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Ouvir-aprender

No documento O mundo Panará em criação (páginas 40-42)

CAPÍTULO 1 – A DIFERENÇA NOS CORPOS HUMANOS

1.1. Ouvir-aprender

Quando as pessoas contam as histórias que aconteceram antigamente, elas têm o costume de considerar aqueles que lhes as ensinaram desde crianças, remarcando que as experiências anteriores delas como ouvintes são as que formataram a atual potência de agora se constituírem como narradoras.

Ĩpa é uma palavra que pode ser traduzida como ouvir, compreender e aprender. Ela está intimamente ligada à audição e ao pensamento. Tal palavra pode ser adotada para exprimir a ideia de compreender o escutado, significando ouvir-compreender, mas também pode assumir o sentido da escuta de determinados conteúdos que estão sendo aprendidos, sem a efetivação de um domínio do saber, significando ouvir-aprender.

Na aldeia Sõkwê, o senhor Sokriti enunciou: “Quando eu era pequeno gostava de ouvir histórias, até quando eu casei continuava a ouvir, não parei de ouvir histórias” (informação verbal)7. A experiência de escutar as narrativas dos antigos se inicia na infância e perpassa a mocidade, até a pessoa casar-se, ter filhos, tornando-se adulta. Quando o verbo ĩpa é adotado num contexto em que se realiza a atividade de contar e ouvir histórias, está em vigor a conotação de um conhecimento que vai se fortalecendo, iniciado na infância e continuado até crescer, contornando o sentido de um ouvir- aprender.

O senhor Sokriti contava a história da Jaburu a mim e aos outros jovens adultos na escola da aldeia Sõkwê, em julho de 2017. Ele interrompeu brevemente a sua narrativa dizendo que a tinha ouvido desde criança e que a compreendeu bem e por isso ele nos ensinava, e logo em seguida, retomou de onde tinha parado. Ĩpari tâti foi a expressão que ele adotou neste momento, ĩpa assumiu o sentido de ouvir-compreender; tâti é adotado para caracterizar o que é duro, pesado e forte; a conjunção de ambas as palavras conotou “compreender com força”.

Sãpatâti é um conceito atribuído aos mais velhos que demarca a qualidade de “saber muito”. Em contrapartida, as crianças são caracterizadas como sãpanõ que significa “não entender bem”, nõ é uma partícula de negação e este termo implica ĩpari nõ – sem compreensão. Ambas as palavras derivam de ĩpa, identificada no “pa” de sãpatâti e de sãpanõ.

Sob essa perspectiva de um conhecimento fortalecido, os mais velhos que hoje contam as histórias sempre relembram quando eram mais novos e, paralelamente, daqueles mais velhos que lhes

41 ensinaram. Foi assim que aconteceu com todos aqueles que me ajudaram nesta pesquisa, me contando as histórias dos antigos na língua panará, conforme eu lhes havia pedido, bem como explicando-as para mim. Ora lembravam-se do pai, ora do avô, ora dos mais velhos de modo genérico.

Mulher mais velha e homem mais velho são nominados como twatũ e toputũ, respectivamente. Porém, swãkiara é outro termo que também pode ser aplicado aos mais velhos e, sobretudo, para aqueles mais antigos das gerações anteriores que já morreram. Swa é dente, e também pode assumir a posição de um advérbio significando “na frente”. Neste termo referido acima, swa expressa o sentido de pessoas que existiram antes, remetendo-se, portanto, àquelas que são mais antigas; ara é um sufixo que indica plural, logo swãkiara pode ser traduzido como antigos e no singular swãkia (pessoa antiga).

A narração de histórias se realiza nessa interação entre aqueles que as ouvem-compreendem e que as ouvem-aprendem, abrangendo não só os atuais velhos e mais novos, mas também, de um modo indireto, aqueles mais antigos que já morreram e que também contavam as mesmas histórias. Iankjara é outra palavra que se aplica aos antigos, sobremaneira, que viveram num passado mais distante. Ian é o nome que demarca o passado.

Quando se prolonga a pronúncia do i, significa que se trata de algo que aconteceu muito, muito antigamente, “iiiiiiian”. As pessoas que vivenciaram os episódios contados numa narrativa podem ser conceituadas como swãkiara ou iankjara. As histórias dos antigos são aquelas experiências vivenciadas por pessoas ancestrais e por elas as terem relatado, permanecem sendo recontadas até o nosso presente.

Os acontecimentos do passado são revisitados e retomados como partes intrínsecas do que formatou a condição da ação de contar histórias no presente. Os mais velhos demonstram que estão atentos nessas vivências de outra temporalidade como interligadas àquelas em desenvolvimento no presente. Na maneira de perceber como o conhecimento é construído, portanto, incide a inscrição de um passado que se estende ao presente enquanto um contínuo isento de fronteiras.

Ĩsũũ é o verbo que significa falar e contar. Contar histórias de antigamente é um conhecimento que é alcançado enquanto um crescimento. Sarẽ é aprender e o aprendizado é a condição que proporciona a possibilidade de assumir a posição do narrador. É íntima a relação entre aprender, crescer e contar, bem como a conexão entre o contar e os mais velhos, que possuem a autoridade socialmente reconhecida de poder narrar histórias dos antigos (swãkiara).

Ainda que eu tenha ouvido histórias também de jovens adultos, eles mesmos salvaguardavam que os mais velhos sabiam mais. No meu exercício de construir uma compreensão das narrativas que explicam como as mulheres tornaram-se presentes no mundo, contemplei as manifestações dos mais

42 velhos e de todos que eu ouvi, por assim dizer, do Sokriti, da Jõkrâ, da Kiêrâsâ, do Sykian, do Tukokian, do Mĩkre e do Perankô.

Quanto à mim, estou incerta da minha posição nesta relação entre ouvir, aprender e contar. Ĩpari se transformaria para assumir um sentido de tentar compreender, sob a condição incontornável de nunca ter experimentado a escuta desde a minha infância, deslocada de um aprendizado que foi sendo fortalecido ao longo da vida, sob um modo de viver comunitário panará. Ainda assim, esforço-me para construir um conhecimento, admitindo a minha maior aproximação com a posição de quem está e permanecerá ouvindo-aprendendo.

No documento O mundo Panará em criação (páginas 40-42)