• Nenhum resultado encontrado

2.3 DIREITO SOCIAL A ALIMENTAÇÃO E ENFRENTAMENTO À

2.3.1 Da reserva do possível

Os direitos fundamentais sociais devem ser resguardados pelo Estado, por meio de políticas públicas, a exemplo das já apresentadas, como a transferência de renda, pois são urgentes. Isso posto, esses direitos devem ser concretizados como prioridade, não tendo como justificativa de ausência por parte do Estado a reserva do possível. Esse termo – a reserva do possível – tem a sua origem na Alemanha, por volta dos anos de 1970, trazendo uma noção de que as prestações dos direitos sociais pelo Estado estariam vinculadas às reservas de capacidade financeira dos cofres públicos. Assim, a disponibilidade de recursos por parte do Estado destinados aos direitos sociais estaria adstrita à discricionariedade do poder público80.

Na análise da reserva do possível de limite orçamentário do ente público, precisa também ser verificado que o direito social à alimentação adequada, como a garantia ao mínimo existencial, é um direito fundamental e urgente que deve ser efetivamente resguardado para grupos mais vulneráveis de uma sociedade. Em função disso, faz-se necessária a tutela jurisdicional para apreciar essa administração orçamentária com fins de não comprometer o direito à alimentação adequada aos níveis mais carentes da nossa população brasileira, para que recursos sejam destinados à concretização e à efetividade desse direito social tão fundamental e ensejador dos outros direitos.

Ingo Sarlet (2009) adverte que o conteúdo judicialmente exigível dos direitos sociais, como direitos a prestações positivas e de responsabilidade do Estado, não poderá estar limitado à garantia do mínimo existencial, pois há de se reconhecer como direitos subjetivos definitivos a prestações. Por conseguinte, são direitos exigíveis, não só pela via administrativa como também pela via jurisdicional. Assim, as objeções atreladas à reserva do possível não poderão prevalecer. Portanto, serão sempre exigíveis providências que assegurem os direitos sociais que

80 SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos sociais como direitos fundamentais: seu conteúdo, eficácia e efetividade

no atual marco jurídico-constitucional brasileiro. In: LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang (coord.). Direitos Fundamentais e estado constitucional: Estudos em homenagem a J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra editora, 2009. p. 237.

resguardem a vida e a dignidade como prioridades no direcionamento dos recursos financeiros por parte do ente público81.

Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins asseveram que a reserva do possível não poderá ser utilizada como forma de justificar a limitação da aplicabilidade imediata dos direitos prestacionais por parte do Estado, pois o ente poderá utilizar medidas alternativas com fins de: concretizar as prestações assistenciais, mediante a reorganização das prioridades orçamentárias, a racionalização das despesas, a aquisição de empréstimos com outros países objetivando capitalização; bem como de aumentar a arrecadação tributária82. O Estado pode se reorganizar economicamente e, por consequência, os direitos prestacionais de assistência aos grupos vulneráveis serão concretizados. Nesse sentido, o judiciário poderia também declarar a inconstitucionalidade das opções orçamentárias do Estado, bem como das políticas públicas dos poderes. Para tanto, devem ser analisados critérios de verificação quanto à correta prioridade na distribuição dos recursos. Assim, as decisões judiciais que declaram a inconstitucionalidade das omissões estatais na concretização dos direitos sociais devem analisar, em cada caso, a “prioridade”, a “fundamentalidade” ou a “essencialidade” dos direitos sociais em questão83.

O direito à alimentação é um direito essencial fundamental e que deve ser considerado prioridade no que tange à organização orçamentária do poder público. Nessa perspectiva, as prestações devem dar suporte, por meio das políticas públicas, para que as pessoas hipossuficientes tenham essa garantia. Com isso, deve ser observado que o Direito Humano à Alimentação Adequada resguarda o mínimo existencial ao ser humano, garante o direito fundamental à alimentação, que não poderá deixar de ser prestada como obrigação do Estado para os grupos mais vulneráveis sob a justificativa da “reserva do possível”, posto ser um direito humano necessário que enseja a garantia do exercício dos outros direitos fundamentais, como, por exemplo, as garantias do direito à liberdade.

Em função dessa análise, o DHAA pode ser considerado como o direito ao mínimo existencial, inserido no bloco dos direitos fundamentais. Na concretização dos direitos sociais,

81 SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos sociais como direitos fundamentais: seu conteúdo, eficácia e efetividade

no atual marco jurídico-constitucional brasileiro. In: LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang (coord.). Direitos Fundamentais e estado constitucional: Estudos em homenagem a J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra editora, 2009. p. 249-250.

82 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 3. ed. rev., atual. e

ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 99.

direitos considerados subjetivos pela Constituição Federal democrática de 1988, o princípio da reserva do possível deve dialogar com as reais necessidades da manutenção de um Estado efetivamente democrático de direitos, estendendo os direitos sociais a todos os indivíduos, necessariamente os considerados mais vulneráveis.

Ingo Sarlet também aborda que, conectado à reserva do possível, com a distribuição das competências no sistema estatal, de uma maneira geral, os deveres prestacionais que estão vinculados aos fundamentais se alinham com o princípio da subsidiariedade, sendo este um espaço de liberdade do indivíduo, trazendo-lhe também uma autorresponsabilidade84. Ademais, o princípio da subsidiariedade analisado com a reserva do possível deve se adequar aos segmentos sociais que demandam essas prestações positivas do Estado, que vão, por meio de políticas públicas, concretizar o Direito Humano a uma Alimentação Adequada, posto serem esses segmentos vulneráveis em função da ausência de liberdade com fins de ter acesso a esse direito, já que se encontram numa situação de privação de recursos.

Ingo Sarlet, citando Jorge Reis Novaes na obra Princípios Constitucionais

Estruturantes da República Portuguesa, aponta que a reserva do possível – importa acrescentar,

antes de atuar como barreira intransponível à efetivação dos direitos fundamentais –, deve viger como um mandado de otimização da eficácia e efetividade dos direitos fundamentais, impondo ao Estado o dever fundamental de promover as condições ótimas de prestação estatal, preservando os níveis de realização atingidos e reconhecendo a necessidade de proibição ao retrocesso85. Novaes entende que a concretização dos direitos sociais não deverá passar por um processo de retrocesso. Essa garantia do direito à alimentação adequada, buscando retirar os grupos mais vulneráveis da situação de insegurança alimentar, é uma obrigação do Estado brasileiro que deverá manter os níveis de assistência, não comprometendo uma realidade de avanços sociais, quando o país, por meio de investimentos e de políticas públicas, retirou a população do mapa da fome, em meio a uma perspectiva mundial.

Entretanto, preocupante encontra-se a situação atual do Brasil, com o comprometimento das políticas sociais destinadas aos mais vulneráveis, considerando que havia programas sociais de inclusão que vinham se desenvolvendo, buscando salvaguardar a

84 SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos sociais como direitos fundamentais: seu conteúdo, eficácia e efetividade

no atual marco jurídico-constitucional brasileiro. In: LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang (coord.). Direitos Fundamentais e estado constitucional: Estudos em homenagem a J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra editora, 2009. p. 247-248.

liberdade dos grupos que se encontram em situação de vulnerabilidade social e que agora se encontram em uma situação de estagnação e retração quanto à continuidade. Diante desse quadro também de crise econômica, o Brasil pode voltar à triste realidade do retorno ao mapa da fome em função do aumento das taxas de desemprego, de trabalho informal e de pobreza extrema.

Uma vida digna é preservada em todas as esferas, de liberdades individuais a liberdades institucionais, de direitos sociais. Inserido nesses direitos fundamentais está o direito à liberdade, que vai se concretizar de fato quando houver o acesso a uma alimentação adequada, com um nível de alimentação básica acompanhado de um teor calórico mínimo, buscando salvaguardar a qualidade de vida e o desenvolvimento das pessoas, individualmente ou em grupos.