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ALENCAR, Heron de Falam as relíquias do poeta A Tarde, Salvador, p.2, 14 mar 1947.

A ATUAÇÃO DE HA NA IMPRENSA E NA MÍDIA BAIANAS

2.5.3 Q UESTÕES DE LITERATURA

194 ALENCAR, Heron de. Um grave problema social. A Tarde, Salvador, p. 3, 3 jan. 1949. 195 Id. Um mundo que não se entende.... A Tarde, Salvador, p. 3, 15 fev. 1950.

O texto seguinte é um protesto. “Caminhos cruzados...e errados” foi publicado em 1948 e faz uma crítica à Associação do Livro Argentino que havia julgado como imorais livros de literatura. HA destaca dois deles, Caminhos Cruzados, de Érico Veríssimo, que considera despretensioso, e Ulysses, de James Joyce. Tal atitude era como um retorno à “[...] época de restrições à liberdade de pensar e dizer” que “parecia ter ficado sepultada nos campos da segunda guerra mundial, de mistura de frangalhos das camisas negras, pardas e verdes”196. Esse texto serve de exemplo de como se manifestava HA em relação às questões e literatura, cultura e política.

Estranho e curioso conceito de imoralidade, esse, adotado pela infeliz Associação Argentina! Imoral e chocante, senhores juízes, é a própria vida. São os preconceitos hipócritas de uma sociedade enferma. São as contradições sociais, a opulência e a miséria vivendo uma defronte da outra, a fartura e a fome vizinhas da mesma rua, o saber e a ignorância viajando juntas no mesmo veículo. Imoral, respeitáveis julgadores, é a educação deseducadora e charlatanesca que damos às nossas crianças, mistificando e ocultando verdades, criando doenças e engendrando conflitos mentais. É a criminosa displicência com que tratamos os menores abandonados, como a indicar a esses inocentes pecadores o caminho da delinqüência. E imorais sobretudo, senhores donos da moral, são os homens que procuram ocultar essa realidade com escusos processos de condenação àqueles que buscam retratá-la em cores vivas, para que todos a enxerguem e condenem.197

Além dessas considerações críticas sobre a posição da Associação Argentina, HA também incorpora nesse texto sua idéia de representação literária, idéias estas já referidas em outros momentos deste trabalho.

As obras de arte – a literatura inclusive – aparecem como frutos de uma determinada época. Dessa forma, refletem a realidade social em que foram criadas, contendo os erros, defeitos, virtudes, imoralidade ou pornografia dessa realidade. Daí a sua função social, hoje não mais negada por qualquer pessoa de mediana inteligência. E os livros apontados como imorais, não fizeram mais do que espelhar a sociedade em que vivem ou viveram os seus autores, e têm, por isso mesmo, a sua função social, qual a de mostrar erros e sugerir soluções.

196 ALENCAR, Heron de. Caminhos cruzados...e errados. A Tarde, Salvador, p. 3, 21 fev. 1948. 197 Id., loc. cit.

Os tipos retratados em Ulysses e Caminhos cruzados, são homens do nosso tempo e que conosco convivem todos os dias.198

Um outro texto sobre escritores é aquele publicado após a morte de Monteiro Lobato. O texto aqui referido é intitulado “Bilhete às crianças baianas”. Esse texto, além de conceder uma atenção especial às crianças, já que a elas é dedicado, faz uma reflexão sobre a permanência de um escritor no mundo através de sua obra. Para HA, o indivíduo que escreve e que tem uma ação afirmativa no sentido de construir o bem comum é um ser, de fato, vivo; já aqueles que, ao contrário, ignoram o que significam as expressões ação afirmativa, bem comum e outras já nasceram mortos. Isso é o que pretende ensinar às crianças, principalmente às que faziam parte da “Hora da Criança”, programa já referido, de Adroaldo Ribeiro Costa. Segue um trecho do “Bilhete” de HA:

Quero dizer, por exemplo, que Lobato não morreu. É. Não morreu não, como andaram dizendo os jornais. Eu explico: essa história do sujeito andar no meio da rua, comer, dormir, ir ao trabalho e voltar para casa, e um belo dia ser deitado, mudo, numa quadra qualquer de sete palmos, nada disso tem a menor relação com a vida. Quem faz simplesmente isso, nasceu morto e continua morto. O que acontece é que, lá às tantas, perde a fala, fica mudo, não anda mais, nem come, nem vê, nem sente, torna-se totalmente imprestável, e os outros, que lutam por espaço, enterram-lhe numa cova qualquer. Agora, quando ele consegue realizar alguma coisa, quando se sobressai dos demais indivíduos, quando constrói uma obra que o tempo não derruba e os homens, sempre tentando, não conseguem destruir, aí, então, ele é vivo, permanecerá vivo, por mais que isso contrarie a vontade dos mortos, que sempre andarão soltos no mundo. Tal é o caso do nosso Monteiro Lobato, que não morreu nem morrerá nunca. Esse gosto os mortos não terão, vocês bem sabem disso. Lobato está vivo e muito forte, nos seus livros, no exemplo da sua coragem de homem livre. O que desapareceu foi a carcaça, que é sempre fraca e não merece maior importância depois de um certo tempo, principalmente quando se tenha realizado o que ele, Lobato, realizou.

[...]

Termino. Acredito que lhes tenha dito alguma coisa de útil, não muito diferente daquilo que direi a alguns adultos a respeito de Lobato, nosso amigo comum. Acredito, ainda, que vocês, mercê do exemplo de Lobato, venham a ser vivos. E isso é, afinal, o que ele mais deseja.199

198 ALENCAR, Heron de. Caminhos cruzados...e errados. A Tarde, Salvador, p. 3, 21 fev. 1948. 199 ALENCAR, Heron de. Bilhete às crianças baianas. A Tarde, Salvador, p. 3, 13 jul. 1948.

O romance (gênero) também foi tema discutido por HA em artigo - “A cidade e seu romancista” - publicado em 18 abr. 1949 que aborda o romance carioca. Para o articulista, faltava à cidade um romancista “autêntico”, como o foi Lima Barreto à sua época. Um autor que observasse a cidade e conseguisse senti-la em todos os seus aspectos, que também se colocasse na posição de personagem. Era disso o que necessitava a cidade:

O Rio tem muito mais necessidade de um romancista do que de um Prefeito. É, pelo menos, a minha opinião, ao rever, entre decepcionado e triste, a ex-Cidade Maravilhosa. E explico: se o Prefeito é o homem que governa, dirige, resolve, o romancista é o homem que observa, sente, traduz e interpreta, para que os outros possam resolver, dirigir e governar.

[...]

Um homem que sinta todos os instantes, viva todos os detalhes, sofra todas as angústias. Um homem eternamente presente, sem ser notado, atuado pelos desastres que ocorrem na “Getúlio Vargas”, pelo ciúme de Jacarepaguá, pela hemoptise nas mesas de “café com leite”, pelo duplo suicídio no apartamento romanticamente anti-higiênico do Catete, pelo salto desesperado do décimo terceiro andar de um edifício qualquer, pelo passar e repassar sem fim dessa multidão que não sabe de onde vem, nem para onde vai, desse povo que acorda, trabalha e dorme sem consciência de si mesmo. Um homem que observa de todos os ângulos, ao mesmo tempo fotógrafo e poeta, sociólogo e psiquiatra. Disso é que necessita o Rio, muito mais que de um prefeito.200

Para HA, esse autor deveria não apenas registrar aquilo que via, mas analisar e interpretar a realidade, isso é o que faz um romancista. A sua escrita revela a sua maneira de perceber o mundo. Em um escritor, o que entra pelos olhos sai, transformado, pelas mãos. A idéia de que o autor deveria ser personagem parte de uma concepção da literatura como documento. O texto revela uma época:

Esse romancista ainda não apareceu. Mas aparecerá, por certo. E já que os escritores de renome não se aventuram à empresa, é bem provável que ele surja, espontaneamente, da própria multidão. Um desconhecido qualquer, um anônimo, que jamais tenha escrito outra coisa, porém, que sinta o drama seu e de três milhões, sofra a angústia de uma cidade que se debate entre os caprichos extravagantes de “nouveaux-riches” e a miséria que floresce nas ruas elegantes. Vivendo e sentindo a cidade, sofrendo suas dores e rindo suas alegrias, esse anônimo desesperado por não

encontrar quem grite ao mundo por ele e pelos outros, escreverá o romance ciclópico do Rio tumultuário – grito que ficará revoando como autêntico testemunho de uma época.201

O penúltimo texto desse bloco é intitulado “G.B.S.” e tem como motivo o falecimento, aos 94 anos, de George Bernard Shaw, “[...] o mais autêntico representante de uma humanidade que não deseja nem merece perecer” 202. Esse texto faz um resumo do que foi, para HA, a vida desse escritor irlandês que fazia de sua escrita um ato de participação. A valoração que o articulista faz é tamanha que chega a considerar a vida de Shaw como “[...] o mais surpreendente e um dos mais edificantes espetáculos dos nossos tempos. Foi, toda ela, um inteligente protesto. Uma original atitude de renovação. Um inigualável esforço de vencer o tempo e, com ele, vencer os preconceitos, as convenções e as injustiças”203. Para HA, a obra deixada por Shaw, o que inclui artigos, peças, conferências e artigos, pode ser considerada como um tesouro para a humanidade. Um dos aspectos importantes que levanta é a faceta contraditória daquele escritor, o que considera um ponto positivo:

Dele se diz que era contraditório e sem crenças definitivas. Nenhum outro elogio lhe poderia ser mais alto do que essa acusação. Por ser jovem, já ancião de barbas brancas e acreditar no progresso e na evolução como resultado da luta entre forças contrárias, é que era contraditório e não tinha crenças nem dogmas; era um constante receptivo às últimas verdades e, no momento mesmo de aceitá-las, já estava procurando as outras que os novos tempos iriam revelar.204

O último texto desse conjunto também é sobre um homem que já não habitava mais o mundo dos mortais. “O meu velho Artur de Salles”, é uma doce recordação do poeta baiano e de uma geração:

Já nem lembro bem como o conheci, tão permanente e contínua é a sua presença em minha memória. Lembro-me, porém, de sua bela cabeça de bronze de alvos cabelos longos, contemplando os velhos solares das ladeiras baianas. [...] De seus olhos negros e cansados, cheios de confiança e de vida, quando, nas longas conversas que mantínhamos, recordava episódios de sua tranqüila vila de São Francisco, ou me dizia

201 ALENCAR, Heron de. A cidade e seu romancista. A Tarde, Salvador, p. 3, 18 abr. 1949. 202 ALENCAR, Heron de. GBS. A Tarde, Salvador, p. 5, 4 nov. 1950.

203 Id., loc. cit.

da sua ardente esperança no estabelecimento da paz entre os povos do mundo.

Setenta e três vezes o calendário dos homens viu passar um primeiro de janeiro, e em nenhuma dela o tempo – que nada perdoa e não pára – conseguiu vencer o espírito do meu velho Artur de Salles, desse poeta jovem de cabelos brancos, cuja modesta morte junto à casa dos Alienados parece um irônico símbolo cheio de sugestiva verdade. Vivemos, infelizmente vivemos num mundo em que a lucidez vai se tornando a cada dia maior pecado, e uma quase sempre consciente alienação é a virtude dominante. A escala dos valores inverteu as medidas, e o que mais vale é sempre o que não vale. Esquecido ou ignorado, quase desconhecido dos habitantes do Estado que tanto engrandeceu, foi assim que morreu Artur de Salles, imensa voz de poesia, que se contentava em escancarar as janelas para a noite e fazer das águas do Lago Sagrado a mensageira melhor de seus versos, mas, nunca trocou sua autêntica poesia por vantagens e interesses impuros. Sabia, porém – e sei que o sabia como uma certeza rejuvenescedora – que esse mundo que não o ouvia, que não o queria ouvir, tinha as horas contadas no relógio da História. E essa era a certeza que fazia do velho Artur de Salles um moço como nós, os desta geração que, através do Caderno da Bahia, de Seiva, da ABDE e de tantos outros movimentos, vem procurando manter para a Bahia o prestígio que lhe deram um Gregório de Matos, um Castro Alves, o fluminense Euclides da Cunha, um Xavier Marques, um Artur de Salles e um Jorge Amado.

[...]

Que belo e rico exemplo de poeta e de homem, esse que nos deu o cantor dos velhos casarões e grande companheiro do mar dos costeiros baianos!205

E finaliza com um poema de Salles:

O coração da gente é uma fogueira acesa Arde, brilha, incendeia. E todo o céu da vida Fica cheio de luz e de beleza.

Depois o fogo morre. A lenha consumida Não brilha mais. Não canta.

Sim, meu velho Artur de Salles, a lenha consumida não brilha mais. Mas os teus versos continuarão cantando.206

205 ALENCAR, Heron de. O meu velho Artur de Salles. A Tarde, Salvador, p. 5, 4 jul. 1952. 206 Id., loc. cit.

Foram esses os textos publicados por HA no jornal A Tarde, não incluídos na coluna Caleidoscópio. Optou-se aqui por fazer uma apresentação geral do conteúdo desse material, ao invés da escolha de alguns poucos para análise mais aprofundada. O objetivo foi o de fornecer mais elementos que ajudassem a formar não apenas o perfil desse intelectual, mas também fornecer uma noção de suas idéias sobre literatura, cultura e sociedade.