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No início de 1962, Heron de Alencar segue para Brasília a convite de Darcy Ribeiro para fazer parte da construção da UnB. Ambos, em textos sobre a Universidade81, defendem a necessidade de se construir uma universidade que proporcionasse a emancipação nacional, que possibilitasse a superação do estágio de submissão cultural do Brasil ao imperialismo norte-americano que, por sua vez, representou uma neocolonização do País (situação agravada com o golpe de 64). Tal discurso é, naquele momento, a base de uma concepção comunista; tanto Heron como Darcy identificavam-se com essa idéia, sendo o último mais explicitamente por fazer parte da ala à esquerda do governo de João Goulart. Para a construção de uma independência nacional seria preciso estudar a realidade brasileira, por isso, a instituição deveria estar voltada para a busca de soluções dos problemas nacionais. A preocupação com o estudo da realidade do País é constante nos textos de ambos. Para HA:

O atraso que nos preocupou, e que deverá seguir preocupando-nos fundamentalmente, é o da nossa Universidade em relação a nós mesmos, os brasileiros, e o desajuste em que se encontra dita instituição em relação à nossa sociedade atual, em relação às exigências e aos desafios da vida brasileira atual.82

Ainda sobre a questão, HA segue tratando da Universidade como instituição destinada a formar a classe dirigente, o que a teria levado a uma contradição em seu processo de interação com a sociedade. Pensada como instrumento de preservação de valores ao invés de um espaço para criação, a Universidade no Brasil, apesar de ser uma instituição de existência material recente, nasceu já velha porque estava essencialmente destinada à mera função de preparar decorativamente as elites sociais e culturais do País. Para ele, era preciso

81 Darcy Ribeiro em A Universidade necessária. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.; e em Unb: invenção e descaminho. Rio de Janeiro: Avenir Editora. Coleção depoimentos, vol 3.1978. Heron de Alencar em “A

Universidade de Brasília: Projeto nacional da intelectualidade brasileira”, sendo este um apêndice do primeiro livro acima citado de Ribeiro, e mais um ensaio sobre a Universidade. Durante a pesquisa foram obtidas três versões desse texto: o manuscrito intitulado “Université”, que é um esboço do trabalho, uma versão datilografada e sem título – dividido em quatro partes: Universidade e sociedade, universidade e desenvolvimento, universidade e saber, e resumo/princípios, e por fim, uma plaquete intitulada "l'université, pour quoi faire?", que é um extrato de um trabalho apresentado em seminário na Argélia, publicado na revista

Développement et civilisations, n. 39/40, maio/jun 1970. As duas primeiras versões foram cedidas pela Prof. Dra.

Ana Maria Alencar, e a última pela irmã de HA, Hennê de Alencar Maia.

82 ALENCAR, Heron de. A Universidade de Brasília: Projeto Nacional da Intelectualidade Brasileira, op. cit., p. 216.

construir uma instituição que aprofundasse a visão brasileira dos problemas educacionais e universitários.

Entre os objetivos que mostram a atitude inovadora da Universidade de Brasília, devem ser mencionados: o de formar cidadãos responsáveis, empenhados na busca de soluções democráticas para os problemas com os quais se defronta o povo brasileiro na sua luta pelo desenvolvimento econômico e social (Art. 2º, item 1); [...] o de colaborar com estudos sistemáticos e pesquisas originais, para o melhor e mais completo conhecimento da realidade brasileira em todos os seus aspectos Art. 2º, item IV) [...] 83

Assim se propunha a Universidade de Brasília. Não como formadora de meros repetidores, mas sim de cidadãos conscientes de seu papel e de futura inserção nos poderes instituídos. A partir de um arrojado projeto para o qual foram seduzidos centenas de intelectuais do País e alguns estrangeiros, deu-se início a essa utopia. Afirma HA:

A Universidade de Brasília é o resultado de uma consciência crítica dos mais autênticos intelectuais brasileiros. Não foi imposta à realidade nem tampouco nasceu de um desejo alienado de nivelação cultural e científica com Universidades dos países chamados desenvolvidos. [...] todos eles estavam empenhados em edificar a nação efetivamente livre e emancipada que o povo brasileiro está historicamente chamado a construir.84

Diferentemente da experiência de outras universidades nacionais, a UnB já se construiu diferente desde o início, desde a sua concepção – sua construção foi coletiva, apesar de idealizada por Darcy Ribeiro e de ter sido ele o responsável pela efetivação desse projeto, por ter feito os convites, ter escolhido nomes. Ele chegou a vir à Bahia discutir a proposta com HA, segundo Wanda de Alencar: “Nesse mesmo ano de 61, o Darcy veio à Bahia para convencer o Heron de partir para Brasília, para o projeto da criação da Universidade de Brasília. Heron aceitou. Partimos para Brasília em 1962” 85. Pode-se dizer que a idéia de Ribeiro deixou de ser privada para ser de todos os que por ela deixaram seus Estados de origem e rumaram, com maridos, esposas e filhos, a Brasília, deixando o conforto de seus

83 Id., ibid., p. 219. 84 Id., ibid., p. 213.

85 ALENCAR, Wanda de. Re: Questionário sobre Heron de Alencar. Resposta enviada à pesquisadora via e-mail em maio de 2003.

lares para viverem em barracões, tudo isso a fim de realizarem um sonho. Todos fascinados pelo que foi, segundo seu primeiro Reitor:

O primeiro projeto orgânico de criação de uma universidade integrada surgiu em 1960 na cidade de Brasília, do esforço de uma centena de cientistas e intelectuais brasileiros reunidos para pensar o próprio plano estrutural de universidade, ante a oportunidade oferecida pela construção da nova capital do Brasil. Este projeto inspirou-se basicamente nos esforços pioneiros de Anísio Teixeira, na Universidade do Distrito Federal (1935-37) e na lição extraída do fracasso da tentativa de implantar a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras na Universidade de São Paulo e do Rio de Janeiro como órgãos integradores das respectivas universidades. Entretanto, o projeto de Brasília ultrapassou amplamente, por suas ambições, aqueles esforços larvais. Ali se contou com recursos humanos e materiais que permitiram aspirar a criação de uma universidade efetivamente capacitada para o inteiro domínio do saber moderno, para o exercício da função de órgão central de renovação da universidade brasileira e para o desempenho do papel de agência de assessoramento governamental na luta pelo desenvolvimento autônomo do país.86

A experiência dos que contribuíram para sua realização permitiu um projeto amadurecido que englobava ações a curto e a longo prazos para sua implementação. HA não foi o único baiano que se dirigiu à Brasília, além dele, Nelson Rossi (carioca, que se mudou para a Bahia) e Anísio Teixeira, que já possuía uma história de colaboração com a universidade brasileira, engajaram-se nesse empreendimento. Nelson Rossi foi o responsável pela instalação do Laboratório de Fonética Experimental da Universidade da Bahia, o primeiro a ser instalado no Brasil, em 1955, que obteve como resultado a realização do Atlas prévio dos falares baianos. Anísio Teixeira, que foi o vice-reitor da UnB, e posteriormente reitor quando Darcy Ribeiro assumiu o cargo de Ministro Civil do governo João Goulart, foi o idealizador da Universidade do Distrito Federal, fundada em 1935 no Rio de Janeiro, e destruída pelo Estado Novo. Também havia sido responsável por várias inovações quando esteve na Secretaria de Educação na gestão do governador Otávio Mangabeira, na Bahia, em 1947, tendo sido o idealizador da grande transformação do ensino secundário no Estado com a criação dos Centros Educacionais – Escolas Parque e Escolas Classe. Assim, não se pode falar em educação na Bahia e no Brasil sem fazer referência àquele que mais se destacou nesse campo. Anísio Teixeira faz parte da nossa história da educação.

HA foi indicado para Secretário-Executivo do curso de Letras Brasileiras da UnB e responsável pela elaboração do programa do curso, entre os anos de 1962 e 1963. Além disso, foi um dos coordenadores das atividades de pós-graduação e participou do Conselho Diretor da Fundação Cultural de Brasília. Lecionou as disciplinas Literatura Brasileira e Cultura Brasileira de 1962 a abril de 1964. Ainda em 1962, foi membro da Comissão de estudos para a reorganização da Universidade brasileira e da Comissão técnica para a reorganização das Faculdades de Letras do Brasil, junto ao Ministério da Educação do governo Goulart. Além disso, participou da Comissão técnica que trabalhou no estabelecimento do currículo mínimo para o ensino de Letras do Brasil e foi ainda membro do Conselho Federal de Educação da Presidência da República, entre 1963 e 1964.

Foi assim que esses três “baianos”87 fizeram parte do projeto de formação de intelectualidade brasileira que unificou muito outros intelectuais:

Além de Anísio, muita gente mais pôs o ombro no andor. Tantos, que se eu tivesse de lembrar os nomes dos que mais cooperaram, seria preciso citar mais de uma centena. Com efeito, este foi, aproximadamente, o número de intelectuais, pensadores, artistas, professores que integraram as comissões gerais que debateram as reformas alternativas de organização que se ofereciam à nova universidade, e as equipes especializadas que programaram a implantação de cada um de seus órgãos. Por isso mesmo é que eu gosto de dizer – e o faço com toda a convicção – que a UnB foi e é ainda o projeto mais ambicioso da intelectualidade brasileira. Efetivamente, de 1959 a 1961 a criação da UnB foi a questão cultural mais séria, mais desafiante e mais empolgante que se colocou diante da intelectualidade do país, que via nela sua meta e sua causa.88

A experiência da UnB é um marco singular na história da universidade brasileira. Aquele ambiente em que professores, inicialmente alojados em barracões no campus de uma instituição em formação, debatiam idéias e projetos na sala de estar comum a todos ou no único refeitório do lugar junto com alunos89, sempre de maneira empolgada será impossível de se repetir. Ali se daria início a uma geração da intelectualidade voltada para a busca de soluções para os problemas do País, a ambição, segundo Darcy Ribeiro, “[...] era a de fazer-se um núcleo de amadurecimento da consciência crítica nacional, através de uma atenção

87 Nelson Rossi era carioca e Heron cearense, digo baianos porque atuavam na Bahia. 88 RIBEIRO, Darcy. UnB: invenção e descaminho, op. cit., p.15.

89 Informações da Profª. Ivia Alves que esteve, no ano de 1963, fazendo um estágio de 15 dias, como bolsista de IC/ CNPQ, assistindo aulas de Letras e alojada com os professores.

privilegiada aos programas de estudo mais capazes de instrumentá-la cientificamente e de sustentá-la ideologicamente”90, se não tivesse ocorrido a deposição de Goulart.

Entre 1964 e 1965, a UnB foi desmontada pela ditadura militar. Seus principais professores e funcionários, em grande parte funcionários do Ministério de Educação e Cultura postos à disposição da Universidade, foram demitidos ou requisitados pelo Ministro da Educação Flavio Suplicy Lacerda. O campus foi invadido em 64 e novamente no segundo semestre de 65, por ocasião da greve geral decretada pelos estudantes e da paralisação do corpo docente. Professores foram presos e demitidos, inclusive os estrangeiros, alunos foram espancados e também presos. Como resposta, duzentos e dez professores pediram demissão, correspondendo a cerca de noventa por cento dos professores efetivos brasileiros fora das salas de aula. Para Machado Neto, a ditadura destruiu “[...] o projeto mais ambicioso da intelectualidade brasileira, reduzindo-o a um simulacro de universidade que aguarda sua restauração”.91

Mas, apesar da invasão, das prisões, dos espancamentos e da intervenção na UnB, o sonho continuou. Seja fora do país através da divulgação do projeto apresentado em seminários pelos exilados, a exemplo de HA, Pereira da Silva, Niemeyer e do próprio Darcy Ribeiro, seja aqui mesmo, através da apropriação de parte do projeto por outras universidades brasileiras. A semente foi lançada, mas os frutos colhidos não foram aqueles que pretendiam colher os seus idealizadores. Evidente que não cresceriam iguais, os solos não haviam sido adubados da mesma maneira, portanto jamais seriam os mesmos:

Depois de 1964 muitas universidades brasileiras, antes hostis ao plano de organização da Universidade de Brasília, começaram a manifestar o propósito de adotá-lo como seu projeto de reestruturação. Naturalmente, não o adotariam em sua integridade, mas segundo normas subalternizadas de implantação de falsos institutos centrais e de falsas departamentalizações num esforço ridículo por atender ao que lhes parece ser a exigência dos norte-americanos para conceder seus disputados financiamentos92.

É também por isso que, para Darcy Ribeiro, a UnB é uma utopia vetada, um sonho impedido de realizar-se, mas que permanece sendo esperança, como uma utopia

90 RIBEIRO, Darcy. UnB: invenção e descaminho, op. cit., p.80.

91 MACHADO NETO, A L. A Ex-Universidade de Brasília: significação e crise. In: RIBEIRO, Darcy. A universidade necessária. Op.cit., apêndice II, p. 257-258.

concreta que ainda pode ser retomada porque é o esforço de ser a Universidade que o Brasil necessita para formular o projeto de si próprio. Mas, para que isso se realize, é preciso não esquecer tudo o que passou:

Quando, amanhã, o Brasil – e dentro dele a Universidade de Brasília – conquistar a alforria para retomar o comando de seus próprios destinos, precisaremos recordar estes dias trágicos da travessia do túnel da iniqüidade. Entre eles, principalmente, o da invasão de 1964, em que, depois de assaltada por tropas motorizadas, a UnB teve diversos professores presos levados a um pátio militar para serem ali desnudados e assim humilhados por toda uma tarde. Este quadro de um magote de professores gordos e magros, velhuscos, uns secos de carne, outros barrigudos, esquálidos, dois deles enfermos, todos nus num pátio policial não deve ser esquecido jamais: é o dia da vergonha. Será preciso recordar igualmente a demissão de 1965 quando, acompanhando solidários os quinze expurgados, duzentos e dez professores deixaram a Universidade de Brasília, a cidade, e a maioria deles o país. Também não deve ser esquecido este episódio histórico: é o dia da diáspora.93