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Se namorar cedo, não cresce

No documento O mundo Panará em criação (páginas 86-92)

CAPÍTULO 2 O CORPO QUE CRESCE

2.5 Se namorar cedo, não cresce

O interesse em fazer crescer um corpo forte, disposto e comprido coexiste com a permanente ameaça de outras potências corporais contrárias as quais podem ser reconhecidas como concretizadas naqueles corpos baixos que não cresceram muito. A baixeza, portanto, também se manifesta como uma forma de crescer, mas que é distinta daquela que enveredou no tamanho curto como atributo que especifica o corpo de Anta.

No entanto, esse jeito de crescer não aparece como desencadeamento de uma agência combinada, deliberada e intencional por parte do coletivo. Antepõe-se como engendrado por ações da própria pessoa, cuja conduta é concebida como desvio das orientações dos mais velhos, aprendidas com aqueles mais antigos que já morreram (swãkjara).

Certa vez, Mĩkre comentou: “Lá na aldeia não tem pessoa alta, só tem quatro. A preocupação nossa é porque o povo Panará está diminuindo, está sendo muito baixinho, não tem povo Panará alto. Acho que o jovem não cumpriu regra como o Tuiuiú cumpriu” (informação verbal)54. O seu enunciado indica uma hipótese de porquê o povo Panará está diminuindo, nela é expoente a centralidade dada ao não cumprimento da regra do Tuiuiú, referindo-se ao Nãpri (Jaburu).

Sua suposição aconteceu quando ele mesmo ensinava a história da Nãpri (Jaburu) e seu argumento tem íntima relação com o que temos discutido acerca do crescimento, mais particularmente, dessa recomendação de que precisa primeiro crescer para começar a ter experiências sexuais.

Nesta oportunidade, vale registrar que o Tukokian ao contar a história da Jaburu, explicou que o filhote cresceu e “Nãpri virou mulher para todo mundo, virou moça alta”, remendando imediatamente “Kokriti é Nãpri, quem é alto é Nãpri, mas ninguém mexeu nela quando tinha 15 anos” (informação verbal)55. Ainda que pareça repetitivo apresentar um enunciado que reitera a altura

como atributo específico da Jaburu dando, inclusive, o exemplo de uma pessoa, o Kokriti, ele é trazido para a nossa presente discussão, porque há nele o acréscimo dessa preocupação em discriminar um comportamento socialmente valorizado: “ninguém mexeu nela quando tinha 15 anos”.

54 (MĨKRE, Poconé, 2012). Manifestação oral de Mĩkre quando ele apresentou a história da Jaburu no seminário “Mapeamento das Mitologias” em Poconé-MT, promovido pelo Grupo Pesquisador em Educação Ambiental (GPEA) da UFMT e pela Operação Amazônia Nativa (Opan).

87 No enunciado de Tukokian fica explicitado que se trata de um momento de imaturidade do corpo da Jaburu, referente à transição para a mocidade (piõtuê). Faz parte deste universo de saberes ligados ao corpo, recomendar a espera por mais crescimento antes de praticar sexo.

Se as mulheres apareceram no mundo pela transformação da Jaburu, implica que a relação sexual, com elas, sob esta prática de esperar mais o seu crescimento, já vigorava desde o tempo de muito antigamente (iankjara). Sugere, então, ser um ensinamento vinculado à própria história da Nãpri (Jaburu), cujo conhecimento já vem sendo praticado desde a época de sua transformação.

Reforçando que no modo de conceber o crescimento inscrevem-se saberes acerca do corpo, apresenta-se o ensinamento de Sykian: “Se casar cedo, fica baixo” (informação verbal)56, reiterado

noutra conversa em sua casa, “Quem namora e casa cedo, não cresce” (informação verbal)57.

A relação sexual desdobra-se como agência que arrefece a potência de crescer alto. Ao mesmo tempo, revela-se como um comportamento imaturo por se realizar antes do esperado, antes de o corpo crescer. A forma de se relacionar com o próprio corpo faz parte de como será construído o crescimento dele mesmo.

Esperar crescer e incorporar a vida sexual no momento em que o seu corpo já está mais desenvolvido converte-se numa ação que é socialmente fomentada, confundindo-se com um conhecimento, o qual se articula ao valor atribuído ao corpo alto e robusto. Se o comportamento social afeta a constituição da aparência física, esta última torna-se a revelação dele mesmo.

O fato de, na história da Jaburu, ser detalhado o movimento do crescimento do filhote vai ganhando cada vez mais sentido, a sua transformação em mulher aconteceu quando ele era mais crescido. Não é por um acaso que o crescimento é um assunto importante a ser narrado, pode-se dizer que ele é celebrado como um acontecimento que incide no corpo.

Numa conversa sobre casamento, Tukokian me ensinou “Tem que respeitar a esposa até ela ficar menstruada” (informação verbal)58 e afirmou que as pessoas das gerações atuais estão mais

baixinhas “Porque estão namorando cedo” (informação verbal)59. Em consonância, noutra situação

Sykian também destacou a importância dessa espera “Estão namorando a menina antes de menstruar, vai ficar baixinho” (informação verbal)60.

Aquela hipótese de Mĩkre, exposta acima, descortina-se como uma avaliação de caráter coletivo, na medida em que é recorrente esta íntima associação entre o corpo baixo e o comportamento de namorar cedo, isto é, de ter relações sexuais antes de o corpo crescer mais. Neste campo de saberes

56 (SYKIAN, aldeia Kôtikô, 2017) 57 (SYKIAN, aldeia Kôtikô, 2017) 58 (TUKOKIAN, aldeia Kôtikô, 2017) 59 (TUKOKIAN, aldeia Kôtikô, 2017) 60 (SYKIAN, aldeia Kôtikô, 2017)

88 ligados ao corpo, “namorar” antes de menstruar equivale a um comportamento prematuro por não ter esperado este desenvolvimento corporal se realizar. As condutas desdobram-se como agências ativas na maneira de crescer. O corpo como uma construção social é expoente na maneira de as pessoas panará percebê-lo.

Conversando com Pasyma, noutra ocasião, reencontrou-se com a reprodução dessa mesma percepção acerca do corpo, correlacionando a baixeza com o fato de namorar cedo “Por isso ficou baixinho, porque namora cedo” (informação verbal)61. Ele argumentou que “Estraga o crescimento,

perder a virgindade cedo” (informação verbal)62. Expressando-se em língua portuguesa, ele usou a

palavra “estragar”, sendo ela reveladora da concepção de que um crescimento não estragado é aquele que produz um corpo alto, forte e animado. Sugere que o desvio das orientações dos mais velhos, apreendidas como conhecimentos antigos produz um corpo que se revela como corrompido em relação àquele idealizado coletivamente.

A autodisciplina relativa ao comportamento é socialmente idealizada e recomendada aos mais jovens, sob a perspectiva de que ter relação sexual antes de crescer afeta o crescimento. A baixeza está se constituindo como uma recorrência, indicando a mudança no comportamento social dos mais jovens.

Quando alguém é alto, isso é percebido como comprovação da eficácia das orientações dos antigos. E a manifestação da baixeza, similarmente, é compreendida como reificação desses mesmos conhecimentos, já que justamente, são eles que não foram corporificados, isto é, praticados e assumidos.

É oportuno retomar a contribuição das reflexões de Overing (1999; 2006) e de McCallum (2013) quanto à importância dada aos conhecimentos acerca do corpo que são veiculados cotidianamente, orientando o comportamento nas relações intersubjetivas. Tais como ambas as autoras alertam, não se trata de que os saberes dos antigos se realizam como normas ou regras que sejam apreendidas como um referencial regulador do comportamento humano de caráter coercitivo. Não se reconhece a manifestação de um controle externo, centralizado ou institucionalizado, da conduta das pessoas que submeta aquele que desrespeitou as regras a um disciplinamento de comportamento. No entanto, é preciso modular que isso não implica que inexista a manifestação de alguma avaliação negativa acerca de determinadas condutas. Ela acontece sim, de modo descentralizado e contingente, mas não se manifesta em termos de uma sanção.

O fato de não serem levados tão a sério as orientações dos mais velhos tais como os antigos o faziam, é uma preocupação coletiva, uma vez que esta alteração comportamental revela-se na 61 (PASYMA, aldeia Sõkwê, 2017)

89 mudança da estatura das pessoas na comunidade, cuja baixeza não é elogiada socialmente, ao contrário, revela-se como um crescimento “estragado”, tomando como empréstimo o termo de Pasyma.

Quando Mĩkre avaliou que atualmente não tem muita gente alta, ele fez a contraposição de que “Antigo panará era grande”, a sua reflexão está em consonância com os depoimentos das pessoas mais velhas que conheceram os antigos que morreram no período do contato, no contexto da construção da BR-163 (Cuiabá-Santarém), apreendidos como bonitos porque eram fortes, animados e altos.

É feita uma contraposição dos antigos com as pessoas das gerações mais jovens quanto à incorporação estabilizada de práticas que ativam o crescimento. Ainda que reconhecida a possibilidade de uma pessoa desviar-se conscientemente destas orientações, os mais velhos permanecem ensinando aos mais jovens tais saberes acerca do corpo.

Há outras recomendações pertinentes à fabricação desse jeito de crescer idealizado socialmente. A senhora Jõkrâ ensinou que não se deve namorar durante a menstruação e avaliou negativamente, “Hoje, namora com a sua mulher e com a mulher do outro, menstruada”, em seguida, fez a associação disso com a maneira de o corpo crescer, “O antigo respeitava a mulher, era mais alto, hoje não respeita e fica mais baixo” e continuou “As pessoas estão mais baixinhas porque namoram sem esperar a menstruação acabar” (informação verbal)63.

Apesar de ações coletivas serem elaboradas visando ao crescimento tal como a festa da criança, o desenvolvimento desse jeito de crescer, alto, forte e animado, não está garantido. São requisitadas outras condutas tidas como forças atuantes nesse modo visado de o corpo crescer. Isso implica que outras forças ligadas à produção de pouco crescimento permanecem como possibilidades, notadamente, quando as orientações dos mais velhos não são seguidas.

Mais argumentos foram apresentados por Sykian, fazendo aparecer como o crescimento visado está vinculado à produção de alimento. Ele me explicou que primeiro tem que caçar, cuidar da mãe, do pai e avós, depois a mulher vai escolher ele para casar, hokin é a expressão para cuidar, sendo ela composta pela palavra ikin que significa bom, bonito e também expressa o sentimento de gostar.

Conforme discutido anteriormente, a festa da criança tem como motivação fazer o corpo crescer com ânimo e disposição, justamente para construir uma presença ativa no mundo, engajada na produção do alimento. Os argumentos utilizados por Sykian nos revelam a íntima associação deste corpo produtivo com o cuidar da mãe, do pai e dos avós. Trata-se da partilha do alimento entre aqueles que são cuidados mutuamente e cotidianamente.

90 A disposição para desenvolver as atividades que tornam possível o alimento ser oferecido e consumido neste dia-a-dia promove a consolidação de laços com quem se convive. O crescimento visado articulado à produção do alimento favorece o fortalecimento dos vínculos com a família natal.

A mãe, o pai, o avô e a avó maternos foram destacados como alvos destes cuidados cotidianos por aquele jovem que está crescendo. Não se perde de vista que dado o modelo de residência uxorilocal, a criança tende a crescer na casa dos pais da sua mãe.

Mesmo quando o rapaz casado passa a residir na casa da sua esposa, a partilha de sua caça com os seus pais não deixará mais de acontecer, perpetuando a expressão de seu afeto com aqueles que participaram intimamente de sua vida durante o seu crescimento.

Reincide a convergência com os argumentos de Overing (1999; 2006) e de McCallum (1998; 2013) tangente à importância desses afetos de cuidados construídos e consolidados no ambiente doméstico. Na forma de perceber o crescimento entre as pessoas panará, revela-se a importância dada à essa construção de laços sociais na vida íntima.

O engajamento na produção de alimento para a família natal desdobra-se como uma exibição pública, no sentido de um homem caçador ser valorizado como marido em potencial para as mulheres, pois o corpo disposto e forte é o idealizado para cuidar da esposa, dos filhos e dos sogros. Neste particular, Sykian observou que “A mulherada não olha mais se o homem é ou não caçador, casa cedo” (informação verbal)64 traduzindo-se como expressão de outro desvio em relação às orientações

dos antigos intrínsecas à fabricação do crescimento corporal.

Casar cedo é estabelecer um vínculo matrimonial sem antes ter crescido o seu corpo que, neste caso, se revelaria na necessária experiência de participar ativamente da produção de alimento para a sua família natal. Vale relembrar os argumentos que justificavam a festa da criança, se for menino é para caçar, se for menina é para pegar lenha e carregar cesto dos produtos da roça.

Em consonância com essa abordagem, compartilha-se o ensinamento de Paturi, feito na língua portuguesa, bastante esclarecedor, “Antigamente, se casava entre vinte a trinta anos, precisava se preparar mais, aprender a fazer artesanato, roça, caça, depois casava. Hoje está casando cedo com 14 e 15 anos, isso estraga tudo. Antigamente não namorava cedo, são altos, os pais que ensinam a regra” e ainda complementou, “Ninguém gosta de homem que não caça, não faz artesanato, mãe e avó ensinam a moça; o pai e o avô ensinam o moço” (informação verbal)65.

As experiências de contribuir nas atividades cotidianas ligadas à produção de alimento convertem-se em manifestações que devem antepor-se à vida conjugal. Casar cedo foi considerado em termos de morar junto com a esposa e praticar atividade sexual sem antes ter crescido mais, isto 64 (SYKIAN, aldeia Kôtikô, 2017)

91 é, de ter manifestado mais comportamentos de disposição e força, ajudando a cuidar das pessoas de sua família natal, além de aumentar de tamanho.

Registram-se as considerações do senhor Sokriti também relacionadas a esta dimensão de que faz parte do crescimento consolidar os laços de cuidados mútuos dentro da sua família natal, além de construir os laços com a família da moça com quem vai se casar: “Caçavam e pescavam para a mãe, tinha que casar devargazinho, não pode namorar logo, tinham medo de namorar, por isso os antigos eram grandes” (informação verbal)66.

As pessoas mais velhas costumam relembrar que os genros davam comida para a sua sogra, acompanhando o crescimento de sua esposa. Apenas quando ela crescia e menstruava que o marido passava a residir com ela e que esta última começava a cuidar dele também. A senhora Jõkrâ observa que desde a transferência de seu povo para o Parque Indígena do Xingu isso começou a mudar.

Faz parte de o que é compreendido como casamento a construção de laços do genro com a família da esposa expressa por meio do alimento, “ele dá comida para a mãe dela”. O enunciado de Sokriti explicita este modelo de um casamento que vai acontecendo “devagarzinho”, em que a relação sexual não é o que o determina. Antepõe-se a oferta de alimento do jovem à sogra, o que demanda a prática dele caçar e pescar.

Quando se investe numa festa sob a intenção daquele corpo crescer com disposição e força, tem-se como devir a formação de uma pessoa ativa na produção de alimento, sob esta perspectiva de construir laços de intimidade, abrangendo a família natal de origem e aquela a ser constituída pelo matrimônio. Logo, o crescimento é concebido de modo que o corpo jamais é dissociado daquilo que ele faz e pratica.

Faz parte do jeito de crescer que é visado desenvolver as ações vinculadas à produção do alimento, em que a força e a disposição realizam-se. Paralelamente, cuidar do outro estende-se como expressão de crescimento. Isso está evidenciado na explicação de Pasyma: “Só namora depois da primeira menstruação, aí casa. Antes, ele só cuida dela, faz roça e caça” (informação verbal)67.

Enfatiza-se que é sob os termos de cuidar (hokin) que as pessoas panará concebem o crescimento orientado para a grandeza, força e disposição.

Tanto o Sokriti como o Pasyma reiteram que não se pode namorar logo, dado que a importância na construção da relação está centrada em cuidar do outro. Seus enunciados contribuem para esclarecer que o casamento é uma construção de intimidade, sendo que a mesma se realiza pela oferta e partilha de alimento. Paralelamente, quando Sokriti associa isso com o fato de que “tinham medo

66 (SOKRITI, aldeia Sõkwê, 2017) 67 (PASYMA, aldeia Sõkwê, 2017)

92 de namorar, por isso os antigos eram grandes”, é revelado que crescer alto é ativado pelo não namoro antes de construir laços sociais com a família da esposa.

Mesmo que reincida uma centralidade à autodisciplina de não namorar cedo, observa-se que a questão é mais ampla, porque trata-se de articular o não namoro com a prática de caçar, pescar e ofertar alimento. A dedicação à produção do alimento não é em si mesmo uma agência no crescimento corporal, mas crescer com disposição e força para realizá-la o é.

Compreende-se, portanto, que a produção do alimento é um argumento que faz parte da concepção de crescimento. Ademais está situada no corpo a própria condição disso se realizar socialmente, pois precisa de ânimo para tanto. É neste sentido que crescer é coextensivo à produção de alimento e de pessoas.

Não é inoportuno relembrar que a Jaburu quando se transformou em várias mulheres, ela o fez para cuidar do homem, porque ele era sozinho e ninguém o ajudava. A preparação de alimento aparece na narrativa enquanto um episódio que antecedeu a consolidação dos laços conjugais. O casamento aparece na história como uma construção gradativa, “devagar”. Cuidar um do outro esteve associado ao crescimento e ao matrimônio.

Conforme o enunciado de Paturi o diz, faz parte do cotidiano familiar, o pai e o avô ensinarem ao menino; a mãe e a avó, à menina a cuidar do outro. Contudo, durante o crescimento é incentivado cuidar (hokin).

Mais uma vez é reificado que a forma de conceber o corpo e, sobremaneira, a fabricação dele associada a ela é central na constituição da práxis social (SEEGER et al..., 1987; RIVAL, 2005). No entanto, discute-se aqui, particularmente, a potência de uma correlação entre a maneira de se conceber o crescimento do corpo e a construção da socialidade que, igualmente, converge para a perspectiva de o corpo ser um objeto de pensamento. A fabricação do corpo que está em relevo, de um lado, incide na própria aparência física do corpo, no seu aspecto antropomórfico, ser alto ou baixo; de outro, no comportamento dele; ser disposto e forte.

Se a noção de corpo bonito é uma construção social e que nas diferentes coletividades humanas, vigoram pontos de vista distintos; põe-se em relevo que cuidar do outro faz parte de o que é idealizado na formação dos corpos panará. Põe-se em evidência a importância dada em fazer crescer um corpo que se torne capaz de cuidar de sua família natal e daquela de sua esposa.

No documento O mundo Panará em criação (páginas 86-92)