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5.2 O CORPO ADOLESCENTE: USOS E SIGNIFICADOS

5.2.3 Corpo adolescente, cuidados e saúde

Cuidado de si e o lugar da boa forma como indicador de saúde

Ao buscarmos desvelar como garotos adolescentes entendem o cuidado de si, para empregarmos a terminologia foucaultiana, (FOUCAULT, 1985) pudemos observar que a referência aos cuidados com a higiene corporal, relacionada à questão da aparência, encontra-se presente em alguns discursos, muito embora não reduzida à mesma, mas envolvendo a própria noção de saúde incorporada por eles. Tal noção, expressa na ampla concepção de “boa forma”, apresenta-se não apenas como valor estético, conforme observamos em item anterior, mas enquanto atividade física. Assim, as falas de Wagner, Agenor e Leandro apresentam a boa forma em seu duplo

2 A autora se refere à abordagem de Bourdieu constante na obra A Dominação Masculina, Rio de janeiro, Bertrand Brasil, 1999.

significado, ou seja, expressando quer o cuidado com a aparência quer o cuidado com a saúde:

- Que cuidados você acha que são importantes de ter com o corpo? - Ah, tomar banho, saúde, né, cuidados médicos, pra ver se não tem doenças, ah, se cuidar, assim, fazer uma atividade física, é sempre bom. E ter o corpo sadio, cuidado.

- E você tem esses cuidados? Você considera que tem?

- Então, eu gostaria de fazer academia, mas não dá tempo…

(Wagner, 16 anos, aprendiz, 1º. EM, noturno)

- É, a parte de saúde… é, manter sempre a boa forma né […]

- E o que é preciso fazer pra manter a boa forma, que você acha?

- Ah, sempre praticar algum esporte né, também, e… também não ficar

muito parado, né.

(Agenor, 16 anos, autônomo, 1º. EM, matutino)

- Ah, ultimamente assim, tá sempre procurando um médico, pra saber…

E se cuidar, mais, assim, sabe. Praticar esporte… que nem, hoje em dia, a faixa de obesidade tá bem alta. Mais é isso assim, pra homens, na minha idade, tá sempre praticando esporte, porque engorda muito fácil [...] porque eu, assim, com 15, com 16 anos eu tava fazendo

academia… aí eu sentia que minha massa tava aumentando, mas, tipo

eu ia no médico, o médico falava que era massa muscular. Realmente

eu tava assim, mais forte…

(Leandro, 18 anos, estagiário, EM completo)

Os discursos de Wagner, Agenor e Leandro apontam para a relação entre o corpo “saudável” e corpo dotado de boa forma, discutida por Goldenberg e Ramos (2002), que atentam para o fato de que o corpo musculoso é comumente chamado “sarado”, termo esse que, em associação a uma ideia de doença, é utilizado para aquele que está curado de seus males. Os autores buscam problematizar o que consideram um verdadeiro “horror” atual à gordura corporal, que pode ser relacionado, segundo Rodrigues (1979) ao temor à própria doença, enquanto uma categoria intermediária entre a condição de vida e a condição de morte. Desse modo, para os (as) adeptos (as) do culto a beleza e à boa forma, a busca pelo corpo sarado funcionaria como uma luta contra a morte simbólica imposta àqueles que não se disciplinam para enquadrar seus corpos aos padrões exigidos. Tal concepção de corpo vai ao encontro da definição proposta por Birman (1991), que além de ser determinado pelo universalismo das coordenadas biológicas, o corpo é, antes, uma realidade simbólica.

Cuidado de si e a ideia de prevenção em saúde

Embora nos discursos acima relatados possa se considerar implícita a ideia de prevenção em termos de uma ampla concepção de boa forma, como expressão de um corpo saudável, a noção de prevenção, propriamente dita, encontra-se mais evidente em algumas outras falas, como de Agenor, Marcelo e Lucas, descritos abaixo:

- Que cuidados você acha que os jovens deveriam ter com o corpo? - …Ah, manter a boa forma né…. Ah, pra mim é, porque, minha mãe tem diabete, então em casa, não tem muita carne, porque, no supermercado a gente compra mais é, legumes, essas coisas, sabe? A

gente tem uma boa alimentação, até…

- E você tem preocupação com isso, com essa história de diabetes?

- Eu tenho, porque é tendência né […]

- Você tem uma preocupação maior com isso… procura se cuidar?

- É… não é me cuidar, sabe, é, tipo prevenir, algumas coisas… Só que eu como bastante doce, às vezes, assim, é porque eu gosto.

(Agenor, 16 anos, autônomo, 1º. EM, matutino) - E em relação à saúde?

- E em relação à saúde, eu acho lavar sempre todas as parte do corpo,

assim, ó. Sem esquecer nenhuma… É! Porque quando você não lava…

bactéria pode acumular, né, essa coisas, se você não escovar dente… De usar camisinha... que eu posso falar mais? Acho que é isso.

- …E, você considera que você tem esses cuidados? - Tenho! Todos.

(Marcelo, 19 anos, 2º. EM, supletivo à distância)

- Ah, higiene, né, tipo… sei lá… Ah, tem muita coisa, deixa eu ver,

tomar banho, escovar os dentes, direito… ah, não ser relaxado, sabe…

ah, e falar de cuidado com o corpo pode ser de usar a camisinha também, né, que é um cuidado com o corpo, também, pra não pegar doença. Então é esses cuidados.

(Lucas, 17 anos, 2º. EM, Integral)

A ideia de cuidado de si em referência a problemas de saúde surge em alguns discursos, quer em relação à prevenção da obesidade, conforme a fala de Leandro apresentada anteriormente, quer a prevenção a determinados tipos de enfermidades, como o caso do Diabetes Mellitus, para Agenor, relacionada à importância da prevenção a uma enfermidade, por ser hereditária. Também presente, a título de menção, a importância do uso da camisinha para a prevenção das DST/Aids, que surge nos discursos de Marcelo e Lucas, descortinando uma ideia de prevenção presente nos discursos dos jovens conforme poderemos observar no item 5.4.3, em que a questão será abordada de maneira específica.

Cuidado de si e o uso de substâncias psicoativas no universo adolescente

Ao indagarmos sobre a questão dos cuidados com o corpo, alguns garotos entrevistados enfatizam a questão do uso de substâncias psicoativas como sendo aspecto importante e estreitamente relacionado à questão do corpo e à saúde.

Enquanto, em alguns relatos, os garotos referem o uso de álcool e outras drogas como uma das práticas que consideram preocupante no universo adolescente, Alexandre, Pedro Paulo e Gabriel não apenas mencionam a questão como importante em relação ao corpo, mas revelam igualmente seu uso. Dentre as substâncias utilizadas são mencionadas o álcool, o fumo (tabaco) bem como a maconha e a cocaína, como podemos observar nos relatos abaixo:

- Ah, muitos né? [cuidado importantes com o corpo] Sei lá, tomar

banho todo dia. É, mano! Mas… drogas, álcool também é droga, né.

Tudo faz mal pro corpo.

- Sei. Mas que cuidados em relação a isso? - Ah, não fazer, né, essas coisas.

- […] E, desses que você citou, você acha que você tem esses cuidados? - Alguns não… Ah, eu fumo um beck [maconha], bebo, fumo cigarro. Eu já não tô tomando os cuidados necessários, né… É foda […] Ás

vezes, me preocupo… Começo já a tossir, já, puta, meu, será que eu já

tô com tuberculose? Mas nem fumei tanto assim! É, mano… é sério, ô!

- […] Mas, é só nessas horas que você se preocupa, então?

- É, só. Quando tá tudo bem, nem…

(Alexandre, 18 anos, autônomo, EM incompleto)

No discurso de Alexandre é relatado o uso de algumas substâncias já mencionadas, referindo, no entanto, que estas não somente fazem mal para o corpo, mas igualmente para a saúde, preocupação esta manifesta notadamente, em relação ao receio pela tuberculose.

Embora em seu discurso Pedro Paulo, 19 anos, refira sua preocupação em relação ao uso de drogas, por jovens adolescentes e crianças, como prática recorrente, ao referir-se ao seu próprio caso revela se encontrar inscrito no mesmo processo:

- Ó… aqui os moleque gosta muito desses negócio de ficar correndo atrás de droga […] Fuma, fuma um… Eu já me cuido, já, eu faço exercício, ergo uns peso de vez em quando, tô tranquilo. Não tô

fumando. […] Cigarro de maconha, eu tô tentando manerar um pouco... (risos) Tô meio devagar, mas, graças a Deus o cigarro eu tô parando mesmo. Parando não, parei, né, que faz dias que eu não fumo.

– […] Você fuma desde quando?

- Desde os 14. Mas, assim, não sô viciado. Compro uma carteira, fumo, aí quando acaba eu não compro, fico tranquilo. É de vez em quando. - E você acha que é um cuidado, uma preocupação com teu corpo?

- Não, aí não é preocupação… não. Tô fumando… ah sei lá, mano. Às

vezes eu penso, cara, que que eu tô fazendo, não era pra mim fazer, aí

eu vou e faço. Aí eu penso, né... Depois a gente se arrepende… (risos)

(Pedro Paulo, 19 anos, autônomo, EF incompleto)

Pedro Paulo relata fumar cigarro e maconha desde os 14 anos, sendo que em relação ao primeiro manifesta, no momento da entrevista, a intenção de parar, embora não relacione tal intenção a algum cuidado específico com o corpo ou a saúde, a despeito da seguinte afirmação “não era pra mim fazer, aí eu vou e faço. Aí eu penso, né... Depois a gente se arrepende”.

No relato de Gabriel, com seus 15 anos, podemos observar que o uso de substâncias psicoativas pode ter seu início na infância, fazendo com que adolescentes, ainda em tenra idade, já possuam uma ampla experiência no uso delas. Em seu discurso, nosso jovem entrevistado apresenta sua preocupação com a questão do uso excessivo de tais substâncias, relacionada ao fato de emagrecer:

- eu era gordo, emagreci pra caraio. Ó aqui ó! Ó jeito que tá que tá…

[mostra a bermuda, muito larga]... isso aqui ficava mó apertado pra

mim, ô! […] Eu emagreci, entendeu… não porque eu quis, pelo que eu

fiz. Aí eu emagreci muito rápido, só que agora, se Deus quiser, até o

mês que vem eu tô bom […]

- Mas por que você acha que emagreceu?

- Ah… tem umas coisa que você faz pra você emagrecer. Não é? …aí

comecei a cheirar muito. Aí… me estraguei, né, fiquei muito magro, aí

eu parei. Tô fumando só maconha agora. (Gabriel, 15 anos, 1º. EM, Manhã)

Embora em seu relato Gabriel atribua o referido emagrecimento ao uso excessivo de cocaína, substância que menciona ter deixado o uso, o que buscou fazer, conforme ilustra seu relato abaixo, foi uma redução na frequência do uso da cocaína, ao passo que manteve a utilização da maconha:

-mas aí, de cheirar você parou de vez?

- Parei. Não, de vez em quando, assim… parar, parar, não consegui

falei que não. Tô bem, entendeu? Eu sei me controlar, tem dia que dá uma vontade, eu vou lá, pego um pino e só.

(Gabriel, 15 anos, 1º. EM, Manhã)

Nesse sentido, podemos notar que o comportamento de Gabriel vai ao encontro da ideia presente na Política de Redução de Danos (RD) do Ministério da Saúde. Segundo Queiroz (2001, p.15) “as ações de redução de danos constituem um conjunto de medidas de saúde pública voltadas a minimizar as consequências adversas do uso de drogas. O princípio fundamental que as orienta é o respeito à liberdade de escolha, à medida que os estudos e a experiência dos serviços demonstram que muitos usuários, por vezes, não conseguem ou não querem deixar de usar drogas e, mesmo assim, precisam ter os riscos decorrentes do seu uso minimizados”. Na sequência do relato de Gabriel, podemos observar como a questão do acesso a substâncias psicoativas pode se dar em tenra idade:

- E desde quando você começou?

- 10 anos. Comecei trabalhar, comecei ganhar dinheiro, conhecer o

mundo… quando eu era pequenininho eu fumava só cigarro, dos 07 até

os 10 […] Minha mãe descobriu e tudo. Mas agora ela aceita. Eu falei

pra ela, melhor eu tá fumando maconha que tá cherando, usando pedra

aí, ó… num tô usando na frente dos meus irmãos, tô dando dinheiro

dentro de casa, é pouco, mas aí o que eu consigo eu dou pra ela […] Eu

cresci do lado o meu tio que cheirava pra caralho! Quantas vezes vi meu tio cheirando já… Meu tio sumia, catava o pagamento inteiro,

gastava tudo, tuuudo[…]

- E mesmo assim você entrou nessa?

- Não mano, não é assim, eu comecei,… com maconha, pá… aí, um dia,

deu um negócio na minha cabeça, falei, não, acho que eu vou experimentar o pó hoje, pra ver qual que é a brisa [...] Aí sabe, foi uma brisa assim, diferente. Da hora [...] aí comecei a cherar o mês inteiro. Cherei todos os dias do mês. Fiquei virado, assim. Seco. O olho lá no fundo. Aí me olhei no espelho, falei, peraí velho, vamo pensar né, as consequências. Falei, não, vamo usar socialmente. Suave. Consegui me controlar […] Não é fácil parar, mas, se a pessoa quiser parar ela para. Quando ela quiser. É difícil, é, mas se a pessoa tiver força de

vontade e garra, ela consegue… Tudo nessa vida é assim…

(Gabriel, 15 anos, 1º. EM, Manhã)

O emprego precoce das substâncias psicoativas, mencionadas por Gabriel revela e aponta para o fato de que o cigarro encontra espaço como prática de fácil acesso à infância, por este se constituir em uma substância amplamente aceita em nossa sociedade, sem restrições ao acesso. Tal fato abre possibilidades para a busca de experimentações outras, tão características da adolescência, como é o caso do uso

da maconha e da cocaína, mencionado não apenas por Gabriel, mas, igualmente por Pedro Paulo, conforme já observado.

No entanto, Marcelo apresenta, em sua fala, um contraponto quanto aos significados atribuídos ao uso de substâncias e à relação do usuário com estas:

- Eu tenho crise de pânico, sabe como é que é? Grave demais, eu começo a tremer, com falta de ar, achando que eu vou morrer, assim, todo dia eu tenho, quase. Então eu sou muito preocupado [com

doenças]. Fui num psiquiatra. Sei lá… um fala que é muita maconha, o

outro fala que… Aí você fala, ah, mano, mas eu quero fumar maconha,

fumar maconha me faz bem! O cara, não, não. Beleza então, tchau,

falou. Aí você tem que achar outro… Eles tentam, né, botar a culpa em

você. Eu antes de fumar maconha eu já tinha essas coisas. Eu sempre fui desesperado com doença. Me cortava achava que ia pegar tétano.

Então, com doença sexualmente transmissível, eu sou…

- E faz quanto tempo que você fuma maconha?

- 5 anos... Umas 5 vezes por dia. Todo dia […] eu sou viciado que eu nunca vi igual!

(Marcelo, 19 anos, 2º. EM, supletivo à distância)

Enquanto nas narrativas apresentadas anteriormente, os rapazes expressam o reconhecimento de substâncias psicoativas como um malefício para o corpo e a saúde, bem como a busca por um uso controlado ou a abstinência, Marcelo apresenta em seu discurso o uso da maconha reconhecido como algo que lhe faz bem, uso ao qual não manifesta desejo de deixar.

Em relação à abordagem do corpo e do cuidado de si, podemos observar o quanto a questão das substâncias psicoativas se apresenta no discurso dos jovens como algo que, embora prazeroso, requer o cuidado de si, como algo priorizado não somente pelo usuários mas problematizado por alguns dos não usuários, ou que não manifestaram esse tipo de uso, fato que aponta para a questão desse tipo de atitude se caracterizar, não somente entre adolescente, mas inclusive crianças, como um problema de saúde que deve ser contemplado pelas políticas de saúde pública.