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desenvolvimento capitalista

2.3 O sentido da migração para a reprodução social do campesinato

Os camponeses que migraram para o norte Goiás não o fizeram sem tomar conhecimento mais profundo da realidade do lugar, da possibilidade real de obter uma gleba, ou seja, não largou tudo em sua antiga morada, reuniu a família e partiu carregando em sua bagagem a expectativa e incerteza do apossamento. A decisão em migrar estava ancorada em bases mais concretas: as notícias de amigos e parentes que já moravam na região há algum tempo foram responsáveis por disseminar as informações de terras passíveis de ocupação. Essa rede de comunicação é uma característica da estrutura de migração camponesa que, “em

248 MAIA, op. cit., 2008, p. 97. 249 Revista Cruzeiro, 14/04/1956.

cada etapa do deslocamento, os membros da família, os compadres, os antigos vizinhos já chegados acolhem os que vêm depois e serão acolhidos mais adiante pelos que se foram antes”250

.

Segundo Martins251, o sentido da migração para as comunidades camponesas é apreensível tendo como referência que sua relação com a terra transcende as questões locais e visíveis da realidade onde está inserida, e engloba o conjunto de experiências e trajetórias que constituem suas vidas no constante deslocamento pela terra em espaços em que ela está aberta para o apossamento. Ele se constitui como resultado das contradições do desenvolvimento capitalista252 como parte integrante para sua reprodução. Por isso, segundo Martins253, a migração é umas referências que conformam a estrutura social das populações camponesas:

A verdadeira estrutura social de referência das populações camponesas da fronteira não é a local e visível. Ela se espalha por um amplo território, num raio de centenas de quilômetros, e é uma espécie de estrutura migrante, de uma estrutura social intensamente mediada pela migração e pela ocupação, temporária, ainda que duradoura, de pontos do espaço percorrido. Os estudos sociológicos que tomam como referência uma localidade específica não apanham a realidade social mais profunda que dá sentido à existência dessa espécie de sociedade transumantes254.

Por estas questões, é importante analisar as experiências e trajetórias de vida dos posseiros para compreender o que a migração representou na busca e luta pelo acesso à terra através do apossamento. A escolha de tentar a sorte em novo destino decorre da expropriação, expectativas de melhores condições de vida para escapar de formas de explorações, como parceria, meação, arrendamento e trabalhado assalariado. A análise sobre essas diferentes formas de trabalho, e delas as relações vivenciadas pelos camponeses, permite compreender o significado e a importância que o acesso à terra representa para sua melhor condição social.

Nota-se que entre os posseiros que chegaram à região, um número expressivo era de parceiros255, acompanhados em menor proporção de posseiros que tinham sido expulsos de outros lugares e que estavam submetidos a algum sistema de arrendamento ou regimento de assalariamento, número bem reduzido. Em termos mais concretos, pode-se pegar o

250

MARTINS, op. cit., 1997, p. 176.

251

Ibid.

252 Idem. Os camponeses e a política no Brasil: As lutas sociais no campo e seu lugar no processo político.

Petrópolis- RJ. Editora Vozes, 1990, p. 16.

253

MARTINS, op. cit., 1997, p. 176.

254 Ibid., p. 176

levantamento feito por Janaína Amado256 sobre a população camponesa de Trombas e Formoso. Em seu estudo, a autora aponta que 72,2% eram parceiros antes de chegarem em Trombas, acompanhado do apossamento 20,8% e, em número insignificante, 2,2% eram formados de trabalhadores assalariados. O primeiro ponto a destacar nestes dados é que a parceria era a forma mais comum de trabalho entre os posseiros, lógica esta que pode ser estendida ao restante dos posseiros que ocuparam o norte de Goiás, acompanhados do apossamento, em menor proporção, que certamente migrou por terem sido expulsos de suas antigas áreas. E, entre esses posseiros, uma parte já havia migrado pelo menos uma vez antes de vir para a região.

Uma análise da composição social dos posseiros de Trombas e Formoso, palco de um acirrado conflito agrário desencadeado no início dos anos 50, dá a dimensão das formas de trabalho vivenciadas pelos posseiros antes de chegarem ao norte de Goiás, que, comparadas com as obras literárias da época que abordavam a vida no sertão goiano, com entrevistas e os conflitos agrários repercutidos na imprensa, permite-nos ter a dimensão de suas trajetórias e os motivos que os levavam a migrar e a construir um fundamento de direito de propriedade baseado no trabalho na terra.

Na literatura goiana produzida no período analisado, e que tem como temática o camponês, a parceria é uma experiência marcante, que perpassa a vida do trabalhador rural. As obras produzidas por Bernardo Élis257 e José Godoy Garcia258, ambos militantes do PCB, tinham como objetivo denunciar as condições de exploração e violência sofrida pelos camponeses nesse processo de expansão capitalista em Goiás. Tanto o personagem Totinha, do romance A Terra e as Carabinas, de Bernardo Élis259, quando as personagens do livro, Cirilo e Doraci, do livro O Caminho de Trombas, de José Godoy Garcia260, migram tentando se livrar da parceria e da meação, que representam, na visão dos camponeses, a condição determinante da sua miséria e exploração, enquanto a posse, em lugares abertos à ocupação, significam perspectiva de uma vida mais digna.

Nas falas de muitos posseiros, a parceria sempre é referida como uma condicionante da pobreza e exclusão. Em entrevista realizada por Amado, o posseiro da região de Trombas e Formoso, Joaquim Gonçalves dos Santos, expressa como esse sistema limitava sua autonomia no processo produtivo e era responsável por sua situação de miséria.

256

AMADO, Janaína. Eu quero ser uma pessoa: revolta camponesa e política no Brasil. In: Resgate, n. 5, Centro de Memória-Unicamp, Campinas, 1993, p. 52.

257 ÉLIS, Bernardo. A Terra e as Carabinas. Goiânia: R&F Editora, 2005. 258

GARCIA, José Godoy. O caminho de Trombas. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1966.

259 ÉLIS, Bernardo, op. cit., 2005. 260 GARCIA, José Godoy, op. cit., 1966.

O arrendo261 lá de Ceres era apertado demais. Tinha vez que nós pagava arrendo até do feijão que nós tinha no meio da roça, que nascia no meio do milho, tinha que pagar (...) o arroz melhor era sempre dele [dono da terra], o arroz (...) pior era o nosso (...) Se nós não queria plantar um verdura mas ele queria, (...) tinha que plantar, não tinha escolha262.

A parceria é um sistema que apresenta suas especificidades no tempo e no espaço e, para o nosso propósito, qual seja, observar os obstáculos que ela representava para o camponês, impulsionando a migração, analisaremos suas configurações em Goiás. A parceria caracteriza-se pelo contrato verbal entre lavrador, que não tem capital suficiente para arcar com o processo produtivo, e o proprietário, que cede a terra já em condição de ser cultivada em troca de partes da produção, normalmente a metade da colheita, a meação.

O proprietário fornece, em parte ou integralmente, o capital constante para a produção agrícola, além das matérias-primas e os instrumentos de trabalho (semente, enxada e sacaria), cobrados depois com juros. Portanto, cabia ao parceiro ou meeiro todas as despesas com a plantação, colheita e sacaria. Na parceria, o camponês “participa com parte dos meios de produção e tem sobre o processo de trabalho autonomia e controle apenas parciais”263. No entendimento de Maia264, a meação constitui um estado intermediário entre a posição de proprietário ou posseiro, em contraste com a de assalariado agrícola.

Nesse sistema, os camponeses geralmente produziam arroz, entregando a metade da produção para o fazendeiro, tendo este também a prioridade de compra do restante da colheita. O camponês podia cultivar nos arredores de sua moradia o que desejasse, sem estar sujeito à cobrança, apesar de existirem casos, como vimos anteriormente na entrevista com Joaquim Santos, de até mesmo a agricultura voltada para subsistência ser cobrada a meação.

Segundo Loureiro265, a parceria era adotada pelas seguintes razões: a) transfere os riscos do empreendimento agrícola para o camponês que, independente da variação dos preços dos produtos agrícolas e das condições naturais, a escassez e abundância de chuvas que afetam a produtividade, era obrigado a pagar o empréstimo fornecido pelo proprietário e

261 O arrendo é usado normalmente para designar o pagamento em dinheiro que o camponês efetua ao

proprietário da terra para ter o direito de explorá-la. Contudo, embora o pagamento das partes da produção destinadas ao proprietário da terra seja conceituado como parceria, em Goiás ele foi denominado de arrendamento.

262

SANTOS apud AMADO, Janaína. Eu quero ser uma pessoa: revolta camponesa e política no Brasil. In: Resgate, n. 5, Centro de Memória-Unicamp, Campinas, 1993, p. 55

263 LOUREIRO, Walderês Nunes. O Aspecto Educativo da Prática Política: A luta do Arrendo em Orizona.

[Dissertação de Mestrado]. Rio de Janeiro: Instituto de Estudos Avançados em Educação da Fundação Getúlio Vargas, 1982, p. 42.

264 MAIA, Claudio, op. cit., 2008, p. 76. 265 LOUREIRO, Walderês, op. cit., 1982.

também a meia, a metade da produção; b) favorecia o aumento da produtividade e da intensificação do trabalho por parte do parceiro e sua família, que, por terem participação no produto colhido, quanto mais produzisse maior seria o êxito de seu empreendimento. Por outro lado, o proprietário não precisava se preocupar com o controle e a fiscalização do trabalho, como seria se a produção fosse feita pelo trabalhador assalariado; c) por fim, a parceria servia como reserva de força de trabalho para o fazendeiro, tendo à disposição em fluxo contínuo de mão-de-obra barata a serviço de suas necessidades, já que muitos dos parceiros prestavam serviço como trabalhador assalariado na lida com o gado.

Poderia, ainda, o camponês ser submetido à condição de agregado, transformando-se em camarada gratuito, como relata Fernandes Sobrinho:

Era tal o grau de dependência, que o agregado, dentro de pouco tempo, transformava-se em camarada gratuito, assumindo obrigações nos serviços dos patrões. Essas relações geravam um estado de miséria tão grande, que muitos agregados ficavam sem condições de reagir, na medida em que viviam andrajosos e doentes266.

Esta realidade é representada pelo personagem central da novela escrita por Bernardo Élis, o Totinha. Este trabalhava na fazenda de Jeromão na condição de agregado e tinha uma dívida perpétua com o proprietário que o prendia à terra, restringindo-o de tentar a sorte em outros lugares. Certa feita até tentou fugir, mas foi impedido pela polícia que, a pedido de Jeromão, não o deixava partir enquanto não pagasse sua dívida267.

É importante dizer que a novela escrita por Bernardo Élis268 foi publicada no jornal do PCB em Goiás, em capítulos, atendendo às deliberações do partido para se aproximar do movimento camponês – classe que, sob a batuta dos operários, realizaria a revolução – e para denunciar as contradições do camponês no universo do trabalho. Desse modo, escolhiam situações rotineiras vivenciadas por muitos camponeses através do personagem Totinha, criando, assim, uma identificação com o personagem e, assim como ele, estimulá-los à luta, a organização em associações e Ligas contra os latifundiários. Não é por acaso que o contexto que se deu o desfecho da história seja a luta pelo arrendo em Orizona269.

A condição de vida do parceiro, meeiro, agregado, era constituída por um complexo sistema de dominação que o desestimulava a transgredir as condições de exploração a que

266 FERANDES SOBRNHO, José, op. cit., p. 36 267

ÉLIS, op. cit, 2005, p. 12.

268

Ibid.

269 Foi um conflito entre parceiros e os donos da fazenda Campo Limpo, situada no município de Orizona, que

queriam cobrar o arrendo de 50% enquanto uma lei aprovada em 1949 em Goiás, estabelecia a cobrança de no máximo 20% da produção como pagamento pela terra, provocando resistência dos camponeses apoiados pelos militantes do PCB. Depois de alguns enfrentamentos, o movimento foi reprimido e muitos dos arrendatários foram expulsos da região. Sobre a luta do arrendo ver LOUREIRO, op. cit., 1982.

estava submerso. Neste sistema vigoravam relações paternalistas que tinham como base os vínculos pessoais entre camponeses e fazendeiros, e constituía um sofisticado sistema de dominação, como bem analisou Thompson270. A parceria aparece como uma das principais categorias de trabalho no campo, vivenciadas entre os posseiros que compunham o norte de Goiás, mas, além delas, outras formas de trabalho marcavam sua realidade e os impelia de tentar a sorte em lugares onde havia a possibilidade do apossamento: o trabalho assalariado.

As condições de vida do trabalhador assalariado, era, em muitas situações, piores do que a dos arrendatários e parceiros. Os trabalhadores rurais não eram assegurados pelos direitos trabalhistas estendidos aos trabalhadores urbanos, tendo, assim, uma margem de autonomia mais reduzida no processo produtivo e submetidos a relações de exploração mais intensas. Segundo Francisco Julião271, os diaristas e os trabalhadores assalariados têm menos autonomia e rendimentos inferiores, além de serem cultural a economicamente mais pobres. Ademais, eram proibidos de se organizarem através de sindicatos, as formas de organização dos trabalhadores rurais e camponeses eram as associações e Ligas Camponesas.

As condições adversas enfrentadas pelos camponeses estavam sempre relacionadas ao despojamento da terra. É por estas condições que os camponeses que ocuparam o norte de Goiás fugiam dessas relações, não pelo mero desejo de propriedade, mas por melhores condições de reprodução social, livres da ingerência e exploração de fazendeiros que restringem sua autonomia no processo produtivo, submetendo-os a condições degradantes de trabalho.

Portanto, o deslocamento para locais de terras livres é, além de uma estratégia de sobrevivência e a de uma perspectiva de manter uma prática costumeira de trabalho familiar na terra, um elemento de resistência contra a expropriação, ao trabalhado assalariado e a busca por uma vida mais digna, interpretada indissociavelmente pelo acesso à terra livre da exploração dos grandes proprietários. Esta percepção aparece nas memórias do trabalhador rural Manuel Porfírio, citado por Amado: “Se o lavrador não tem a terra, minha amiga, pode esperar: ele vai viver a vida inteira (...) naquela pobreza, a vida inteira (...) sofrendo. Só se ele consegue a terra, ele tem lá alguma chance de melhorar” 272

.

A referência da terra como pressuposto para uma melhor condição de vida compõe a representação dos camponeses elaboradas nas obras literárias aqui trabalhadas e nos testemunhos dos posseiros entrevistados por pesquisadores que investigram os conflitos

270 THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia

das Letras, 1998, p. 64 a 70.

271 JULIÃO, Francisco. Que São as Ligas Camponesas? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962, p. 58. 272 PORFÍRIO apud AMADO, op. cit., 1993, p. 54.

fundiários em Goiás. Nelas, a compreensão de que a vida, sem ser dono de uma gleba, seria uma vida marcada pela permanente condição de sujeição, tornando-os privados de desfrutar o resultado de seu trabalho, é resultado das condições pretéritas de exploração.

A vida marcada pela exploração, coerção, privação da terra e para o apossamento nas áreas de terras livres é que vai compor as experiências dos posseiros em seu deslocamento para o norte de Goiás, forjando sua identidade como classe e sua concepção de propriedade para as glebas ocupadas.

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