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Com o propósito de refletir, panoramicamente, a respeito da relação entre a área da saúde e o campo da comunicação, a Revista TEMA, na figura de seu editor, entrevistou a médica neuropsiquiatra Tânia Novaretti, que respondeu a uma série de perguntas de maneira objetiva, sempre alinhando, em seus comen- tários, um notável conhecimento teórico e uma rica vivência prática na profis- são. Tania Novaretti é graduada em Medicina pela Universidade de São Paulo (USP), com residência em Neurologia no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. É Mestre em Psiquiatria pela Universidade de São Paulo e Doutora em Neurologia, também, pela USP de São Paulo. É pesquisadora e autora de livros e artigos científicos.

Tema: A senhora concorda que há uma intima relação entre a capacidade

e a habilidade comunicativa do médico ou de outros profissionais da saúde e a adesão ou não dos seus pacientes às terapias que lhe são propostas?

Tânia Novaretti: Concordo, sem dúvida. É um direito do paciente ser

informado da sua doença, das possibilidades de tratamento, dos efeitos cola- terais e do seguimento adequado.

Tema: O médico, ao se dirigir aos pacientes, deve, por exemplo, assumir a

postura de utilizar os termos técnicos ou, pelo contrário, realizar uma tradução de tal nomenclatura para a linguagem popular ou coloquial. Caso o médico adote a segunda alternativa, há risco de sua autoridade ser questionada pelo paciente, em virtude de ele não falar como um profissional da saúde?

Tânia Novaretti: Não há pessoas idênticas, algumas gostam de ouvir e

anotar os termos técnicos, isso parece tornar mais fidedigna a explicação; ou- tras ficam apavoradas com os termos médicos, e eu costumo dizer: vamos passar para o português. É muito raro, hoje em dia, mas os mais velhos não gostam dessa aproximação. Se o médico divide o tratamento com eles, eles sentem que o médico está se eximindo da responsabilidade pelo resultado.

Tema: O princípio de qualquer conversa entre pessoas desconhecidas é

sempre um momento delicado em que os interlocutores devem estabelecer uma comunhão, quase um pacto de mútuo auxílio. No caso de uma consulta médica, como romper o peso do silêncio, levando o paciente a comunicar aquilo que o médico precisa ouvir.

Tânia Novaretti: Embora exista um extenso treinamento na Faculdade

de Medicina para tornar mais fácil a relação médico-paciente, muito da re- lação vem da formação familiar e pessoal do médico. Quando chega doente, o paciente está em uma posição inferiorizada e necessita, em um primeiro momento, de muita delicadeza e afeto. Se o paciente é acolhido, ele se envolve e se alia ao médico na sua cura.

Tema: No curso de um tratamento médico, a comunicação não se estabe- lece apenas entre médico e paciente, mas, igualmente, entre médico e fami- liares de pacientes, entre médicos e outros médicos, entre pacientes e outros pacientes. Nesse complexo circuito que se forma, como proceder para evitar a diluição ou a contaminação das informações?

Tânia Novaretti: Na maioria das vezes essa relação é bem tranquila entre

duas pessoas adultas, costurada para que o paciente recupere sua autonomia e tenha alta. Quando o quadro inclui crianças, pacientes dementes, pacientes com doenças clínicas graves, a dificuldade existe e, aí, se percebe a maturidade do profissional, conduzindo e mediando conflitos.

Tema: Existe o incomunicável para um médico com relação ao tratamento

do paciente? É preciso dizer tudo? É aconselhável calar sobre algumas infor- mações? Como ficam as questões éticas e legais?

Tânia Novaretti: Médicos são pessoas comuns, com suas crenças e pre-

conceitos. Seria muito bom se as faculdades de medicina trabalhassem o mé- dico como pessoa, mas isso não ocorre. Por outro lado, o paciente se encontra fragilizado, e, na maioria de nós, isso leva a uma regressão para comporta- mentos mais imaturos. Algumas informações são essenciais para o tratamen-

to: comunicar que abusa de álcool, que usa drogas, faz sexo promíscuo; outras nem tanto: religião, opção sexual, partido político...

Tema: As faculdades de Medicina têm formado médicos sensíveis aos

vários problemas de comunicação inerentes à profissão? Os profissionais mé- dicos – e, também, os da saúde em geral - são competentes o bastante para adequar a linguagem, o vocabulário, o ritmo de fala, sua capacidade de ser claro e persuasivo aos diferentes tipos de clientes que os procuram?

Tânia Novaretti: Não, as faculdades de medicina do Brasil nem sequer

conseguem enxergar seus alunos. No ano passado, ocorreram seis tentativas de suicídio entre os alunos do quarto ano da Faculdade de Medicina da USP, em São Paulo. Ninguém notou, antes, que esses alunos sofriam. No entanto, muito mudou nesses 35 anos, desde que me formei. Vemos os pacientes como pessoas, não os sujeitamos mais a exames humilhantes, como vários alunos aprendendo a fazer toque vaginal em uma paciente. Aprender a linguagem do outro foi, durante muito tempo, mais uma piada médica (cuidar da “prós- tima”, “úrsula perfumada”, “ataquecardio”) do que tentar uma comunicação eficaz. Ainda estamos longe da boa comunicação entre médico e paciente ser uma técnica aprendida, não um talento nato. Existe um bom livro a esse respeito da psiquiatra brasileira Carmita Helena Najjar Abdo: Armadilhas da Comunicação, publicado pela Lemos Editorial.

Tema: Como neurologista, a senhora deve enfrentar dificuldades adicio-

nais com relação à comunicação com alguns de seus pacientes, cujas enfermi- dades afetam sua capacidade de comunicação. Poderia falar de algum deles e de como alcançou minimizar essa barreira?

Tânia Novaretti: Sem dúvida, pacientes com Acidentes Vasculares

Cerebrais podem apresentar afasia de expressão (não formam as palavras), disartrias (não articulam as palavras corretamente); pacientes com Doença de Parkinson ou Miopatias têm disfonia (falam muito baixo, a voz desaparece). Escrever é uma alternativa, falar gestualmente também. Tive um paciente com afasia para quem a fonoaudióloga ensinou a solfejar músicas a cada coisa que desejava. Ele se comunicava sem conseguir falar uma palavra.

Tema: Muitos pacientes têm tendência ao monopólio da fala, roubando,

por sinal, o turno de fala do médico e de outros profissionais da saúde. Outros pacientes, pelo contrário, adotam postura passiva, concordando, sob todos os aspectos, com o médico; e há alguns que negligenciam e ocultam informações importantes para o sucesso da terapia. Em termos de comunicação, é possível afirmar que há pacientes melhores que outros?

Tânia Novaretti: Sem dúvida. Quanto mais maduro o paciente, melhor

o tratamento. Acredito que isso deveria ser enfatizado na primeira consul- ta. Médico e paciente são uma dupla, lutando juntos contra a doença e não devem perder tempo em armadilhas. Mas, normalmente, os problemas de comunicação são inconscientes; têm relação com empatia e confiança e afetam muito a relação médico e paciente.

Tema: Tratando de comunicação e saúde, não poderia deixar de lhe per-

guntar sobre a bula de remédios. Quem é ou deveria ser o destinatário dela? O médico deve mencioná-la ao longo da consulta? O que a bula comunica, no mais das vezes, não age no sentido de diminuir a adesão do paciente ao tratamento ou não?

Tânia Novaretti: Normalmente, quando uma medicação é lançada, é dada

ao médico, pelo laboratório, toda a pesquisa a respeito da medicação. Por isso não é habitual que o médico leia a bula especificamente. Os médicos têm a obrigação de comunicar ao paciente efeitos colaterais possíveis e se desapare- cerão com o uso. Sempre acho bom que o paciente leia a bula, embora algu- mas vezes isso provoque alguns episódios inusitados. Uma paciente diabética leu na bula que havia frutose na cápsula da medicação. Embora o laboratório farmacêutico, o endocrinologista e eu afirmássemos para ela que essa dose não faria mal em relação ao diabete, e ela estivesse muito melhor, ela optou por parar a medicação. Atualmente a Associação Médica Brasileira está tentando com a ANVISA tornar a linguagem das bulas mais coloquial, clara e apenas com as referências importantes.

Tema: O aumento da procura por tratamentos de saúde alternativos apre-

senta alguma relação com um suposto “jeito difícil de falar” de médicos, sen- timento já tão arraigado no senso comum.

Tânia Novaretti: Não acredito, acho que se deve mais ao preconceito

contra os medicamentos industrializados e a fantasia que medicamentos e tratamentos alternativos não têm risco, curam tudo. As terapias alternativas prometem muito mais e isso as torna bem atraentes.

Tema: Sabe-se que o contexto ou o referente da comunicação interfere

sobre o que é comunicado. No seu parecer, o médico e os profissionais de saú- de deveriam, pelo menos idealmente, comunicar adotando uma objetividade relativamente distanciada. Ou a comunicação afetiva, com traços de amizade, emotividade, seria importante também?

Tânia Novaretti: Todos temos fantasias de profissionais idealizados: pro-

fessor ideal, policial ideal, bombeiro ideal, médico ideal. Essas fantasias são pessoais, algumas pessoas veem o médico ideal como o cirurgião frio, distante, mas que sabe tudo; outros como o doutor que vai à casa de madrugada con- solar a família e atestar o óbito. Muitas vezes é difícil não se emocionar ao termos que comunicar um câncer ou uma doença incurável. Ser médico não nos imuniza de nos tornarmos pacientes um dia. Sem dúvida, para mim, a máxima é comunique-se e trate seus pacientes como gostaria de ser tratado por seu médico se estivesse doente.

Tema: A comunicação da grande mídia (novelas, seriados, filmes, docu-

mentários, telejornais, jornais, internet) sobre médicos, doenças, doentes, curas e mortes tem sido um fator de esclarecimento ou de mistificação no que toca às questões de saúde?

Tânia Novaretti: As duas coisas. O conhecimento nos protege da frau-

de e do preconceito. O problema é quando se romantizam doenças que são graves e não têm boa evolução. Novelas em que autistas se casam, têm bom relacionamento social, tratamentos com células tronco para câncer e Esclerose Lateral Amiotrófica, caríssimos e que não têm fundamento científico, me- dicamentos como a famosa “pílula do câncer”, que causaram sofrimento e provocaram falsas esperanças de cura para inúmeras pessoas.