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A atuação jurisdicional brasileira, em matéria de direito internacional, tem previsão na Constituição Federal de 1988, quando a carta magna estabelece a competência da justiça federal e dos tribunais superiores, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, para a aplicabilidade e apreciação das regras de direito internacional advindas de tratados e convenções ratificados pelo Brasil ou até mesmo contratos celebrados entre o país e os Estados estrangeiros, entre outros acordos, consoante dispõem os artigos 102, inciso III, alínea b; 105 inciso III, alínea a; e 109, inciso III.

Nesse sentido, urge observar que é a previsão constitucional, elencada nos direitos fundamentais, artigo 5º da Constituição Federal, responsável pela aplicabilidade dos tratados de proteção aos direitos humanos, pelo país, por meio da atividade jurisdicional e da atividade legislativa. Diante dessa realidade, importante fazer uma análise acerca da hipótese de um eventual controle de convencionalidade das leis, por meio da atividade jurisdicional constitucional brasileira, bem como da atividade jurisdicional regional, no que tange à garantia de aplicabilidade e efetividade dos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos, em especial, dos dispositivos do PIDESC, como mais uma via de ação na garantia do DHAA como um direito a ser observado no país. A observância do Direito Humano à Alimentação, no sentido de combater a fome, assim como garantir o acesso a alimentos saudáveis, com base em uma produção agroecológica advinda da agricultura familiar, deve ser pauta também na produção legislativa, em observância às regras de direitos humanos no controle de produção de gêneros alimentícios livres de agrotóxicos.

Ao ratificar o PIDESC, o país também assegurou mecanismos legais internos, com vista a atender os tratados internacionais de proteção aos direitos humanos, a partir da garantia do direito fundamental a uma alimentação adequada, o que se deu mediante a promulgação da Lei Nº 11.346, de 15 de setembro do ano de 2006, que criou o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – Sisan. Esse documento traz, no texto, diretrizes, princípios, definições e objetivos para a composição de um sistema nacional de segurança alimentar e nutricional, apresentando não só a participação do Estado, como ente obrigado, mas também prevendo a participação da sociedade civil organizada na implementação dessas políticas, no artigo 1º144.

No artigo 2º da Lei que institui o Sisan, o direito à alimentação adequada é essencial à dignidade humana, e o poder público deve adotar políticas e ações que sejam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional a toda a população145, devendo esta ser resguardada pelo poder público, principalmente por meio da produção legislativa e pela atividade jurisdicional no Brasil. Nesse sentido, importante apresentar como exemplo a decisão da Corte Interamericana de proteção aos Direitos Humanos, no caso Xákmok Kásek versus Paraguai, quando condenou o Estado do Paraguai por violar os direitos humanos dos índios, do

144 BRASIL. Lei 11.346, de 15 de setembro de 2006. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11346.htm. Acesso em: 6 mar. 2019.

acesso a terra, ao trabalho, à alimentação, à justiça, entre outros direitos. Além disso, determinou um prazo de 02 anos para que o país fizesse adequações no direito interno, por meio da legislação, das atividades administrativas, e judiciais ou de qualquer outra natureza, com fins de resguardar os direitos dos índios a terra, a sua cultura ancestral146. Esse é um exemplo de controle de convencionalidade realizado pela Corte, como mais uma via de acesso à garantia ao DHAA, por meio da justicialidade desse direito ao mínimo existencial no plano internacional.

O controle de convencionalidade, segundo Valério Mazzuoli, é uma medida possível por meio da Emenda Constitucional Nº 45/2004 que acrescentou o parágrafo terceiro ao artigo 5º da Constituição Federal. Assim, à medida que os tratados de direitos humanos são materialmente constitucionais (artigo 5º, parágrafo 2º), ou são material e formalmente constitucionais (artigo 5º, parágrafo 3º), é lícito que, além do controle de constitucionalidade, deva ainda ser possível um controle de convencionalidade das leis para que haja uma adequação das normas de direito interno às de direito internacional de proteção aos direitos humanos, ratificadas e em vigor no Brasil147.

Nesse sentido, importante pontuar a inadequação da Medida Provisória Nº 870/2019, que revogou os dispositivos da Lei N° 11.346/2006, quando retirou as atribuições da política e

146 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso da Comunidade Indígena Xákmok Kásek

versus Paraguai. Disponível em:

http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/04/25ecf2789dfd641e1ec8f520762ac220.pdf. Acesso em: 7 jun. 2019. A Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado em função da violação aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais que se relacionam, também à garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada comunidade indígena Xákmok Kásek versus Paraguai. A sentença foi proferida em 24 de agosto do ano de 2010, condenando o Estado do Paraguai pela responsabilidade internacional, ante violação aos direitos humanos, em não ter resguardado o direito, a vida, a propriedade ancestral e a proteção judicial da comunidade indígena Xákmok Kásek, violando os dispositivos dos artigos 4º, 21 e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A comunidade estava litigando em um processo de reinvindicação de terras desde o ano de 1990, até o ano de 2009, quando a Comissão Interamericana, mesmo após notificação do Estado para tomar as providências em reparar os peticionantes pelas violações a todos os direitos humanos, não tomou nenhuma medida. Foi então que a Comissão submeteu o presente caso à jurisdição da Corte Interamericana, tendo a Corte condenado o Estado do Paraguai à devolução de 10.700 hectares de terras, afora outras reparações de cunho material e imaterial. A privações sofridas pela comunidade indígena, comprometeram o direito a uma vida digna, restringindo o direito à propriedade da terra ancestral, comprometendo o direito à alimentação, à saúde, ao acesso à água potável, privações que inclusive, causaram algumas mortes de seus membros. Na Sentença, a Corte aborda a negligência do Estado quanto a sua responsabilidade internacional, comprometendo vários direitos humanos da comunidade, primeiro a ausência do acesso a terra ancestral, ausência do acesso à água potável, ausência do acesso à alimentação, dentre outros. Em trechos da sentença, tais privações são constatadas. Outro aspecto primordial das decisões da Corte Interamericana de Proteção aos Direitos Humanos, se dá acerca do controle de convencionalidade que é feito pela atividade jurisdicional”. [...]. À luz das conclusões do Capítulo VI da presente Sentença, a Corte considera que é necessário que o Estado garanta o gozo efetivo dos direitos reconhecidos pela Convenção Americana, por sua Constituição Nacional e sua legislação [...]”.

147 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das Leis. 2. ed. São Paulo:

do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional de competência do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que foram reestabelecidas por pressão da sociedade civil organizada quando da transformação da referida MP em lei. Nessa mesma situação de inadequação das normas internas ao Direito Humano à Alimentação Adequada se encontra o Projeto de Lei Nº 6.299/2002, conhecido como PL do veneno, que dispõe sobre utilização, flexibilização do uso de agrotóxicos na produção agrícola, uma vez que comprometem a vida humana, assim como a terra e os demais recursos naturais, de forma indiscriminada, inclusive com a utilização de agentes que são proibidos em alguns países. Com isso, compromete-se a segurança alimentar e nutricional do país inteiro, indo de encontro aos objetivos e às obrigações instituídos pela agenda 2030 da ONU, da qual o Brasil é um dos países participantes. A inconstitucionalidade também está sendo debatida quanto à EC Nº 95/2016, que trata dos cortes nos gastos orçamentários por meio de investimentos em educação e saúde pelo prazo de 20 anos, consoante abordado.

Nesse sentido, o controle de convencionalidade, segundo Mazzuoli, seria também uma forma de impedir que o parlamento local promulgue leis que violem, mesmo abstratamente, direitos humanos previstos em tratados internacionais já ratificados pelo Estado148. Funcionaria como mais uma via de acesso para que, por meio da justiciabilidade, o DHAA fosse preservado, a partir do controle de convencionalidade das leis, que pode ser efetuado pela Corte Constitucional, bem como pela Corte Interamericana.

Esse DHAA vai ser preservado quando o país, por meio da atividade legislativa, implementar políticas visando respeitar, proteger, promover e prover o direito à alimentação, não só combatendo a fome endêmica mas também efetuando políticas públicas com fins de resguardar o acesso a uma alimentação saudável no país, preservando e construindo a segurança alimentar e nutricional no Brasil, no que tange à acessibilidade dos alimentos. Essa via de acesso da justicialidade na garantia do DHAA com base na produção legislativa – combatendo a fome endêmica, assim como o resguardo ao desenvolvimento sustentável – está sendo comprometida devido à atividade legislativa do parlamento brasileiro.

A segurança jurídica seria preservada a partir do momento em que o legislativo não utilizasse a técnica de formação da norma jurídica em total discordância com os dispositivos de proteção aos direitos humanos que estejam vigorando no Brasil, deixando de aplicar a lei em conflito com as normas de proteção aos direitos humanos, com fins de não acarretar

responsabilidades internacionais imputadas ao Estado em função do processo legislativo inadequado149. Percebe-se que o Brasil, mesmo sendo signatário de normas de proteção aos direitos humanos, por meio de tratados internacionais, viola os direitos devido ao processo legislativo efetuado pelo próprio Estado. Constata-se, pelo que foi demonstrado, a total inadequação às normas que deveriam garantir o DHAA.

Nesse sentido, as hipóteses estudadas quanto à justiciabilidade, com base no diálogo a fim de resguardar o Direito Humano à Alimentação Adequada, seu acesso e qualidade são de extrema importância social e jurídica na construção de uma jurisprudência, nacional e internacional, objetivando a proteção a esse direito de forma sustentável, principalmente neste país, com uma realidade de grandes diferenças sociais que necessitam de políticas públicas, por parte do Estado, com vias de resguardar o DHAA. As possibilidades de garantia desse direito devem atender a perspectiva de que os direitos humanos, como salvaguardados pela Constituição, pelos tratados e pelas convenções internacionais, dialogam com uma perspectiva global de proteção e influências.

Assim, consoante Thiago Moreira, reconhece-se a importância da formação de um Direito Constitucional Comum Latino Americano, por meio da atividade jurisdicional, objetivando a proteção aos direitos sociais. Essa construção pode ser analisada com base nas semelhanças regionais, como os costumes, a língua, as desigualdades sociais, entre outros fatores. Assim, a formação dessa proteção jurídica se dará mediante a influência das normas internacionais nas Constituições, bem como na constitucionalização do direito internacional150. Diante dos argumentos, percebe-se que a construção da proteção aos direitos humanos parte do reconhecimento de que estes têm o mesmo significado no plano interno ou internacional e a atividade jurisdicional será significativa quanto a essa formação. A atividade jurisdicional na formação de uma constitucionalização dos direitos sociais, mediante esse sistema de proteção comum, na América Latina, tem também a via do controle de convencionalidade das leis internas de forma a garantir a evolução da unificação de proteção aos direitos sociais no âmbito regional.

149 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das Leis. 2. ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2011. p. 77

150 MOREIRA, Thiago Oliveira. A possível formação de um Direito Constitucional Comum na América Latina e

os Direitos Humanos Sociais. In: MOREIRA, Thiago Oliveira; OLIVEIRA, Diogo Pignataro de; XAVIER, Yanko Marcius de Alencar (org.). Direito internacional na contemporaneidade: estudo em comemoração aos 17 anos da SOI. 1. ed. Brasília: Conselho Federal da OAB, v. 1, 2018. p. 151-152.

3.3 DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA E A RELAÇÃO COM OUTROS