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Crescer é uma construção social

No documento O mundo Panará em criação (páginas 105-108)

CAPÍTULO 2 O CORPO QUE CRESCE

2.8 Crescer é uma construção social

Santos-Granero (2009) expande o debate acerca de o corpo ser uma referência relevante para o desenvolvimento de teorias nativas entre os povos amazônicos, identificando a recorrência entre eles, de reconhecerem a equivalência entre o corpo e os artefatos, na medida em que ele, igualmente, pode ser manufaturado, sendo a sua forma sempre passível de ser reconstruída e alterada por agências externas.

Conforme já apontado, pode-se identificar uma aproximação com essa discussão, fazendo aparecer um corpo panará, cuja afecção é passível de ser fabricada e manejada por objetos, festa e alimentos. No entanto, soma-se ainda o fato de que o crescimento só pode ser construído enquanto o corpo é imaturo e essa condição é fundante das possibilidades de investir na confecção das competências e da aparência física de uma pessoa.

Sublinha-se, desse modo, que a possibilidade de o corpo constituir-se como uma criação deve ser compreendida sob a perspectiva de que incorre, paralelamente, uma teoria acerca do crescimento, em que há momentos adequados para tais investimentos.

Outra questão é a necessidade de ponderar sobre o poder do controle desses artesãos sobre os corpos que eles se dedicam em confeccionarem. Compreende-se que a criação está subjacente a uma tensão de forças transformativas, porque permanecem sendo consideradas as agências que provocam a baixeza, a preguiça ou a fraqueza, elas não aparecem como subvertidas definitivamente.

O investimento no crescimento sob o jeito que é visado acontece permanentemente. Conforme vimos, a festa da criança não é a única intervenção elaborada para a constituição das competências e da aparência física. Somam-se os conhecimentos ligados aos alimentos, ao uso de determinados objetos e às orientações pertinentes à atividade sexual.

Ao tempo em que uma pessoa pode realizar o controle, evitando namorar cedo, por exemplo, ela também pode ser incapaz de fazê-lo, resultando numa baixeza que não era a intenção do agente. Portanto, o crescimento não resulta sempre de um manejo intencional. Embora haja uma consonância com a formulação do corpo como artefato no sentido de ele poder ser construído intencionalmente, é importante ponderar que incide uma tensão de distintas forças transformativas, já que não há a capacidade plena de um manejo das agências.

Isso reincide em relação aos hábitos alimentares, não é estabilizado o controle do consumo daqueles alimentos que podem contrapor-se à produção de um corpo forte e disposto. As tentações e os desvios das orientações dos mais velhos fazem parte da contingência da vida.

Portanto, a possibilidade de criar um corpo não está associada à afirmação de que há um controle efetivo sobre o mesmo, ao contrário disso, deve ser considerada a instabilidade da capacidade

106 de manejar as agências das coisas. Antepõe-se a percepção de um corpo visto como incompleto e dinâmico, enquanto é imaturo e que se constitui como palco de uma tensão de forças transformativas.

De modo subjacente, impõe-se este ponto de vista de que as presenças no mundo, fabricadas ou não, têm poder criativo e que independentemente de serem ou não manejadas as suas capacidades transformativas, a agência delas é imperativa. Diante dessa realidade, coexiste a possibilidade de manejar o poder criativo do alimento, dos objetos, da festa e até mesmo do próprio comportamento. É aí que se identifica a manifestação de uma busca pelo controle dessas agências, porque ele é concebível e admissível. No entanto, as possibilidades de um corpo ser transformado por outras presenças no mundo não se limita ao universo daquelas ações que se realizam como uma projeção da intencionalidade humana.

Afinal, o arroz é gostoso e não resistir ao consumo dele dá preguiça, assim como não conseguir resistir à tentação do namoro antes de crescer faz ficar baixo. Ainda que os saberes acerca de como se pode construir deliberadamente o crescimento do corpo da forma visada não sejam efetivamente praticados, impõe-se que sempre há uma explicação de o porquê a altura se desenvolveu de um certo jeito, ou o comportamento se manifestou daquele modo. Descortina-se, contudo, que a potência do modo de sentir, agir e de se aparentar fisicamente realiza-se como uma criação, cuja autoria abrange objetos, alimentos, festa e autodisciplina.

E, conforme já dito, insiste-se em ponderar que tudo isso apenas tem eficácia quando o corpo é imaturo, o que significa reconhecer ademais, que a potência do próprio corpo de se transformar partilha esse papel de agente, ou senão é a própria condição para as capacidades criativas de outras existências atuarem.

Temos visto, então, que o crescimento visado não se restringe apenas às aquisições das afecções manifestadas na diversidade de bichos na mata, tampouco aos objetos. É importante destacar a importância da autodisciplina na confecção do próprio corpo.

Aqui é importante, sublinhar que o corpo humano é dotado de afecções que agenciam a transformação noutras existências. Embora não tenhamos aprofundado esse aspecto aqui, vale registrar que ao plantar a mandioca, os homens esfregam as ramas em suas coxas, visando ao nascimento de uma mandioca grande, tal como são as coxas masculinas. Durante a minha pesquisa na aldeia Kôtikô, em 2017, participei do plantio das ramas da mandioca e fui orientada a esfregá-las em minha coxa, antes de depositá-las nas covas abertas na roça.

A experiência é aqui partilhada com o objetivo de ponderar que até mesmo o corpo humano desdobrou-se como um modelo para o referido produto da roça, o que parece reiterar a premissa de que as existências presentes no mundo possuem capacidade de agência.

107 Kiêrõ é assimilado como um homem forte e disposto, sempre está desenvolvendo alguma atividade, caçando, pescando, trabalhando na roça, “Ele é toputũ forte, porque ele anda no mato, vai pra roça, não para” (informação verbal)77, disse Sâto, seu filho. Dado o ânimo manifestado em seu

corpo, um jovem adulto queria ser arranhado e escolheu Kiêrõ porque reconheceu a capacidade transformativa de seu corpo humano.

Sugere que os animais, os objetos, as plantas e também os humanos apresentam afecções que podem ser convertidas em agência transformativa e criativa, tornando a capacidade de criar uma condição transversal das existências que, por sua vez, são apreendidas como potentes, o que vai ao encontro de alguns argumentos debatidos por Santos-Granero (2009).

Reforçando essa premissa, o interesse pelo nascimento de um menino mobiliza a mãe gestante dormir num colchão que estará sobre um arco e uma flecha. Embora se trate de um objeto, disseca- se que as capacidades relacionadas ao gênero masculino não estão situadas no material utilizado para confeccionar esses objetos, mas sim no fato de que eles são utilizados por corpos humanos de homens para executarem atividades de caça que são reconhecidas como masculinas.

Independentemente de se aprofundar na questão da construção de gênero, que não é o interesse em pauta aqui, ganha relevo o fato de que se trata de uma afecção do corpo humano panará, reconhecida como capaz de força criativa. É sob esta perspectiva, contudo, que se afirma o comportamento de uma pessoa incluir-se como outra referência que agencia a transformação. O que o corpo faz ou é capaz de fazer é considerado nas reflexões que explicam porque o crescimento aconteceu de determinada forma.

Viveiros de Castro (2002), ao afirmar que o modelo do espírito é o antropomorfismo, enfatiza que o modelo de corpo é o dos animais. No entanto, em minha pesquisa, pude observar que o corpo humano inclui-se como um possível modelo para outras existências no mundo, já que ele possui poder criativo em produtos da roça e nos próprios corpos humanos, tais como os mais velhos fortes e dispostos (toputũ).

É notável a noção de que os corpos em geral podem agenciar outros corpos, aqueles humanos agenciados pelos animais, ou pelos artefatos ou pelas plantas; ou corpos de produtos da roça agenciados por animais, pelas plantas e pelos humanos; ou ainda, corpos humanos agenciados pelos humanos, notavelmente, aqueles fortes, corajosos e dispostos.

Neste particular, pode-se inferir que um homem mais velho quando bate com a mão no seu peito afirmando incisivamente “Eu sou toputũ”, assume não apenas o significado de ele ser um homem mais velho, mas sobretudo, de ser um homem crescido, cujas afecções de coragem, força e

108 disposição lhes são imputadas. Logo, toputũ pode ser traduzido, nessas ocasiões, como um corpo forte, corajoso, animado e disposto, isto é, um corpo que cresceu adquirindo as afecções almejadas socialmente.

Para cultivar o cará, o dono da roça mata tamanduá, corta a cabeça, pega-a na mão e vai plantar, “O cará ficará bem grande” (informação verbal)78. Quando as mulheres vão para a roça, podem passar

tinta de urucum no rosto antes de mexerem nos cachos das bananas. Eles são retirados do pé e colocados no buraco que é feito perto da bananeira, cobertos com folhas de bananeira, “Aí, a banana vai ficar vermelha e gostosa” (informação verbal)79.

O homem que plantou amendoim não pode pegar em jabuti, porque não nascerão sementes, apenas pegar esse bicho com folha; tampouco pegar matrinchã, pois a sua casca é frouxa e os amendoins nascerão com a casca deste jeito também. Aquele que plantou o amendoim não pode comer piau, porque a casca de seu cultivo ficará engruvinhada. Enquanto estiver brotando, o plantador não pode namorar quem está menstruada, uma vez que a folhagem do amendoim ficará vermelha. Se aquele que plantou dormir de braços cruzados, não vai crescer a folhagem. Comer mão e pé de macaco-preto faz o amendoim ficar comprido tal como são essas partes do animal consumido.

Relativo aos plantios na roça são diversos os exemplos que envolvem a manipulação de partes de plantas, de animais e de aves para influenciarem no crescimento da batata, do milho, da mandioca, do amendoim, da banana, entre outros alimentos.

Por fim, evidenciam-se as atividades que se desenvolvem cotidianamente (OVERING, 1999), notadamente, aquelas que circunscrevem os contextos sociais de ação voltados à produção do crescimento, configurando-o como uma construção social associada à específica concepção de um jeito de crescer que é visado. A grandeza física, a disposição e a força são expressões de o que é tido como um corpo bonito, além do valor dado ao cuidar do outro, subjacente às atividades que requisitam a realização de um corpo forte e animado.

No documento O mundo Panará em criação (páginas 105-108)