• Nenhum resultado encontrado

2.1 As pesquisas sobre o ensino: breve contextualização

2.1.1 Os conhecimentos de base para o ensino

2.1.1.1 O conhecimento pedagógico do conteúdo

Shulman (2005a) afirma que o conhecimento pedagógico do conteúdo (CPC) vai além do conhecimento da matéria propriamente dita, pois engloba o conhecimento da matéria para ensiná-la (SHULMAN, 2005a, p. 212, grifos do autor). Dentro dessa categoria, o autor inclui:

[...] as formas mais úteis de expor as ideias, as melhores analogias, descrições, exemplos, explicações e demonstrações, ou seja, as formas de apresentar e expor uma matéria para que os outros compreendam. Como não existem formas únicas de expor que sejam melhores, o professor deve administrar uma verdadeiro arsenal de formas alternativas, algumas embasadas em pesquisas e outras na experiência prática (SHULMAN 2005a, p. 212, tradução nossa.)44

O CPC inclui também a compreensão daquilo que facilita ou dificulta a aprendizagem dos alunos de diferentes idades e contextos de ensino e é o tipo de conhecimento que fornece ao professor as estratégias para ensinar um conteúdo específico, as formas de organizá-lo para que os alunos compreendam. É o conhecimento que, articulado com o conhecimento do conteúdo a ensinar, confere ao professor a capacidade de transformar seu conhecimento da matéria em formas que sejam didaticamente adequadas para ensinar, atendendo a diversidade de habilidades e conhecimentos prévios dos alunos. Pode-se dizer então que o CPC compreende as formas de apresentar a matéria para torná-la compreensível para os alunos. De acordo com os estudos de Shulman (2005b), a docência se inicia no momento do planejamento do ensino, quando o professor reflete sobre como organizar um

44

[...] las formas más útiles de exponer las ideas, las mejores analogías, descripciones, ejemplos, explicaciones e demonstraciones; en breve, las formas de presentar y exponer un tema para que otros lo entiendan. Como no existen formas únicas de exponer que sean mejores, el profesor debe manejar un verdadero arsenal de formas alternativas, algunas de ellas basadas en la investigación y otras en la experiencia práctica.

conhecimento para que ele seja compreendido pelo aluno. Esse caminho entre a compreensão do professor e a compreensão do aluno pressupõe uma conexão entre o conhecimento do conteúdo as formas de ensiná-lo, ou seja, um conhecimento pedagógico que possibilite a transformação do conhecimento do conteúdo, viabilizando processos de instrução e avaliação dos alunos em um contexto específico. Essa transformação acontece quando o professor reflete e interpreta criticamente as informações de natureza disciplinar, pedagógica e do contexto de ensino. A esse processo o autor denominou modelo de raciocínio e ação pedagógica. De acordo com Shulman (2005b), esse modelo retrata uma série de acontecimentos que ocorrem na prática pedagógica com o objetivo de possibilitar ao professor a construção de conhecimentos a serem mobilizados durante o processo de ensinar. Tal modelo supõe a existência de um ciclo que se compõe de seis processos: compreensão, transformação, instrução, avaliação, reflexão e nova compreensão. O ponto de partida e de chegada é a compreensão. Tais processos são comentados a seguir:

1. Compreensão: para o autor, “ensinar é em primeiro lugar compreender45” (p.19). É necessário que o professor compreenda o que vai ensinar, buscando diferentes maneiras de fazê-lo, relacionando o conteúdo com outros dentro da mesma área e também com outras áreas de conhecimento. Esse é o aspecto que distingue o professor de outros profissionais que não exercem a docência e é de fundamental importância para distinguir o conhecimento base para o ensino. Outro elemento importante é a compreensão dos objetivos, não só da disciplina em si, mas também dos objetivos amplos da atividade educativa.

2. Transformação: as ideias compreendidas devem ser transformadas para serem ensinadas. Para planejar o ato de ensinar, é necessário percorrer um caminho a ser feito desde a compreensão da matéria pelo professor até a sua compreensão pelos alunos, de modo que para serem transformadas, as ideias devem ser combinadas e organizadas em subprocessos de: (a) preparação dos materiais a serem utilizados; (b) representação das ideias em formas de analogias, metáforas, exemplos, etc.; (c) seleção de métodos didáticos entre uma série de métodos e modelos de ensino; (d) adaptação dessas representações às características dos alunos em geral e dos alunos aos quais se vai ensinar; (e) adequação das adaptações às características específicas dos alunos. Para Shulman (2005b):

Estas formas de transformação, esses aspectos do processo mediante os quais passamos da compreensão pessoal para a preparação para que outros compreendam, constituem a essência da prática do pensamento pedagógico, do ensino como raciocínio, e do planejamento - explicita ou implicitamente - da prática da docência (SHULMAN, 2005b, p. 21)46.

45 Enseñar es en primer lugar comprender.

Cada um dos cinco subprocessos mencionados pelo autor são melhor explicitados: a) A preparação dos materiais a serem utilizados no ensino deve passar por uma análise crítica. Ao realizar tal análise, o professor deve se perguntar se o mesmo é “apropriado para ser ensinado”. Deve ainda detectar e corrigir erros, segmentar o material em formas adequadas para ensinar além de relacioná-lo com os fins educativos. Esse processo supõe o domínio por parte do professor de um repertório curricular, da compreensão de uma gama de materiais, programas e concepções de ensino existentes.

b) A representação pressupõe a análise das ideias centrais a serem ensinadas e as formas alternativas de apresentá-las aos alunos. O professor deve se colocar algumas questões: que analogias, metáforas, exemplos, demonstrações, simulações, entre outros recursos, podem ajudar a fazer uma ponte entre a compreensão do professor e o que ele espera que os alunos aprendam?

c) A seleção de métodos didáticos envolve desde o ato de reformular o conteúdo para o ensino em formas concretas de sua representação para os alunos até a definição dessas formas em metodologias de ensino, selecionando-se as estratégias mais adequadas para ensinar. É necessário utilizar um repertório que contemple não só as alternativas mais convencionais (como aulas expositivas, demonstrações, etc.), mas também uma diversidade de estratégias de trabalho colaborativo, projetos, atividades extraclasses, etc.

d) A adaptação refere-se ao processo de fazer as adequações do material às características dos alunos específicos de uma turma. Deve-se levar em consideração as concepções, pré-concepções, concepções equivocadas, dificuldades, linguagem, cultura, motivações, classe social, gênero, idade, habilidade, aptidão e interesse dos alunos.

e) A adequação das adaptações busca realizar um ajuste do material a ser utilizado ao perfil dos alunos com os quais se vai trabalhar.

Todos esses processos de transformação resultarão em um plano que contém um conjunto de estratégias para apresentar uma lição, uma unidade ou um curso. Sendo assim, o processo de raciocínio pedagógico faz parte do ensino desde o planejamento até a realização da aula e após essa, quando o professor reflete sobre o trabalho desenvolvido com os alunos. Percebe-se, por essa descrição, que diferentes elementos estão presentes no processo de transformação do conhecimento do conteúdo da disciplina em conhecimento adequado para promover a aprendizagem dos alunos.

personal a la preparación para que otros comprendan, constituyen la esencia del acto de razonar pedagógicamente, de la enseñanza como raciocinio, y de la planificación - explícita o implícita - del ejercicio de la docencia.

3. A instrução compreende o ensino propriamente dito, os aspectos observáveis da diversidade da ação docente, e inclui muitos dos aspectos essenciais da didática: a organização, a gestão da classe e dosagem do conteúdo, o manejo da turma, as explicações claras, descrições, demonstrações, formulações de perguntas, humor, assessoramento aos alunos, interações com a turma por meio de sondagens, perguntas, os debates, a disciplina, os elogios, críticas, enfim, todas as características observáveis das atividades de ensino efetivo desenvolvidas pelo professor em sala de aula, o seu estilo de ensino.

4. A avaliação constitui-se no processo que abrange o controle da compreensão dos conteúdos pelos alunos, tanto em uma abordagem de ensino interativo como em exames formais de avaliação da aprendizagem, com vistas a verificar o alcance dos objetivos e para replanejar o ensino caso seja necessário. Para essa verificação é necessário envolver todas as formas de compreensão e transformação próprias do professor descritas anteriormente. Essa etapa possibilita ao professor também avaliar sua prática pedagógica por meio da reflexão.

5. A reflexão caracteriza-se pela análise do professor sobre seu processo de ensino-aprendizagem, relembrando o que foi feito, verificando os sucessos, as emoções e os pontos a serem revistos, possibilitando-lhe aprender a partir da própria experiência, reconstruindo seus conhecimentos. Esse processo objetiva também comparar o que foi ensinado e sua relação com os objetivos propostos, bem como examinar sua prática pedagógica.

6. A nova compreensão possibilita ao professor adquirir uma compreensão mais rica tanto dos objetivos quanto das matérias a serem ensinadas, bem como dos alunos e dos próprios processos didáticos, o que viabiliza a construção ou consolidação de novos conhecimentos ou a reconstituição de conhecimentos anteriores. Essa etapa completa o ciclo, mas não o fecha, propiciando uma compreensão mais elaborada das situações de ensino vivenciadas pelo professor, que por sua vez será utilizada para outras atividades didáticas, como se fosse um espiral. Como afirma o autor, esse processo de transformação não constitui uma sequência de etapas ou fases fixas, são processos que podem ocorrer em ordem distinta.

Para Mizukami (2004), este modelo de Shulman envolve processos inerentes às ações educativas e contempla, de forma precisa, o processo de construção do conhecimento de como ensinar. O modelo de raciocínio e ação pedagógica possui, portanto, uma natureza processual e dinâmica que possibilita um trabalho contínuo de reestruturação do conteúdo pelo professor para ensiná-lo, sendo que, ao desenvolver o ato de ensino em um contexto escolar específico, no processo de interação com os alunos, o conhecimento do conteúdo pode se modificar em decorrência da reflexão sobre a prática, levando o professor a outra forma de

compreensão do conteúdo que dará origem a um novo patamar de conhecimentos a serem ensinados, iniciando assim um novo ciclo.

Na análise da prática docente dos professores pesquisados, esse processo de transformação será abordado a partir da discussão de como os seis processos do modelo de raciocínio e ação pedagógica se manifestam ou não em seu trabalho docente.