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O norte de Goiás no contexto da frente pioneira: a dissolução do costume do uso da terra como garantia de domínio e as metamorfoses dos grupos sociais na fronteira

A emergência do mercado capitalista de terras em Goiás 1950/64: grilagem, especulação e absolutização da propriedade fundiária

3.4 O norte de Goiás no contexto da frente pioneira: a dissolução do costume do uso da terra como garantia de domínio e as metamorfoses dos grupos sociais na fronteira

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Diário do Oeste, 13 de novembro de 1960, p. 3.

465 MARÉS, Carlos Frederico Marés. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,

A corrida por títulos não atingiu apenas os posseiros que ocuparam a terra fundamentada na prerrogativa da cultura efetiva. Os fazendeiros de gado, seja a partir de títulos advindos de herança, mas que não estavam regularizados, seja através do apossamento, vivenciaram esse processo de maneiras diferentes. Com efeito, se ao mesmo tempo que os setores agrários tradicionais participavam ativamente da grilagem aproveitando o mercado de terras, outros não acompanharam as mudanças decorrentes da emergência do mercado capitalista de terras.

Um caso que exemplifica esta situação ocorreu no município de Itapeci. Nesse lugar, primeiramente, os posseiros foram submetidos pelos fazendeiros a pagarem o arrendo. Depois, os fazendeiros foram pressionados por supostos proprietários e acabaram expulsos da terra, conforme apurou o Sargento Luiz Cizilio: “(...) os antigos posseiros estão de acordo com os fazendeiros, pagando-lhes o arrendo devido, os piores são os chegantes que puzeram (sic) até o proprietário fora da fazenda, o mesmo fazendo com os antigos que se associam com ele”466

.

No munícipio de Peixe, fazendeiros que ocuparam terras devolutas e adquiriram posteriormente junto ao estado os títulos de domínio sofreram depois com a investida de grileiros que, após uma virtual divisão, venderam a terra para terceiros. Estes, fazendo cumprir o direito ao título que compraram, se depararam com terras já ocupadas por pessoas que afirmavam terem um título fornecido pelo estado.467

Segundo Fernandes Sobrinho, membro de uma tradicional família de proprietários de terras em Uruaçu, até meados do século XX “prevalecia o sistema de terras em comum” 468, o qual o patriarca deixava um quinhão da terra para cada herdeiro – seção de herança. Porém, estes não se preocupavam em regularizá-las, o que impedia que um dos filhos avançasse sobre as terras dos outros era o respeito. No entanto, esta situação mudou com as inovações de transportes na região, e com isso os avanços nas terras alheias tornaram-se comuns:

A norma que detinha o avanço de uns nas terras do outro era o respeito, que garantia a posse da herança da terra de modo a não prejudicar a ninguém, e foi o que funcionou no sertão goiano até o fim da década de 1940, quando entraram os agrimensores e começaram a divisão dos grandes latifúndios. (...) Depois de dividirem as terras, multiplicaram-se os casos de desrespeito à propriedade, que geraram demandas judiciais litigiosas. Numerosos foram os casos de demandas dos que avançaram na propriedade de parentes, trocando nomes de caminhos, córregos e grutas. Grileiros avançam em terras de posseiros (habitantes em terras devolutas). Não resta dúvida: a divisão da

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Jornal de Notícias, 12 de julho de 1959, p. 1

467 O Popular, 9 de março de 1961, p. 8.

propriedade, e sobretudo, a valorização que o progresso implantou no campo estimularam a violação da norma tradicional do respeito469.

Fernandes Sobrinho470 compreende a dissolução do costume do uso da terra, a violação da norma tradicional do respeito, com o avanço sobre as terras dos fazendeiros de gado e dos posseiros, como fruto da ação de agrimensores e da chegada de novos grupos que assumiram a hegemonia em Uruaçu. Para ele, isso ocorreu porque as antigas oligarquias, imbuídas de uma visão política regionalista e bairrista, perderam espaço para os novos grupos que chegavam ao estado com uma outra concepção de propriedade e ansiosas para aproveitar a valorização das terras:

Em Uruaçu, houve uma certa invasão de valores sociais. A oligarquia que dominava os meios de produção e o comércio até o ano de 1950 perdeu totalmente a hegemonia para os que vieram de fora, os nordestinos e alguns mineiros, em grande maioria, esses últimos, na área da agropecuária. (...) A oligarquia vendeu suas terras e fazendas de gado, mudou para a cidade, caiu da pirâmide social e pertence, hoje, à baixa classe média ou à pequena burguesia urbana, salvo raríssimas exceções. (...) Em outras comunidades, o latifúndio associava-se à valorização das famílias, mas em Uruaçu isso não aconteceu, pois as correntes migratórias começaram a comprar dos descendentes dos fundadores as cessões de heranças das terras471.

Por outro lado, Fernandes Sobrinho percebeu que em outras regiões do estado, os grupos dominantes locais vivenciaram as transformações em curso com ascensão e fortalecimento de sua posição social, com a aproveitamento do mercado de terras. Nesse sentido, devemos compreender que os diferentes grupos sociais que ocuparam e disputaram o destino da fronteira encararam de formas diferentes as novas condições das terras no norte de Goiás. O historiador Claudio Maia analisou a metamorfose dos grupos sociais na fronteira com as novas condições das terras:

O desrespeito à norma familiar da divisão não era resultado, todavia, somente da ação externa de novos grupos chegados à região (...). Era também resultado das transformações por que passava a região. Criadores de gado, comerciantes e posseiros vivenciaram de forma complexa e diversas as mudanças na região, contudo não se deve buscar uma posição comum destes grupos em relação à terra, é preciso procurar compreender as experiências diferenciadas dos grupos em conflito. Foi no conflito direto pelo espaço de produção que se constitui uma noção de propriedade diferenciada, compartilhada pelos que estavam em posição de confronto472.

469 Ibid., p. 69-70 470 Ibid. 69. 471

Ibid. p. 34.

Disto podemos concluir que, para algumas famílias, como os Fernandes de Carvalho, de Uruaçu, a valorização das terras foi vivenciada pelo confronto com novos grupos que compraram cessões dos antigos fazendeiros ou adquiriram os títulos pela grilagem. Esse é o caso da família Bonaerges Veigas, que assumiu o poder político na cidade com a perda de hegemonia dos Fernandes de Carvalho.

Em outras regiões, os criadores de gado confrontaram com os posseiros no afã de se apropriarem de suas terras, articulando-se com comerciantes e com os novos grupos que chegavam ao estado, passando, assim, de criadores de gado a proprietários de terras. Foi desta forma que a família Martins da Cunha, de Porangatu, que participou da grilagem em Trombas e Formos e Porangatu, encarou a chegada das estradas e o desenvolvimento econômico em Goiás.

O surgimento da renda capitalista provocou a dissolução das relações de honra e interesse pessoal com a terra, para o mero interesse econômico, o que explica o florescimento de diversos grupos de grilagem de terras. O desenvolvimento capitalista no norte goiano exigiu a adaptação dos antigos “proprietários” a esse processo, alguns conseguiram traduzir o espírito do momento, outros, como a família Fernandes de Carvalho, foram à ruína, não porque fossem expropriados como os posseiros, mas porque foram pressionados a vender a cessão de direitos de suas terras, não conseguindo, assim, se reproduzirem enquanto proprietários de terras.

Nesse sentido, os proprietários desempenharam papel ativo para o estabelecimento do mercado fundiário no que se refere à participação e falsificação de títulos, intermediação na venda de terras, além de pressionar o investimento do estado em estruturas de transportes e políticas de industrialização do agro. Desse modo, parte dos criadores de gado converteram-se em proprietários de terras, conservando seu poder e sua capacidade de extrair renda fundiária ao mesmo tempo que redefiniam suas configurações com as transformações econômicas em curso, associando-se com o capital estrangeiro e financeiro, solidificando seus laços com as classes dominantes. Ao abrir a terra à circulação do capital que rende juros, os proprietários são pressionados a desempenhar um papel ativo no processo de acumulação sob o risco de serem engolidos pelo mesmo.

A mutação dos proprietários fundiários foi vislumbrada por Marx473, que apesar de lhes atribuir o caráter de parasitas, por se apropriam do mais-valor sem dar nada em troca, inclusive opondo-se radicalmente ao interesse da sociedade, cria uma base teórica em que

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com o surgimento da moderna propriedade fundiária, essa classe é coagida a se reproduzir como uma classe distinta das suas raízes feudais. Isso fica claro na seguinte passagem:

Finalmente, é necessário que nesta concorrência a propriedade fundiária mostre, sob a figura do capital, a sua dominação tanto sobre a classe trabalhadora, quanto sobre os próprios proprietários, na medida em que as leis do movimento do capital os arruínem ou promovam. Assim, entra no lugar do provérbio medieval: nenhuma terra sem senhor, o provérbio moderno: o dinheiro não tem dono, no qual é exprimida a completa dominação da matéria morta sobre o homem474.

O desenvolvimento do capitalismo no campo submete a terra e a produção agrícola às leis do capital. Com efeito, o poder do dinheiro domina o poder pessoal e da tradição dos proprietários e leva os que se adequam a esse processo a uma posição cada vez mais próxima dos capitalistas, em muitas situações, fundindo-se parcialmente com eles. Essas transformações marcam a redefinição da antiga propriedade fundiária e o início da formação de uma nova configuração dos proprietários de terras, que se articulam com os setores urbanos e capital monopolista, sintonizados com o desenvolvimento industrial, além de cada vez mais atrativo ao capital portador de juros, o que leva o fechamento das terras para a produção camponesa. É esta nova classe de proprietários de terras que vai investir contra a terra dos posseiros.

3.5 A luta pela terra na frente pioneira: a resistência dos posseiros e a elaboração de seu

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