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Crescer antes de casar

No documento O mundo Panará em criação (páginas 73-80)

CAPÍTULO 2 O CORPO QUE CRESCE

2.3. Crescer antes de casar

Schwartzman (1988) também coloca em relevo o fato de os mais velhos serem valorizados na comunidade panará. Ele constrói um forte vínculo deles com a sua realização de ter reproduzido muitas pessoas, e é sob os termos de uma relação social que o autor aborda isso, porque ele se remete à dinâmica de como são construídos os laços de afinidade entre as pessoas que prescinde das trocas interclânicas, por meio das quais se realizam os laços matrimoniais, dada a prescrição exogâmica.

É extremamente proibido uma pessoa casar-se com alguém que é de seu clã. Ĩtõ é o termo usado para irmãos e aqueles que são de semelhante descendência matrilinear, independente de serem da mesma unidade doméstica, podem ser tratados como irmãos classificatórios. Desse modo, seria uma relação incestuosa o laço conjugal entre aqueles que são da mesma casa (clã).

A referência clânica é matrilinear, logo, todos os filhos e as filhas das irmãs permanecerão sendo do mesmo clã, isto é, irmãos entre si. Já os filhos e as filhas dos irmãos (B) serão, necessariamente, do clã da mulher com quem eles se relacionaram sexualmente, ou com quem eles efetivamente se casaram, dada a descendência matrilinear. Ao tempo em que se constrói matrimônio com pessoas de um clã diferente da mãe de ego, admite-se o casamento com quem pertence ao mesmo clã do pai de ego.

Ainda que o marido ou a esposa possam partilhar a mesma identidade clânica do pai de seu cônjuge, é prescrito não criar laços conjugais com pessoas que sejam da mesma família do pai de ego. A obrigatoriedade exogâmica é modulada por essa restrição, pois os filhos deverão fazer alianças matrimoniais com uma unidade doméstica distinta daquela ligada à descendência paterna.

Seguem dois exemplos que retratam o matrimônio com alguém que partilha da mesma identidade clânica do pai de seu cônjuge. A letra A representa krenõwãtêra, a B, kwakjatãtêra, a C, kwasôtãtêra e a D, kuosinãtêra.

Figura 5 – Esposa do mesmo clã do pai do marido

74 A figura 5 apresenta o exemplo de o marido se casar com uma esposa que é do mesmo clã do pai dele e que, todavia, ela pertence a uma família distinta daquela ligada à descendência paterna dele.

Figura 6 – Marido do mesmo clã do pai da esposa

Fonte: Construção da autora

A figura 6 retrata o exemplo de a esposa casar-se com uma pessoa do mesmo clã do pai dela, mas que pertence a uma família diferente daquela de sua descendência paterna. Embora esses casos apresentados nas figuras 5 e 6, concorre a criação de laços matrimoniais com pessoas que pertençam aos clãs distintos daqueles do pai e da mãe, de acordo com a figura 7, abaixo.

Figura 7 – Matrimônios com clãs distintos daqueles do pai e da mãe

Fonte: Construção da autora

Feitas tais considerações, retoma-se a discussão de que a fabricação dos corpos é considerada por Schwartzman (1988) como parte deste movimento de construção de trocas interclânicas. Neste particular, o autor dá ênfase ao fato de que as mulheres crescem, permanecendo na sua família natal, já os homens experimentam uma atenuação destes laços, já que numa certa fase de seu desenvolvimento residem na casa dos homens.

De modo articulado, o autor considera que depois os homens vivem junto à família de sua esposa que, por sua vez, é de outro clã, notadamente após a menstruação, implicando que eles residem

75 em outra região clânica da aldeia, diferente daquela que é de sua família natal, dada a uxorilocalidade37.

Relativo à casa dos homens, esclarece-se que na formação de uma aldeia, as casas são construídas formando um círculo e no centro da mesma ela é construída. Na expedição dos irmãos Villas-Bôas, o fotógrafo Pedro Martinelli participou fazendo um registro das aldeias antigas da região do rio Peixoto de Azevedo, antes do contato efetivar-se. Por meio de seu acervo fotográfico, podemos testemunhar, na figura 8, a construção de duas casas dos homens (ikâpy) construídas no centro da aldeia. Uma delas é para os homens que pertencem ao grupo sôtãtêra, a outra para os que são do kjatãtera38.

Figura 8 - Aldeia antiga, ao centro, casas do homem Figura 9 - Casa do homem em Nãsêpotiti, 2012

Fonte: ARNT et al... (1998) Foto: Acervo da autora, aldeia Nãsêpotiti, 2013

Além de a unidade da aldeia ser dividida em quatro clãs, kuositãtêra, krenõwãtêra, kwakjatãtêra e kwasôtãtêra, ainda incide a possibilidade de as pessoas serem divididas em dois grupos, sôtãtêra e kjatãtêra. Em todas as unidades domésticas, há aqueles que são de um e de outro.

Conforme me foi explicado, o primeiro filho homem é do grupo diferente daquele que o seu pai pertence, distinto do segundo filho masculino que partilha o mesmo que o de seu pai, já o terceiro deste mesmo sexo é do diferente daquele de seu pai e, assim vai alternando39. A esposa, por sua vez, 37 O modelo é de que os homens devem iniciar a sua vida conjugal na casa dos pais de sua esposa até os seus filhos crescerem um pouco. Mesmo quando eles constroem a sua própria casa, posteriormente, ela será localizada na região do clã de sua esposa (W), mantendo relações de vizinhança com as irmãs casadas de sua mulher (WZ) e com os seus sogros (WF e WM). Em cada região da aldeia, portanto, avizinham-se as casas das pessoas, cujas mulheres são da mesma descendência clânica.

38 Estes nomes referem-se às partes que são cortadas do pé de buriti (inkwapâri) para fazer duas toras (inkwa), as quais utilizam para desenvolverem as corridas com elas, uma para cada grupo. Sôtãtêra refere-se ao pedaço que fica próximo da folhagem e kjatãtêra é aquele mais próximo do chão. Esclarece-se que na nomenclatura das partes de uma árvore,

pâriarê é a raiz e pârikiati é aquele pedaço mais imediatamente perto da terra, o qual é inutilizado quando cortam as

toras e, sô é o nome para folha. Então, os nomes dos grupos fazem menção direta à folha (sô), sôtâtêra, e ao começo do tronco (pârikjati), kjatãtera. A palavra kjati é muito utilizada nas conversas corriqueiras para dar o sentido de começar, iniciar. Podemos, inferir, portanto, que kjatãtera refere-se, justamente, àquela parte mais imediatamente ligada ao começo do tronco que nasce e aparece acima da terra.

39 Estas informações etnográficas foram reafirmadas mais de uma vez, indicando que há uma alternância no pertencimento das pessoas de uma família a cada um desses grupos por ordem de nascimento. No entanto, é difícil afirmar que se trata

76 pelo matrimônio, necessariamente, pertencerá ao semelhante grupo de seu marido. Todavia, se houver separação, ela poderá escolher mudar.40

Schwartzman (1988) desenvolveu o seu estudo numa época em que este modelo do deslocamento dos rapazes para a casa central, anterior à mudança efetiva para a casa da esposa realizava-se, bem como eu mesma pude testemunhar isso entre 1998 e 1999 quando trabalhava ativamente junto à educação escolar na aldeia Nãsêpotiti.

No entanto, durante a minha pesquisa de campo, em 2017, não observei a continuidade dessa prática nas aldeias que é recente a divisão delas, podendo retratar um momento de transição e, não necessariamente, uma alteração consolidada deste modelo apresentado por Schwartzman (1988).

Apesar dessa suposição, é importante considerar que de fato, incidem algumas mudanças, notadamente, a de que alguns rapazes estão se casando cedo e, por isso, eles não estão dormindo na casa dos homens, o que reitera a íntima relação da residência dos rapazes no centro como parte de um crescimento antecedente ao matrimônio, conforme apontado pelo autor. E casar antes de vivenciar esta passagem é conotado como “casar cedo”, sinônimo de vivenciar relações sexuais antes de crescer41, o que se constitui como um fundamental foco de interesse para a minha discussão em curso.

Apesar dessa referida alteração ligada à residência na casa dos homens, a abordagem de Schwartzman (1988) permanecerá sendo aqui tratada, contribuindo com a discussão em desenvolvimento acerca do crescimento das pessoas, para em seguida, pontuar outras questões que possam expandir esta compreensão por ele já investida, em especial neste argumento voltado à importância de crescer primeiro antes de permitir-se a fazer mais pessoas.

Sob a condição de os homens residirem na casa da esposa, ter filhos é parte intrínseca do matrimônio, o crescimento e o posterior casamento destes últimos são incorporados na análise do

de um sistema de metades ou de classes. Por enquanto, enfatiza-se que são dois grupos que se alternam, mantendo-me afastada de um diálogo com alguma teoria pertinente.

40 Mesmo que numa aldeia seja construída apenas uma casa dos homens (e não duas), há a divisãointerna nela, expressa no fato de que aqueles kjatãtêra concentram-se de um lado, aqueles sôtãtêra de outro, oposto. Embora eu não tenha realizado um estudo e reflexão aprofundados acerca destes grupos, nota-se que eles aparecem explicitamente nas corridas de tora de buriti, onde ambos competem e nas festas envolvendo a coletividade. A preparação dos alimentos pelas mulheres, a disposição deles na casa dos homens e a forma de consumi-los é orientada por uma lógica dualista, circunscrita por esses dois grupos.

41 Até mesmo as reuniões cotidianas que acontecem sistematicamente no alvorecer e, à noite, nas aldeias não se desenvolvem mais na forma como pude testemunhar há cerca de 20 anos atrás na aldeia Nãsêpotiti, provocando-me um estranhamento muito grande quando isto era tão marcante no cotidiano da vida comunitária. A balbúrdia do vozerio masculino que ecoava em Nãsêpotiti anunciando a ação dos homens mais velhos (toputũ) de todos os clãs no centro contrapunha-se às reuniões mais silenciosas e discretas que pude observar ao longo do meu convívio nas aldeias, em 2017. Sâsuâri é o nome dado quando os homens se juntam e gritam na casa dos homens (ikâpy), ao amanhecer, cerca de quatro, cinco da manhã. A atual divisão das aldeias promoveu uma dispersão dos homens mais velhos nas quatro aldeias afetando, contudo, essa presença tão pronunciada daquelas pessoas mais crescidas. Agora, são poucos em cada aldeia, ainda assim, a presença deles é marcada nas oratórias (pẽpa) que permanecem se desenvolvendo no alvorecer e na vida noturna. Supõe-se que o crescimento dos homens nessas aldeias promoverão a reativação de tal vitalidade na casa dos homens no centro de cada uma dessas aldeias novas.

77 autor como bases para afirmar que os mais velhos se tornam como tais por este engendramento da multiplicação de pessoas.

Em sua abordagem, incide um foco na construção de um modelo social de como as pessoas tornam-se fabricadas, pondo em evidência a exogamia e a uxorilocalidade. Logo, as relações sociais, particularmente, as interclânicas, tornam-se as condições de multiplicar pessoas.

Pode-se inferir, contudo, que a multiplicação do corpo é considerada pelo autor, com a ressalva de que é sob os termos de a construção de relações sociais a circunscreverem, notadamente, aquelas vinculadas ao matrimônio.

Os ritos ligados à fabricação social do corpo também foram valorizados pelo autor nesta discussão acerca do crescimento, e ele os retratou como um movimento de socialização que reflete, paralelamente, a maneira de uma estrutura social ser reproduzida, enquanto um referencial sistêmico e totalizante. A pesquisa de Schwartzman (1988) desdobra-se como registro destes ritos, na medida em que alguns deles não são mais praticados tais como a furação do lábio, as escarificações nas coxas e aquelas feitas nos tórax e nas costas.

Destaca-se de seu estudo que a furação de orelha é descrita como sendo a primeira operação praticada na criança, com cerca de 5 e 6 anos, tanto em menina como em menino, observando que a mesma se desenvolve nas casas periféricas e analisando que incorre antes de os meninos residirem na casa dos homens (ikâpy). A furação do lábio é descrita como tendo sido praticada apenas nos meninos, podendo ser feita tanto na casa da família natal como na dos homens. Envolve aqueles em torno de 8 a 10 anos. Todavia, Schwartzman (1988, p. 176) esclarece que desde a convivência com os Suyá no Parque Indígena do Xingu, iniciou-se a recusa em furar lábio e até mesmo o abandono do ornamento nele, considerado como feio. A escarificação na coxa era praticada nos rapazes e nas moças, quando tinham cerca de 12 a 14 anos executada na roça, depois da colheita do amendoim42

(SCHWARTZMAN, 1988, p. 177-78).

Na análise de Schwartzman (1988) em torno dessas práticas voltadas à alteração do corpo, percebeu-se que os ritos de furação no lóbulo e no lábio assumem o sentido de reforçar os laços consanguíneos, o primeiro envolvendo a incorporação de pessoas na família natal e o segundo, a incorporação dos meninos na casa dos homens (ikâpy), localizada no centro da aldeia, considerando o momento de os rapazes dormirem lá e receberem ensinamentos dos mais velhos.

42 Esta intervenção corporal não é mais praticada e muitas pessoas depõem que sentiam medo quando ela acontecia. Atualmente, os mais velhos e as mais velhas possuem as marcas nas coxas de tais escarificações, além de homens e mulheres adultos. Elas eram feitas várias vezes nas mesmas pessoas, nas colheitas anuais do amendoim e de fato, entre os senhores e as senhoras que apresentam estas cicatrizes na coxa, elas são mais grossas. Já nos adultos, elas são mais finas, sinalizando a interrupção da continuidade destas práticas. Aqueles nascidos na TI. Panará não apresentam tais marcas definindo o rompimento deste rito. Questionando as pessoas sobre o motivo que mobilizava a escarificação na coxa, todos respondiam que era para deixar a coxa forte.

78 A escarificação na coxa marca fisicamente a relação com os parentes matrilaterais e patrilaterais, por serem formadas duas linhas paralelas por meio dessa intervenção física, cada uma é abordada como se referindo a um destes dois vínculos parentais. Portanto, nesse rito é evidenciado o valor da multiplicação de pessoas, celebrando as relações de afinidade as quais se associam à circulação dos homens entre os clãs, pelo matrimônio, fundada na separação deles de sua família natal.

A fabricação social do corpo é explorada sob a dimensão de uma agência externa que constrói marcas físicas nele, alterando a aparência com furo na orelha, no lábio e com as escarificações. É importante ainda considerar que Schwartzman (1988) também se preocupou em estudar esses ritos em que tais intervenções nos corpos dos mais jovens eram executadas, exclusivamente, pelas pessoas mais velhas, o que é percebido pelo autor como um reconhecimento social de que eles tenham um poder transformativo sobre as pessoas, contribuindo para a formação de um corpo bonito, forte e grande.

O autor enfatiza que as cerimônias ligadas à fabricação do corpo produzem dor, o que é recorrente em outras ações cotidianas que os mais velhos também desenvolviam nas pessoas mais jovens como bater nas costas com couro de anta ou bater no tornozelo e perto do joelho com osso deste mesmo animal, visando à produção de um corpo forte, especialmente, para os ossos ficarem duros (sitâti ahê). Promoveria força para os homens terem bom desempenho na corrida de tora, por exemplo, e para as mulheres propiciaria força para carregarem os cestos com produtos da roça, entre outras coisas.

A fim de ressaltar a importância da dor como forma de o corpo ficar forte, ele recupera que o medo associado ao sofrimento também pode engravidar as mulheres. Schwartzman (1988, p. 204) afirma que se o marido bate na esposa, ela fica triste e pode engravidar por isso. O autor conclui que as ações dos mais velhos são concebidas como forças transformativas para as pessoas panará, ao gerarem dor e medo nos mais jovens.

A partir das considerações das contribuições desse autor, ainda me estendo para explorar outros aspectos tangentes à maneira de se conceber o crescimento, fazendo aparecer a valorização que é dada ao evento do crescer. São desenvolvidas práticas sociais que pretendem intensificar o aumento das pessoas, sendo que as justificativas dada a elas abrangem, igualmente, o favorecimento à procriação e à construção de um corpo forte e bonito.

O crescimento corporal aparece como uma pauta para as pessoas panará, valorizada e percebida como passível de um investimento social, desdobrando-se na presente formulação de que há uma forma de fazer crescer, reconhecida naqueles contextos sociais de ação que são construídos em função

79 desse interesse. Inscreve-se, de um lado, a percepção do crescimento como um atributo inerente do corpo, e de outro, como um evento articulado às agências sociais que modulam a forma de crescer. Na história da Jaburu, conforme estudada acima, é descrito o crescimento do filhote em cada acampamento, centrando a atenção ao aumento do corpo e ao crescimento de suas penas, revelando tal valorização. E, paralelamente, essa história e a da Velha, em comum, indicam que o crescimento ligado à procriação revela-se na alteração corporal, porque crescer até a fase adulta foi decisivo para remarcar quando a aliança matrimonial com os homens se desenvolveu, engendrando a gravidez e o aumento da população.

Somado a isso, a história da Velha, notadamente, reporta ao estatuto dos mais velhos como socialmente valorizado, dada a noção de um corpo que cresceu e gerou muitas pessoas. Conforme já discutido, se foi a Velha que se transformou em muitas mulheres, sugere a intrínseca relação entre mulher mais crescida e pessoas multiplicadas dela.

Na construção de laço matrimonial inscreve-se a valorização da alteração corporal, diferente daquele provocado pela furação da orelha ou escarificação nas coxas. Conforme proposto aqui, o crescimento inclui-se como condição subjacente à dinâmica das trocas inter-clânicas, as quais já exploradas nos trabalhos de Schwartzman (1988) e de Ewart (2000).

O crescimento como referência ao exercício das atividades sexuais reincide na história de duas crianças irmãs consideradas towmãpã (pajé), justamente pela capacidade de elas modificarem a sua forma corporal. Entre as diversas transformações manejadas por elas, destaca-se, neste momento, aquela de elas virarem adultas visando à relação sexual com a mulher Chuva. Quando as crianças foram visitá-la, manifestaram o desejo em namorá-la e a Chuva advertiu que elas eram muito novas para isso. Então, ambas afastaram-se em direção à mata onde decidiram virar pessoas grandes para satisfazerem o seu desejo.

Nota-se que, independentemente da construção de laços matrimoniais, esteve em pauta a relação entre transformação e a prática sexual, sendo que esta última, por sua vez, aparece como idealizada às pessoas adultas. Para essas crianças towmãpã (pajé) crescer foi possível ser manejado. Inclusive, na história, elas mesmas voltaram a ser crianças e retornaram à aldeia onde comunicaram as suas aventuras. Ao conceber os “pajés” como crianças, parece remeter-se ao devir de muitas transformações que são previstas nos corpos infantis que, por sua vez, se tornarão jovens, pouco adultos, adultos de verdade e velhos.

As histórias da Jaburu, da Velha e das duas crianças towmãpã (pajé) colocam em evidência o crescimento como uma transformação. A história das crianças põe em relevo a percepção de uma íntima associação entre crescer e virar, pois é comum a formulação de que criança vira jovem, jovem vira adulto e adulto vira velho.

80 O fato de a Jaburu ter se transformado numa fase em que já estava adulta (grande e com asas) retrata que não se trata apenas de uma metamorfose corporal de ave em gente, mas de um crescimento do corpo que, em si mesmo, é visto como uma transformação.

Este aspecto de o crescimento ser selecionado como um evento relevante na maneira de perceber o corpo é reconhecível num depoimento enunciado por Perankô (informação verbal)43. Um filho seu morreu quando era criança (prĩ). Ele contou que teve a experiência de vê-lo enquanto kypaswãkiara (alma do morto) e enfatizou que ele estava rapaz (piãtuê), argumentando que o crescimento não é interrompido mesmo quando a pessoa morre. Enquanto sinaliza a ideia de a alma ter um corpo, o que discutiremos mais noutro capítulo, importa chamar a atenção para o evento de o crescimento ser transversal entre os vivos e os mortos, constituindo-se como manifestação inerente ao corpo.

Igualmente, Sykian, em outra ocasião, explicou-me que se morrer quando criança “O espírito cresce, vira adulto e vira velho” (informação verbal)44. Nessa conversa, ele se expressou em língua

portuguesa. Reincide a noção do crescimento como algo em movimento, revelando-se como expressão da vitalidade do corpo. Torna-se significativo o uso do verbo “virar” para descrever os deslocamentos entre as fases de rapaz/moça, pouco adulto(a), adulto(a) de verdade e velho(a). Crescer é uma transformação do corpo, por isso, é adotada a expressão “virar” em língua portuguesa.

No documento O mundo Panará em criação (páginas 73-80)