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Plantas e árvores que fazem o corpo crescer

No documento O mundo Panará em criação (páginas 101-105)

CAPÍTULO 2 O CORPO QUE CRESCE

2.7 Plantas e árvores que fazem o corpo crescer

Veremos que outras práticas são desenvolvidas com a finalidade de fazer um corpo forte, comprido e disposto. Mesmo que os antigos as incorporassem mais, elas permanecem circulando entre as pessoas das gerações atuais, combinado à contínua preocupação com a aceleração da alteração do tamanho e com as competências do corpo.

Entre os saberes ligados ao crescimento, contempla-se a produção de colchões com folhas de palmeiras, as quais são notadas como árvores que crescem rápido e bem alto. Entre elas, os pés de buriti, de inajá e de açaí. Sokriti detalhou que as folhas novas dessas árvores seriam as mais adequadas. Até mesmo carregar a criança no cesto confeccionado com fibras de buriti ajuda a crescer. Abrange-se ainda passar folha de mamão no corpo, tanto feminino como masculino.

Esses conhecimentos, em comum, retratam a preocupação em construir um crescimento rápido que se contraponha ao ritmo de crescimento preexistente no corpo que é devagar. Sob a preocupação em discernir quem tem o poder de manipular as forças criativas em questão, é necessário identificar que são as pessoas humanas e não o objeto em si mesmo. As folhas são de árvores que crescem muito rápido e tal capacidade foi objetivada como uma força transformativa no corpo humano, imprimindo nele a mesma qualidade de crescer rápido. Mas a manipulação dessa força não foi executada pelo inajá, buriti, açaí ou mamoeiro, mas sim pelos humanos sob a intenção da apropriação dela. São corpos panará que orientaram-se ao encontro desses tipos de árvores para confeccionarem objetos ou elaborarem ações com partes das árvores.

Reincide a expressão de um ponto de vista de que outras presenças no mundo, como a das palmeiras, possuem a força criativa de atuarem em corpos de outrem. O potencial da agência parece

102 ser intrínseco ao corpo e, então, a capacidade transformativa das diversas existências é distinta e específica o quanto os atributos delas os são.

Chama a atenção o fato de que as folhas menores são consideradas as mais eficazes, o que sinaliza reconhecer nelas maior capacidade de fazer crescer. Logo, até mesmo nas plantas, as folhas imaturas são percebidas com uma maior potência de transformação. Parece ter uma aproximação com aquela história de que as crianças é que são figuradas como “pajés”, situando nelas a capacidade da transformação.

Essa avaliação, no entanto, pretende enfatizar apenas o aspecto de que o crescimento é uma experiência transformativa e a agência voltada à fabricação dele incide naquela fase na qual a imaturidade impõe-se, o que equivale ao momento em que a possibilidade de transformação é mais potente.

Sokriti afirmou, na língua panará, que desde os antigos (swãkiara) é ensinado que não se pode namorar cedo. Em suas palavras: “Tem que crescer a menina antes de namorar” (informação verbal)75.

Nesta mesma ocasião, acrescentou outro conhecimento orientado à potencialização do crescimento que é fazer esteira com folha de buriti para o homem e a mulher deitarem-se nela para crescerem, porém, sem namorarem, prescrevendo uma autodisciplina relativa ao comportamento sexual.

Reincide a importância dada em crescer primeiro antes de namorar, tal como explicitado nas histórias da Jaburu, da Velha e até mesmo na das duas crianças towmãpã (pajé). Conforme já discutido, as relações sexuais não são recomendadas neste momento em que a potência da transformação incorre, impondo-se um manejo no momento de iniciar a vida sexual.

No exemplo de Sokriti, a construção do crescimento implicou o controle do comportamento sexual articulado ao contato íntimo dos corpos com o colchão da folha de buriti. Descortina-se o interesse humano em confeccionar objetos com partes de árvores que crescem rápido pretendendo produzir nos corpos panará a mesma competência da rapidez no crescimento.

Em Kôtikô, testemunhei uma mãe passar remédio em sua filha recém-nascida e ela justificou que o fazia para fazer o bebê crescer e ficar grande “Inâ ahê” (faz crescer), lembrando que inâ é alto e pode tornar-se verbo, significando crescer. Crescer rápido aparece novamente como resultado visado pelo manejo de uma planta tida com essa capacidade.

Complementa-se ainda que se amarra na perna da criança a fibra de uma planta para fazê-la andar rápido, deixando a sua perna forte, justificando que tal procedimento é bom para a pessoa no futuro poder caçar ao sogro e à sogra.

103 Também pode-se passar na perna um preparo com cascas de algumas árvores, notadamente, aquelas que são bem duras, como as do jatobá, por exemplo. O objetivo é fabricar pernas fortes, boas para andarem na mata (caçar), bem como para correrem na corrida de tora sem o risco de quebrarem o osso.

O fortalecimento de laços sociais íntimos circunscreve as justificativas dadas aos investimentos no crescimento do corpo, conforme também já discutimos. Ficar forte para produzir o alimento aos pais da esposa reaparece até mesmo na busca do manejo das agências de plantas e árvores.

Ter casca dura converte-se na expressão de uma competência de força, a manipulação dessa parte da árvore é compreendida como mecanismo de veicular a mesma qualidade no corpo humano, sinalizando o entendimento de que até mesmo os objetos confeccionados pela intervenção das pessoas panará permanecem possuindo as mesmas competências da árvore.

O controle dos objetos é dos humanos que promovem o contato íntimo do corpo de um jovem ou de uma criança com eles a fim dessa força criativa acontecer, influenciando no crescimento. O corpo panará é, portanto, apreendido como passível de ser agenciado por tais objetos, visando à produção de uma semelhança quanto à qualidade específica de crescer rápido e/ou forte.

Portanto, vigora o pressuposto de que as competências manifestadas nas plantas e árvores podem ser transversais nos humanos. As afecções reconhecidas nos animais ou nas plantas não aparecem como exclusivas de quem as manifesta, antes, elas se impõem como possibilidades nos corpos antropomórficos. O que parece sobrepor-se como uma questão são os modos de ser possíveis que as diversas existências apresentam, sob a perspectiva de que os mesmos podem ser adquiridos articulado à noção de que as presenças no mundo têm poder de agência.

Segundo a discussão de Santos-Granero (2009) e Hugh-Jones (2009), o corpo pode ser criado tal como os artefatos os são. Ambos os autores chamam a atenção para a forma como é concebida a relação entre corpos e objetos, reconhecendo nestes últimos a capacidade criativa e transformativa, atribuindo-lhes agência na confecção do corpo humano.

No argumento de Santos-Granero (2009), nas cosmologias ameríndias, o corpo pode ser concebido como um artefato, considerando que ele é assimilado como uma construção. Igualmente, o corpo pode ser agenciado pelas coisas que também são confeccionadas, tais como os artefatos. Logo, o corpo é também constituível pelo que também o é.

O ato de criar ganha relevo em sua abordagem, desde que o fazer coisas é uma capacidade transversal às existências, incluindo, os animais, as plantas, os espíritos e os objetos.

A relação dos corpos panará com o colchão de folhas de inajá, com os ornamentos nos tornozelos feitos de fibras de plantas, com os remédios manipulados com partes de árvores e plantas

104 pode ser reconhecida sob este prisma de o corpo poder ser criado por objetos que também o foram, reiterando essa dimensão de que as presenças no mundo têm poder criativo e transformativo.

No entanto, é preciso ponderar que entre as histórias dos antigos não há essa experiência de um artefato preexistente, cujo poder criativo contribuiu para configurar a presença de outras existências que são familiares no mundo pelas pessoas panará. É importante apresentar isso, porque de fato há povos em que trata-se de um tema valorizado, fazendo parte das narrativas que justificam a presença de algumas existências. Já tive a oportunidade de trabalhar com alguns povos em que isso era recorrente tal como entre as pessoas tenharim, da família tupi-guarani (TENHARIM, 2009)76.

Concebo importante salvaguardar que entre as histórias dos antigos panará, conhecidas por mim, até então, muitas existências são explicadas como transformações advindas de corpos humanos, abrangendo os animais, os astros, a chuva e o trovão. Até mesmo, o facão e o trator já foram concebidos como transformações de gente antropomórfica.

Então, ao reconhecer que o corpo pode ser construído por um conjunto de coisas que são tidas com poderes criativos sobre ele, não equivale à prerrogativa de uma pré-existência dos artefatos como autônomos e protótipos de corpos humanos na cosmologia do povo Panará. Ainda assim, reconhece- se a noção de um corpo construído, tal como os artefatos o são, conforme propõe Santos-Granero (2009).

Discute-se, fundamentalmente, que na maneira de fazer a criança e o jovem crescerem inscreve- se essa ideia de que distintos corpos presentes no mundo são dotados de agência, cuja potência criativa pode atuar na construção das competências corporais deles. Mas isso é no sentido de uma relação com os objetos que são fabricados com as diferentes espécies existentes, reiterando este debate proposto por Santos-Granero (2009) de que os artefatos também são ativos na constituição dos corpos.

É sob esses termos que as pessoas panará mobilizam-se para provocar uma interação dos corpos humanos com o alimento, as tornozeleiras de fibras, o remédio e o colchão. Essas coisas são criadas por uma intenção humana, a qual manipula partes de plantas e árvores, confeccionando objetos, por sua vez, apreendidos como dotados de agência, tornando as suas competências específicas passíveis de serem adquiridas pelas pessoas que se relacionam com eles. É enfático esse ponto de vista de mundo das pessoas panará de que as presenças no mundo têm agência, sugerindo a percepção de que tudo é um corpo.

76 Estive inserida no Projeto Indata´hua, cujo objetivo era a formação de professores indígenas de alguns povos do Alto Madeira, incluindo o Tenharim. Nesta oportunidade, junto aos professores participantes do curso, foi concebida uma pesquisa com os mais velhos de algumas histórias dos antigos que frutificou na publicação de um livro titulado Morogita Ymyava´e. Mitos dos povos Parintintin, Tenharim, Tora e Djahoi.

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No documento O mundo Panará em criação (páginas 101-105)