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O SIGNIFICADO NA MÚSICA: UMA PROPOSIÇÃO Partindo dos dois pontos validados, é possível pensar em algo como uma

3.MÚSICA COMO LINGUAGEM

4. O SIGNIFICADO NA MÚSICA: UMA PROPOSIÇÃO Partindo dos dois pontos validados, é possível pensar em algo como uma

presença metafísica na obra musical. Se o significado é feito na música, e não simplesmente a habita, é necessário que alguém o faça. Começa a ficar claro que a performance, em algum sentido, faz parte da agência do significado musical, mas, dada a bitemporalidade da música, resta a questão se existe um significado presente no primeiro tempo ontológico da música. O que pode haver de presença do compositor, como autor de significado, enquanto a mú- sica é apenas potencial?

45 NETTL, 2005, p. 43. 46 Ibid. p. 49

O filósofo Jacques Derrida desqualificava esse tipo de procura, denomi- nando-a como logocentrismo, uma atitude totalitária de ambicionar alguma estabilidade de significado em pontos de referência anteriores ao próprio ato comunicativo. Derrida entende que qualquer interpretação é um ato político e que, a princípio, visa a legitimação de uma força opressora. Desse modo, a ética da interpretação deveria conduzir à abolição de qualquer tipo de ins- tância autoritativa, criando novas leituras que proporcionem a libertação do oprimido. Tão volátil quanto essa ética possa ser, ela leva a morte do autor como agente de qualquer significado intencionado47.

Nesse debate, parece haver dois polos que lutam pela supremacia da ins- tituição do significado em relação à realidade, ou em relação ao Realismo como categoria possível de coisas que existam independentemente da mente humana. Por um lado, um polo que afirma não existirem quaisquer coisas que não sejam fabricações racionais e, por outro, um extremo que assume uma correspondência perfeita entre linguagem e realidade, um tipo de Realismo naïf. A existência de algo como um autor é necessária para que haja signi- ficado; todavia, ela se torna inviável quando a noção de autoridade é taxada como opressora e, portanto, uma criação política que deve ser eliminada. Se não há autor, muito menos há qualquer intenção autoral. Não apenas por- que a psicanálise apregoa a impossibilidade de ações responsáveis, sendo elas apenas frutos de complexos anteriores, mas também porque os únicos traços de intenção autoral estariam disponíveis dentro da arbitrariedade dos signos.

Derrida denomina a própria Metafísica como a “ciência da presença”48 e, como

já exposto, a assunção de sua realidade e, portanto, da presença de algum tipo de autor só pode ser verificada ou não através da crença. Todavia a noção de intenção como vestígio do ato de significar do autor não deve, tampouco, incorrer na inge- nuidade do Realismo naif, crendo que a interpretação pode chegar a um signifi- cado último da realidade, como algumas semiologias, inclusive musicais, parecem propor. A melhor defesa de uma ideia equilibrada de intenção parece ser aquela do crítico literário E. D. Hirsch. Como não crê que haja um significado nas coi- sas, mas feito nelas, Hirsch define a intenção como ação autoral, fixada no texto. Intenção toma assim uma acepção de direcionalidade, de conexão entre a mente de quem faz e seu ato. Não deve se confundir intenção com o desejo ou qualquer tipo de inspiração romântica. A intenção do autor, ambicionada na interpretação, não deve ser a coisa a qual o autor objetivava em sua ação, mas a direção na qual ela foi, a conexão entre o sujeito e o objeto. Significado difere, assim, de significância,

pois tem a ver com as operações internas no meio, e não com pontos externos aos quais procurava se conectar o ato. Interessante que, mesmo como neo-platonista que era, Agostinho vislumbrava a ideia de uma ação consciente:

Sinais convencionais são os que todos os seres vivos mutuamente se trocam para manifestar – o quanto isso lhes é possível – os movimentos de sua alma, tais sejam as sensações e os pensamentos. Não há outra razão para significar, isto é, para dar um sinal, a não ser comunicar e transferir a outra mente a ação da mente que ocorre na pessoa que faz o sinal. (AGOSTINHO apud.

VANHOOZER, 1998, p. 201)48

A intenção pode ser ainda mais bem definida quando toma em sua acepção dentro da Teoria dos Atos de Fala, em que o que equivale a intenção dentro do sistema de linguagem e seu uso é a força ilocucionária. A intenção não é o que o autor pretende fazer no outro em seu ato comunicativo, mas o que que ele faz no ato. John Searle coloca que “o efeito que caracteriza a intenção do significa- do é a compreensão”49, diferenciando do ato perlocucionário, cuja efetivação é

caracteriza pela concordância ou o resultado pretendido no outro. Todavia, se a proposição de Ducrot é resgatada, a própria compreensão é, em alguma medida, a persuasão da mente do outro quanto a algo que antes não lhe movia, funcio- nando como uma retórica interna. Os indícios para compreender tal intenção podem ser depreendidos unicamente no ato locucionário, nos traços de inten- ção, já mencionados em termos pressuposicionais. A interpretação não é uma gnose, que depende de um conhecimento externo ao texto para que seja possível compreendê-lo. Essa direcionalidade da intenção pode então ser definida como o estado de dirigir-se a, ou, como afeto. Sendo assim, pode se representar o significado na música como F(p), sendo ele um produto daquilo que é feito, a força ilocucionária (F), na representação de uma realidade (p), de um mundo projetado, ou de um afeto. A intenção é justamente a operação de F em p, na tendência, direção e forças aplicadas. J. L. Austin, o fundador da teoria, coloca que a ação performativa é uma ação feita e não uma coisa e, portanto, em si não pode ser julgada como verdadeira ou falsa, boa ou má50. A ética do significado

nasce da responsabilidade do valor metafísico de significado ser posto em práti- ca e não de uma valoração moral do objeto. Sendo assim, é na atualização de um virtual na performance que o significado é finalmente e eficazmente feito, sem qualquer amarra linguística, sob o ponto de vista proposicional.

48 Utiliza-se aqui a tradução de Vanhoozer do latim devido à adequação ao original. 49 SEARLE apud. VANHOOZER, 1998, p. 243.

A performance habita, assim, o plano de imanência da própria música, on- tologicamente falando. Ela faz parte da cadeia de ações que compõem seu devir e, portanto, de seu próprio significado. Na “névoa de imagens virtuais”51 que

rodeiam a música atualizada potencialmente na composição, a performance tem o papel de atualizá-las, transbordando o objeto atual, todavia sem extrapolar o que já fazia do atual ser o que era. Por essa razão a performance é sempre única, atualizando um conjunto distinto de virtualidades a cada execução e, ao mesmo, sempre capaz de tocar a mesma música. “O plano de imanência compreende a um só tempo o virtual e sua atualização, sem que possa haver aí limite assimilá- vel entre os dois”52. Ainda que Deleuze intente remover o metafísico do virtual

bergsoniano por meio do eterno retorno de Nietzsche e da terceira repetição53,

relembra-se que a própria adoção da categoria metafísica é uma escolha. Sendo assim, se é o virtual do futuro ou o plano do imaterial que justificam a perma- nência de algo como o significado, o fato é que essa permanência pode ser vivida mesmo em paralelo ao estado de morte, de esvaziamento, experienciado em cada acontecimento local, em cada instante54.