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2.CRENÇA E/NA METAFÍSICA: POSSIBILIDADES HOJE?

Fora mencionado a crença no metafísico. Esta menção por si só já assusta por parecer conter algum tipo de obscurantismo místico. Mas o fato é que a afirmação da metafísica só pode se dar enquanto crença, já que por definição algo como o metafísico puro seria indefinível e incognoscível. A epistemologia clássica traz a crença como aspecto fundamental do conhecimento, mas Thomas Kuhn trouxe para o contexto da filosofia da ciência do século XX a necessidade sobre a reflexão a respeito do papel de um tipo de dogma em todo e qualquer discurso, tornando o componente fideístico uma necessidade lógica.

Kuhn argumenta que a própria hipótese é um dado metafísico, já que é uma tese que ainda não é. É a crença em sua existência que motiva a própria pesquisa científica20. Pelo contrário, também é o desconforto, a sensação de oposição a

uma crença previamente tida que afasta o sujeito de uma hipótese proposta. Obras musicais canonizadas se sedimentam como paradigma por uma crença coletiva, uma correspondência entre o discurso feito e a crença tida. Kuhn acres- centa que a obra artística se beneficia do fato de que não exprime contradições, dada a natureza de seu significado não abarcar asserções propositivas21 e, assim,

pode constituir um cânone paradigmático mais extenso. O que varia de peça para peça, de interpretação para interpretação é justamente o conjunto de cren- ças que sustentam e motivam cada uma delas.

Nesse sentido, a crença no metafísico é necessária para afirmar que há algo como significado. Em um pensamento antifundacionista, seja qual for, essa questão torna-se absolutamente irrelevante, pois existe a negação de que o co- nhecimento necessita de uma crença prévia para se dar, simplesmente porque seu ceticismo questiona a própria realidade do conhecimento. Projetos antifun- dacionistas se colocam, assim, mais negativamente do que propositivamente, já

20 KUHN, 2012, p. 19. 21 Ibid., p. 25.

que proposições seriam contradições epistemológicas22.

Duas questões básicas se colocam mais claramente, então, no que se refere ao metafísico e sua implicação para o significado musical: a questão da crença e a própria possibilidade do significado. Quanto à primeira questão, o ponto focal é que somente a crença pode sustentar a afirmação ou a negação do significado musical, dado sua natureza. Desse modo, qualquer concepção criativa ou inter- pretativa irá exprimir mais ou menos explicitamente seu pressuposto a respeito do significado, mas necessariamente o trará consigo.

A possibilidade da crença enquanto vínculo, enquanto relação e conexão a um conhecimento subsidiário, tem sido discutida amplamente e assumiu uma forma mais consolidada nas reflexões do cientista que influenciou as proposições de Thomas Kuhn, Michael Polanyi, indicado por três vezes ao Prêmio Nobel de química e física. Polanyi parte do princípio que todo co- nhecimento é pessoal. A revolução copernicana foi do geocentrismo ao he- liocentrismo, mas ambas as cosmologias continuaram centradas no mesmo ponto de referência: o homem. O antropocentrismo muda seus referenciais afetivos, mas permanece com o ente humano como constituidor do conheci- mento. Isso porque o que altera o rumo de uma concepção de mundo não é a lógica concretizada em uma proposição, mas algo que antecede isso, um afe- to23. As paixões estão no cerne da constituição do significado, antes mesmo

que se formatem proposicionalmente. É aqui que passa a ser possível sugerir e relembrar o que Aristóteles já dizia: logos, pathos e ethos diferem em fun- ção, mas não em natureza. Os três componentes caminham conjuntamente, mesmo embora cada um tenha seu papel próprio naquilo que Polanyi diz ser o “ato de conhecer”24. O próprio conhecimento ganha o status de ação; não

como uma coisa ou um bem, mas como algo feito por alguém. Esse dado afetivo não se define simplesmente como um preconceito, mas como uma intuição, um reflexo. Polanyi define:

A descoberta científica revela novos conhecimentos, mas a nova visão que a acompanha não é conhecimento. É menos do que o conhecimento, pois é uma suposição; Mas é mais do que conhecimento, pois é uma presciência de coisas ainda desconhecidas e talvez, no momento, inconcebíveis. (POLANYI, 1962, p. 143)

22 GOMES, 2000, p. 1. 23 POLANYI, 1962, p. 1. 24 Ibid. p. 17.

Este “conhecimento tácito”25, como é por ele definido, longe de desabonar

o trabalho científico, o enriquece. A crença em algo ainda improvável sob o ponto de vista lógico é a energia que possibilita a própria lógica. O conhe- cimento tácito é o conjunto de dados metafísicos, cridos, que sustentam o próprio saber26. E como ainda não materializado só assim pode ser alcançado,

como crença. A crença pode ser justificada e, como tal, formalizada, mas per- manecerá ainda com os traços da crença que o originou, o “coeficiente táci- to”27. No significado, Polanyi define adequadamente ao próprio termo, existe

uma ação de significar, um significado feito por um autor. Novamente vem à tona a realidade de que a crença é presente tanto quanto o é o significado.

A crença e o significado ou a crença no significado habitam a realidade simples. Não há algo, na realidade, como um significado musical. O que há é um significado feito na música. Polanyi expõe sua visão de como uma noção de significado inconsistente dá lugar a um tipo de análise destrutiva da reali- dade, usando inclusive a música como exemplo, neste longo, mas rico trecho: O fato de competências não poderem ser plenamente contabilizadas em fun- ção de suas particularidades pode conduzir a sérias dificuldades para avaliar se uma performance é genuinamente hábil ou não. A extensa controvérsia sobre o “toque” dos pianistas pode servir de exemplo. Músicos consideram como um fato óbvio que o som de uma nota no piano pode ser feito de diferentes maneiras, dependendo do “toque” do pianista. Adquirir o toque certo é o esforço de cada aprendiz, e o artista maduro contabiliza essa habilidade entre as suas principais realizações. O toque de um pianista é muito apreciado pelo público e pelos seus alunos; e tem um grande valor em dinheiro. No entanto, quando o processo de soar uma nota no piano é analisado, parece difícil explicar a existência do “toque”. Quando uma tecla é pressionada, o martelo posto em movimento atinge a corda. O martelo é empurrado pela tecla pressionada apenas para uma curta distância e é assim lançado em movimento livre, que é eventualmente interrompido pela corda. Portanto, argumenta-se, o efeito do martelo na corda é totalmente deter- minado pela velocidade do martelo em movimento livre no momento em que a atinge. Como esta velocidade varia, a nota da corda soará mais ou menos intensa. Isso pode ser acompanhado por mudanças na cor, etc., devido a mudanças si- multâneas na composição de harmônicos, mas não deve fazer diferença de que maneira o martelo adquiriu uma velocidade particular. Consequentemente, não poderia haver nenhuma diferença entre um principiante e um virtuoso no som

25 Ou saber tácito (tacit knowing), como em POLANYI, 1966. 26 POLANYI, 1966, p. 70

das notas que golpeiam um mesmo piano; uma das qualidades mais valorizadas na performance do pianista seria totalmente desacreditada. Esta é, de fato, a con- clusão que se encontra em livros-texto padrão como ‘Science and Music’ (1937) de James Jeans e ‘Physics of Music’ (1944), de Alexander Wood. Contudo, este resultado baseia-se erroneamente numa análise incompleta da habilidade do pianista. Isso foi demonstrado (para minha satisfação) por J. Baron e J. Hollo, que chamaram a atenção para o ruído que a tecla pressionada faz quando todos as cordas são removidas de um piano. Este ruído pode ser variado enquanto a velocidade transmitida para o martelo permanece inalterada. O ruído mistura-se com a nota soada pelo martelo na corda e modifica sua qualidade, e isso parece explicar em princípio a capacidade do pianista de controlar o som do piano pela arte de seu toque.” (POLANYI, 1962, p. 52)

Polanyi, um cientista da físico-química, nota ainda em meados do século o quão indevidos são os métodos analíticos que ignoram o dado performático completo como parte do próprio significado da realidade da música. O exem- plo leva à conclusão que, embora o ser humano esteja preso a descrever suas crenças quanto à realidade, sua descrição não é a realidade. São, na verdade, os pressupostos, os dados subsidiários de uma ação, que constituem o significado. O significado pode ser denotativo ou referencial, quando a ação aponta para alguma coisa; assim, a ação se torna signo para um objeto e ambos formam o todo (Gestalt). Todavia a ação pode não apontar para alguma coisa, ela pode simplesmente funcionar em si e em seu contexto, sendo ela mesma o todo, tomando assim a acepção de um significado existencial, o tipo de significado que Polanyi atribui à música28. A crença no significado da música toma para si,

finalmente, este status, o de crença, tanto quanto o entendimento de que não há um significado na música só pode se sustentar sob o mesmo mecanismo.

A ideia de que uma asserção não possui sua lógica somente nos dados for- mais que a compõem assume assim um lugar de proeminência na pesquisa sobre o funcionamento da linguagem. Oswald Ducrot, no trabalho que influenciaria Deleuze, escrito em parceria com Jean-Claude Anscombre, sobre a Argumentação na Língua, entende que mesmo a linguagem verbal em suas unidades mais ele- mentares demanda um aspecto pressuposicional para estabelecer qualquer tipo de significado. Fazendo uso de um tipo de “retórica integrada”29, os autores propõem

que a compreensão de um enunciado só pode se dar se dois níveis de interpretação forem atingidos, o componente linguístico e o componente retórico30. Ambos tratam,

28 Ibid, p. 60.

29 DUCROT; ANSCOMBRE, 1976, p.11 30 LEBLER, 2016, p. 3.

respectivamente, da análise dos tipos linguísticos e dos gestos linguísticos; dos as- pectos formais e dos aspectos situacionais, ligados a aplicação de um determinado sistema e uma determinada circunstância. Analiticamente, os pressupostos implí- citos são a somatória das marcas que o componente linguístico traz, do que está posto, mais o conhecimento sobre a situação em que se dá o enunciado; o enun- ciado só é o que é e, portanto, só possui significado, porque é formulado como é na situação em que é feito. Finalmente, Ducrot conclui que esses pressupostos são a própria energia que origina o ato de fala, compreendendo-os como a força ilocucionária que realiza o ato e constituindo a própria lógica da linguagem31.

As forças paralelas à proposição tornam-se mais evidentes, mas isso não significa a morte da proposição; apenas seu reposicionamento, mais adequado dentro da instituição do significado. O logos retórico emerge, já em Aristóteles, como um antídoto à excessiva formalização proposicional e historicamente o mesmo tem acontecido32. No século XX, a Retórica ressurge com a força capaz

de se desprender das amarras proposicionais sem, tampouco, ter de se desafazer da própria lógica. Michel Meyer parte da Retórica para definir que a linguagem surge sempre de uma questão apresentada, de um problema; o significado, por- tanto, é a ação de responder a esta situação-problema, implícita em uma pro- posição33. Para Meyer uma pergunta sempre subjaz uma proposição; o logos é o

problema que subjaz a proposição. Isso se relaciona com a noção de pressuposto de Ducrot, onde toda proposição traz uma pressuposição ou um conjunto delas por detrás da ação feita34.

A possibilidade da crença no metafísico leva imediatamente a uma noção de significado, mas que ainda tem sua própria possibilidade injustificada, ainda mais quando um desdobramento possível é o significado na música. O compositor Roberto Victório sintetiza bem estas relações ao relembrar que mesmo Newton e Descartes, fundamentos da Ciência Moderna, encontravam as respostas para a Metafísica em Deus e desenvolveram sua teoria do conhecimento baseados em uma abordagem holística da realidade e não na fragmentação de saber provoca- da posteriormente por seus próprios postulados35. Esse abandono de uma ideia

integral da realidade afetou todas as esferas de ação humana, inclusive a música, que deixou de ser concebida como parte da vida em seu sentido mais amplo, pas- sando a ser tratada como um acidente em meio a realidade. O resgate por parte

31 DUCROT, 1966, p. 13. 32 MEYER, 1986, p. 122. 33 MEYER, 1983, p. 24. 34 MEYER, 2004, p. 84. 35 VICTÓRIO, 2016[a]

da música contemporânea da ideia de uma Metafísica é possibilitada justamente por não necessitar a música, essencialmente, de uma lógica sintática, o que talvez dificultaria a outros tipos de discurso. A música habita essa realidade primeira, encontrando em seu fazer a “materialização desta entidade no mundo real”36, em-

bora sua natureza bitemporal a mantenha na tentativa de “retornar à virtualidade pela performance, ou infinitas possibilidades de leitura”37.

A imagem do ritual aparece como analogia, mas pode ensinar aspectos importantes sobre o significado na música, no sentido em que a ação cúltica é composta por gestos, os quais, por sua vezes, são “literalmente” a incorporação de um tipo de entidade externa ao mundo físico38. Mas ainda, o ritual não é a

entidade, mas apenas um vislumbre de sua existência, manifestada fisicamen- te. O logos é a encarnação do transcendente, o imaterial tomando forma na matéria, o virtual que se atualiza; é a imanência do intangível e inefável, que ao se figurar reduz-se, se não essencialmente, em manifestação. A expectativa de um significado que jaz no objeto consegue encontrar no máximo o que busca, um jazigo. A dissecação que a análise promove, quando deixa de lado a dinâmica discursiva de uma obra, encontra apenas vestígios de um corpo sem vida, com membros que em nada contribuem para a vida desse corpo, mas que são apenas vísceras sem função.

Assim, validando o mecanismo da crença, seja como afirmação ou negação, resta discutir a própria possibilidade de uma metafísica para que seja possível compreender a necessidade de uma proposição sobre o significado na música. Embora a ideia de forma pareça ser sugerida aqui, não se pode precipitar nenhuma conclusão antes que o conceito seja apresentado plenamente. Em relação à forma musical, talvez seja possível introduzir aqui a primeira noção de uma substância que toma forma, sem que para isso seja necessário afirmar qualquer preexistência dessa forma. A noção de matéria e forma não precisa ser abolida para que sua contingência seja proposta.

O físico Werner Heisenberg concluía disso que as proposições aristoté- licas estavam corretas, pois sua noção de matéria era justamente metafísica, precedendo a assunção de uma forma. Comentando seus experimentos de aceleração de partículas, Heisenberg afirma que:

36 Ibid., p. 6

37 Ibidem.

Se compararmos esta situação com os conceitos aristotélicos de matéria e da forma, podemos dizer que a matéria de Aristóteles, que é mera ‘potência’, deve ser comparada ao nosso conceito de energia, que entra na ‘realidade’ por meio da forma, quando a partícula elementar é criada. (HEISENBERG, 1958, p. 160) Vale lembrar que a contribuição de Heisenberg à ciência tem sido definitiva, na medida em que sua recepção por Albert Einstein e Niels Bohr provocou o debate de ambos sobre a possibilidade de determinar a posição de uma partícula quântica no tempo e no espaço. Einstein relutou em aceitar a posição indeter- minista, onde seria impossível quantificar a relação entre tempo e energia, ao passo que Bohr apregoava tal indeterminação39. O importante é notar que o

conflito se dá na ordem epistêmica, sobre a possibilidade de conhecer a ener- gia quantitativamente antes que se materialize e não em sua existência. Sendo assim, mesmo dentro da controvérsia, a ontologia da matéria em seu estado metafísico não fora desafiada.

Ainda em teorias posteriores, como é o caso da Teoria do Caos, a possibi- lidade da metafísica permanece válida. Embora a teoria se baseie na hipótese da imprevisibilidade e da instabilidade como fatores da imponderabilidade que gera a matéria, o tempo ainda é mantido como entidade metafísica, sobretudo na proposta da irreversibilidade do tempo, de Ilya Prigogine40. David Bohm, outro

proponente da irreversibilidade do tempo – e ex-professor da Universidade de São Paulo – parte da mesma ideia de uma filosofia do processo, concluindo que a “metafísica é uma expressão explícita de uma cosmovisão”41.