• Nenhum resultado encontrado

A investigação sobre as relações entre o conhecimento do conteúdo e a prática docente, sobre o processo de transformação do conhecimento específico para o processo de ensino, pode ser entendido também com os aportes dos estudos sobre a transposição didática.

Chevallard (1991), ao estudar a didática das matemáticas, desenvolveu o conceito de transposição didática, a partir da obra de Michael Verret (1975). Segundo Chevallard (1991), transposição didática é o trabalho que transforma um objeto de saber em um objeto de ensino, ou seja, refere-se às transformações que um saber sofre quando passa de um campo científico para o campo escolar. O saber produzido pela transposição didática se constitui num saber deslocado de suas origens e de seu contexto histórico, portanto o saber didatizado torna- se diferente do saber acadêmico, porque para ser ensinado, o saber precisa ser simplificado, ensinado num tempo pré-estabelecido e avaliado na escola. É ao trabalho de transformar um objeto de saber em um objeto de ensino que Chevallard designa transposição didática.

Para que o ensino de um determinado elemento de saber seja meramente possível, esse elemento deverá ter sofrido certas deformações, que o tornará apto para ser ensinado. E o saber “tal como é ensinado”, o saber ensinado é necessariamente distinto do saber “inicialmente designado como o que deve ser ensinado”, o saber a ser ensinado. (CHEVALLARD, 1991, p. 16-17, tradução nossa)47.

Nas palavras do autor, “em sentido restrito, a transposição didática designa a passagem do saber sábio ao saber ensinado” (CHEVALLARD 1991, p. 22, tradução nossa) 48

. Tendo por base o trabalho de Verret (1975), Chevallard (1991) argumenta que para que o saber acadêmico possa se tornar um saber ensinado, é necessário que aconteçam vários processos de transformação, que ele designa como a dessincretização, a despersonalização, a programabilidade, a publicidade e o controle social das aprendizagens.

47 Para que la enseñanza de un determinado elemento de saber sea meramente posible, ese elemento deberá haber

sufrido ciertas deformaciones, que lo harán apto para ser enseñado. El saber-tal-como-es-enseñado, el saber enseñado, es necesariamente distinto del saber-inicialmente-designado-como-el-que-debe-ser-enseñado, el saber a enseñar.

 A dessincretização refere-se ao processo de recriação do saber ensinado por meio de uma nova síntese do saber acadêmico, pautada na lógica da aprendizagem, buscando a graduação das dificuldades para adequação ao público escolar.

 A despersonalização consiste no fato de que o saber ensinado não tem as referências de autoria que são fundamentais no campo acadêmico.

 A programabilidade busca conduzir a uma definição racional de sequências que permitam a aquisição do conhecimento de forma progressiva, em uma relação específica com o tempo didático.

 Por publicidade, entende-se a definição explícita, em compreensão e extensão, do saber a transmitir.

 O controle social das aprendizagens refere-se ao controle que é realizado com vistas aos processos de verificação que autorizem a certificação dos conhecimentos adquiridos (CHEVALLARD, 1991, p. 69-73).

Ao discutir a transposição didática e seu papel na prática pedagógica, o autor aponta a distância entre o saber sábio e o saber a ensinar, ressaltando que o processo de ensino se diferencia muito do processo de investigação. Enquanto no processo de investigação busca- se a resolução de problemas postos pela comunidade de pesquisadores, no processo de ensino não são os problemas que o impulsionam, mas sim a contradição antigo/novo. Essa contradição ocorre visto que, para se constituir em objeto de ensino, é necessário que o conhecimento se apresente primeiramente como algo novo perante os conhecimentos dos alunos para possibilitar o contrato didático. Entretanto, posteriormente, o conhecimento apresentado como novo deve possibilitar que os alunos estabeleçam relações com seus conhecimentos anteriores para que seja possível a aprendizagem, aparecendo, portanto, como um objeto antigo. Dessa forma, o objeto de ensino adquire a função de um “objeto transacional entre passado e futuro” (CHEVALLARD, 1991, p. 77). A superação dessa contradição se daria, assim, pelo êxito da aprendizagem. Nesse ponto o autor destaca que a dialética antigo/novo se institui na estrutura do tempo didático, no qual se busca conduzir o ensino de forma a viabilizar a progressão estabelecida nos programas escolares e nos manuais didáticos. Entretanto, o autor ressalta a dificuldade de se trabalhar com um tempo didático único, definido institucionalmente, pois o “tempo legal” do ensino esbarra nas subjetividades de cada aluno, em sua história pessoal.

o autor chama de noosfera, que está inserida na sociedade e na qual se encontra o sistema didático. Nessa instância estariam aqueles que ocupam postos principais do funcionamento didático e se enfrentam com os problemas resultantes do confronto com a sociedade, onde se desenrolam os conflitos e se realizam as negociações. Composta por “representantes do sistema de ensino, com ou sem mandato (desde o presidente de um sindicato até o simples professor militante)” (CHEVALLARD, 1991, p. 28, tradução nossa)49

, a noosfera seria responsável pelo processo de definição dos saberes a ensinar, portanto teria uma interferência no processo educativo, por meio da possibilidade de influenciar na seleção de conteúdos que seria feita para compor os livros didáticos ou programas de ensino.

Esse trabalho seletivo, contudo, não é neutro, mas condicionado por valores diversos que resultam não só na escolha de conteúdos, como também na definição de valores, objetivos e métodos que estão presentes no sistema de ensino. Nesse sentido, o autor afirma que o trabalho mais direto da transposição didática é feito pela noosfera e que a interferência do professor seria realizada quando a maior parte da transposição didática já tivesse sido feita, ou seja, o professor atuaria no que o autor chama de transposição didática “interna”, na escola. Nesse processo de transposição didática interna, o professor busca transpor o conhecimento a ser ensinado para um conhecimento adequado para o ensino, recriando-o em uma lógica de aprendizagem, como menciona Chevallard (1991). Para isso, faz uso de formas de simplificação dos conteúdos, organizando-os para ensiná-los de forma a facilitar a compreensão para que possam ser aprendidos pelos alunos, utilizando diferentes estratégias de didatização, tais como exemplificação, ilustrações, graduação de dificuldades, sequência, adequação ao nível de ensino, exercícios e questões, organizando o conhecimento em um programa escolar para que possa ser ensinado e avaliado.

Estudos de Forquin (1992) contribuem para o entendimento do processo de transposição didática interna, que é realizado pelos professores na escola. De acordo com o autor, a transposição didática ocorre na educação escolar quando é feita uma seleção entre os saberes e materiais culturais disponíveis numa dada sociedade, realizando-se um grande trabalho de reorganização para tornar tais saberes passíveis de transmissão para as novas gerações, sendo necessária a utilização de “dispositivos mediadores” que possibilitem o ensino. O autor enumera diferenças entre a exposição teórica e a exposição didática, afirmando que essa última deve considerar não apenas o estado do conhecimento, mas

49 representantes del sistema de enseñanza, con o sin mandato (desde el presidente de una asociación de

também o estado de quem aprende e de quem ensina, bem como sua posição em relação ao saber e a relação entre ambos e o contexto social. De acordo com esse autor, a transposição didática, fruto de processos de reestruturação dos objetos de conhecimento, ocorre a partir de uma “seleção cultural escolar” que se faz em relação a uma herança do passado, mas incide também no presente,

sobre aquilo que se constitui num dado momento a cultura (no sentido antropológico e intelectual do termo) de uma sociedade, isto é, o conjunto de saberes, das representações, das maneiras de viver que tem curso no interior desta sociedade e são suscetíveis, por isso, de dar lugar a processos (intencionais ou não) de transmissão e de aprendizagem (FORQUIN, 1992, p. 34).

Nesse sentido, a cultura escolar apresenta-se como uma segunda cultura em relação à cultura de invenção ou criação, subordinada a uma função de mediação didática manifestada em programas, instruções oficiais, materiais didáticos, notas, classificações, entre outros aspectos. Para o autor, a necessidade de didatização decorre de certos traços característicos dos saberes escolares, sendo comum no processo de ensino:

a predominância de valores de apresentação e de clarificação, a preocupação da progressividade, a importância atribuída à divisão formal (em capítulos, partes e subpartes), a abundância e redundâncias no fluxo informacional, o recurso dos desenvolvimentos perifrásicos, os comentários explicativos, às glosas e, simultaneamente, às técnicas de condensação (resumos, sínteses, documentários, técnicas mnemônicas) à pesquisa de concretização (ilustração, esquematização, exemplificação), o lugar concedido às questões e aos exercícios, tendo uma função de controle ou de reforço, todo esse conjunto de dispositivos e de marcas pela qual

se reconhecem um “produto escolar” (FORQUIN, 1992, p. 34).

Para Perrenoud (1993), a transposição didática pode ser explicada da seguinte maneira: os saberes, práticas e culturas, para se tornar ensináveis pela escola, passam por um conjunto de transformações:

dos saberes sociais aos saberes a ensinar (da cultura extraescolar ao currículo formal); dos saberes a ensinar aos saberes ensinados (do currículo formal ao currículo real); dos saberes ensinados aos saberes adquiridos (do currículo real à aprendizagem efetiva dos alunos) (PERRENOUD, 1993, p. 25).

De acordo com o autor, é a segunda fase de transformações - do currículo formal ao currículo real - que ocorre no âmbito da sala de aula, com a criação pelo professor de um sistema didático que permita propor tarefas e interações que possibilitem oportunidades de aprendizagens para os alunos. É nessa fase que entra o poder criador e interpretativo dos professores. Nesse ponto, ele refere-se ao que Chevallard (1991) chamou de transposição didática “interna”. Essas transformações seriam feitas por meio de segmentações, progressão, simplificação, tradução em lição, aulas, exercícios, organização a partir de materiais para se adequarem aos planos de trabalho dos professores de forma a tornar o conhecimento viável para o ensino dentro de determinado tempo. Para Perrenoud (1993), é necessário que os

professores tornem os saberes ensináveis, exercitáveis e passíveis de avaliação na escola, fazendo uma “tradução pragmática” dos mesmos em situações didáticas, transformando-os em problemas, tarefas, projetos, etc. É o que Chevallard (1991) denominou de programabilidade e controle social das aprendizagens no processo de transposição didática.

Nesse trabalho, o processo de didatização do conteúdo será examinado com base em Chevallard (1991), buscando identificar as estratégias utilizadas para tornar o conhecimento adequado para o ensino. Será analisada a forma como o professor realiza exemplificações e ilustrações, como elabora exercícios e questões, como organiza o conteúdo em sequência e faz a graduação de dificuldades, visando tornar o conteúdo passível de ser compreendido e aprendido pelos alunos.

Algumas aproximações entre os conceitos de CPC e a transposição didática podem ser elencadas. Ambos buscam evidenciar os processos utilizados pelos professores para tornar o conhecimento científico ou o conhecimento específico de uma disciplina adequado para o ensino. Shulman (2005b) aponta como elementos importantes nesse processo a compreensão do conteúdo pelos professores e sua transformação para o ensino, utilizando explicações, analogias, metáforas, exemplos, demonstrações, simulações, questionamentos aos alunos, interações com a turma, entre outros. Essa transformação teria como objetivo tornar o conhecimento “ensinável,” adequado às características dos alunos e do contexto escolar. Chevallard (1991) mostra a relevância da passagem de um saber a ensinar em um objeto de ensino, por meio de diferentes processos de transformação, denominados por ele de dessincretização, despersonalização, programabilidade, publicidade e controle social das aprendizagens. Entretanto, de acordo com o autor, é no processo de transposição didática “interna,” aquela que acontece dentro da escola, que ocorre a ação do professor. Para tornar o conhecimento viável para o ensino ele precisa realizar adaptações, ordenamento ou simplificação dos conteúdos, por meio de estratégias de didatização como exemplificação, ilustração, graduação de dificuldades, sequência, questionamentos aos alunos, exercícios, etc. Nos dois casos observa-se a relevância do trabalho do professor no processo de transformação dos conhecimentos, ao criar e desenvolver situações de aprendizagem de forma que tais conhecimentos sejam passíveis de ensino nas escolas.

Desse modo, para tornar um conhecimento ensinável o professor utiliza-se de diferentes estratégias de didatização no processo de transposição didática, que teria como mediação, entre outros conhecimentos de base para o ensino, o CPC. Este implica uma série de processos desenvolvidos pelos docentes que podem ser sintetizados no modelo de raciocínio e ação pedagógica, cujas etapas estreitamente relacionadas envolvem compreensão,

transformação, instrução, avaliação, reflexão e nova compreensão. Tais processos se manifestam na prática docente juntamente com as estratégias de didatização. Essas estratégias requerem do professor não apenas os conhecimentos de sua área específica, é necessário que os conhecimentos do conteúdo sejam reorganizados em uma perspectiva pedagógica, o que implica em planejamento, seleção e organização dos conteúdos em uma sequência adequada, considerando o nível de ensino, o perfil dos alunos, o tempo de aprendizagem, o contexto institucional, entre outros aspectos. Pressupõe ainda a seleção de materiais didáticos, a articulação com as novas tecnologias e o relacionamento do conteúdo ensinado com o conhecimento prévio do aluno em situações reais, visando possibilitar uma aprendizagem significativa50 e contextualizada.

Esses dois conceitos serão usados para analisar a docência na EPT, cuja compreensão pressupõe considerar as suas especificidades e as demandas que impõe ao trabalho do professor. É o que será analisado na próxima seção.