de desfrutar de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos na Carta das Nações Unidas, na Declaração Universal de Direitos Humanos e na normativa internacional de direitos humanos (artigo 1º); à livre determinação (artigo 3º); à autonomia e autogoverno (artigo 4º); à uma nacionalidade (artigo 6º); à vida, à integridade física e mental, à liberdade, à segurança pessoal e a viver em coletividade (artigo 7º); à pertencer a uma comunidade (artigo 9º) e a não serem retirados à força de suas terras e territórios (artigo 10º); à manutenção de suas práticas culturais, religiosas e demais crenças tradicionais (artigo 12º e 13º).

Interessante pontuar que muitos dos direitos assegurados entendem e legitimam o caráter comunal tão caro a essas populações. Dessa forma, é possível dizer que a intensidade e o alcance da proteção fixados por esta Declaração são bastante fortes, englobando até mesmo o dever dos Estados em agir positivamente na construção do respeito aos direitos indígenas.

Exatamente nesse sentido assinalam os advogados do Instituto Socioambiental Yamada e Mathias:

O texto, extremamente avançado, reflete o conjunto das reinvidicações atuais dos povos indígenas em todo o mundo acerca da melhoria de suas relações com os Estados nacionais e serve para estabelecer parâmetro mínimos para outros instrumentos internacionais e leis nacionais. O estudo pioneiro das Nações Unidas (ONU), realizado pelo Relator José Martínez Cobo no decorrer dos anos setenta e princípios dos anos oitenta, forneceu informações significativas sobre a situação dos povos indígenas no mundo e foi um chamado de atenção às Nações Unida para que atuassem decididamente em nome desses povos. Assim, foi criado em 1982 o Grupo de Trabalho da ONU sobre Populações Indígenas com a tarefa de desenvolver ações internacionais sobre os direitos indígenas. Um dos frutos das atividades do Grupo de Trabalho foi a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas.189

189 MATHIAS, Fernando. YAMADA, Erika. Declaração da ONU sobre direitos dos povos indígenas.

Dsiponível no site do Instituto Socioambiental.

<http://pib.socioambiental.org/pt/c/direitos/internacional/declaracao-da-onu-sobre-direitos-dos-povos-indigenas> Último acesso em agosto de 2013.

2.2.2 A Convenção 169 da OIT

Aprovada, até 2005, por 17 países (Argentina, Bolívia, Brasil (2002), Colômbia, Costa Rica, Dinamarca, República Dominicana, Equador, Fiji, Guatemala, Holanda, Honduras, México, Noruega, Paraguai, Peru e Venezuela)

Leciona Flávia Piovesan que “o ponto de partida da proteção internacional aos direitos dos povos indígenas é a Convenção 107 da OIT de 1957 concernente à proteção das populações indígenas e outras populações tribais e semitribais de países independentes, que teve por finalidade estabelecer padrões gerais internacionais para a proteção das populações indígenas.”190

A partir da década de 80 este documento passou a ser criticado por sua visão marcadamente integracionista, já que propugnava ideias como a assimilação forçada dos povos indígenas e a necessidade da integração progressiva destes à comunidade nacional, ambas bastante contrárias ao respeito à diversidade cultural. Sendo assim, deveria ser revisado e foi justamente esse o contexto que ensejou, principalmente por motivação das ONGs internacionais e pela insurgência de um novo entendimento do conceito de autodeterminação, o surgimento da Convenção 169 da OIT, em vigor desde 07 de junho de 1989 e responsável pela instauração de um novo paradigma no âmbito internacional de proteção dos direitos indígenas.191

Pode causar espanto que o principal instrumento192 (título conferido por sua amplitude e atualização) protetivo aos povos indígenas existente na atualidade seja assegurado pela Organização Internacional do Trabalho, mas é fato que desde 1919 a OIT vem devotando atenção aos direitos indígenas. O interesse dessa organização na causa deve-se à crescente marginalização e precarização da mão de obra indígena no mercado de trabalho, mais uma das consequências geradas pelo longo processo de exclusão e discriminação que vêm enfrentando desde os tempos mais remotos. Comumente desalojados de suas terras tradicionais e sem

190 PIOVESAN, Flávia. Direitos dos povos indígenas, políticas indigenistas e Constituição de 1988. Trabalho

apresentado na Conferência do Instituto Brasileiro de Direito e Cidadania (IBDC) realizado em 23 de maio de 2013 na cidade de São Paulo/SP. p. 1.

191 Ibidem, p. 2.

192 Convenção OIT sobre Povos Indígenas e Tribais em países independentes nº 169. Site do Instituto

Socioambiental.< http://pib.socioambiental.org/pt/c/direitos/internacional/convencao-oit-sobre-povos-indigenas- e-tribais-em-paises-independentes-n%20.-169>. Último acesso em agosto de 2013.

poderem sobreviver de acordo com seus modos ancestrais de organização social, os indígenas acabam sendo explorados em empregos sem quaisquer condições dignas de trabalho.193

Pode-se dizer que são quatro os eixos centrais da Declaração: i) a discussão acerca do reconhecimento dos povos indígenas; ii) a fixação dos indígenas como minoria étnica; iii) o estabelecimento do alcance da consulta e participação indígenas; iv) o direito à terra e aos territórios.194

Disso, depreende-se que a Convenção 169 da OIT estrutura-se baseada no binômio consulta-participação e, por isso, consagra, dentre outros, o direito à consulta prévia, à autogestão pelos próprios indígenas de seus territórios e recursos e, fixa ainda, entendimento paradigmático sobre o conceito de território, entendendo-o como a base indispensável para o desenvolvimento das estruturas social e cultural dessas populações, o que acaba por privilegiar o respeito à diversidade e identidade culturais dos povos indígenas.

É realmente bastante importante frisar que o direito à participação previsto pela Convenção faz emergir o protagonismo indígena, isto é, visa lhes dar voz e poder de opinar, de maneira tal que os povos indígenas não só recebam uma atuação positiva por parte do Estado, mas também possam ter poder na tomada de decisões que lhes afete e, assim, serem construtores de sua própria história.

2.2.3 Propostas latino-americanas

Importante pontuar a existência do processo de revitalização pelo qual vêm passando algumas constituições da América Latina com o intuito de construir uma abordagem que privilegie o protagonismo das minorias étnicas (principalmente dos povos indígenas devido à massiva presença destes no continente) em todos os setores da sociedade, inclusive na política.

Pautando-se principalmente na ideia de pluralismo jurídico - que conforme os ensinamentos de Wolkmer pode ser definido como a “multiplicidade de práticas existentes em um mesmo espaço sociopolítico, que interagem por conflitos ou consensos, que podem ser ou não oficiais e que não têm sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e

193 Ibidem, p. 3.

culturais”195 - alguns Estados, notadamente a Venezuela, o Equador, a Bolívia e o México

substituíram o fracassado (já que insuficiente para explicar as sociedades colonizadas) viés político-liberal de seus textos por outro que atenda às mudanças políticas e respeite os direitos relativos aos bens comunais dos povos indígenas e, dessa forma, atenda à ligação destes com a cultura e a natureza, alterando por completo a relação Estado-povos indígenas.196 Trata-se, em outras palavras, de buscar alternativas para a implementação de uma democracia participativa que englobe os povos indígenas197.

Aqui, em que pese o idêntico valor de todas essas experiências, algumas considerações serão feitas sobre as Constituições equatoriana e boliviana, ambas promulgadas no ano de 2008.

Na Bolívia, que conta com pelo menos 36 etnias indígenas diferentes, o que deu ensejo à elaboração do novo texto constitucional foi a chamada crise de correspondência entre as múltiplas matrizes culturais da população e a adoção de um modelo estatal único198.

No que tange ao texto propriamente dito, praticamente 20% dos artigos da Constituição Boliviana são devotados aos povos indígenas que possuem, dentre outros direitos, justiça própria equivalente à justiça institucionalizada, garantia de representação no Parlamento, autonomia eleitoral para cada uma das terras indígenas e reconhecimento dos direitos de família e propriedade ancestral.199

Já no Equador, a Constituição de 2008 focou em agregar para a arena política as culturas e comunidades historicamente excluídas e prever foros multiculturais de deliberação democrática. Além disso, dotada de uma visão biocêntrica, introduziu o conceito de “direitos

195 WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: nuevo marco emancipatório em América Latina. In:

VILLEGAS, Mauricio García. RODRIGUEZ, César. (Eds.). Derecho y sociedade en América Latina: um debate sobre los estudios jurídicos críticos. Bogotá, Colômbia: Editor César A. Rodriguez, 2003. p. 250. Tradução da autora. Para entender mais consultar WOLKMER, Antônio Carlos. Direitos humanos e filosofia jurídica na

América Latina. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

196 Id. Pluralismo crítico y nuevo constitucionalismo em América Latina. p. 12.

197 CORRAL C., Manuel Jesus del. Producción alternativa y democracia em America Latina. In: FLORES,

Joaquín Herrera. (Dir.). Revista Travésias: política, cultura y sociedade en iberoamerica. Ano I, número I, julho-dezembro de 1996.

198 AFONSO, Henrique Weil. MAGALHÃES, José Luiz Quadros. O Estado plurinacional da Bolívia e do

Equador: matrizes para uma releitura do direito internacional moderno. Anuario Mexicano de Derecho

Internacional. Vol. XII, 2012. Pp. 455-473. p. 466.

da natureza ao celebrar em seu preâmbulo que “a natureza, a Pacha Mama, de que somos parte e que é vital para nossa existência”.200