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Gente alta é parente de Jaburu e gente baixa é parente de Anta

No documento O mundo Panará em criação (páginas 42-61)

CAPÍTULO 1 – A DIFERENÇA NOS CORPOS HUMANOS

1.2. Gente alta é parente de Jaburu e gente baixa é parente de Anta

Conforme ensinou Sokriti: “Mulheres vieram da Jaburu, mulheres vieram da Velha; mulheres vieram do Anta” (informação verbal)8. Em suas palavras: Nãpri pẽ ĩkjara, twatũ pẽ ĩkjara, Ikjyti pẽ

ĩkjara (informação verbal)9. Mulher na língua panará é ĩkjêj e no plural é ĩkjara (ĩkjêj + ara: plural);

jaburu é nãpri10; velha é twatũ e anta é ikjyti.

As histórias do Anta, da Jaburu e da Velha podem ser contadas de modo separado. No entanto, mesmo que o narrador desenvolva a narrativa de uma delas, ao terminá-la, ele vai fazer considerações de alguns aspectos ligados às outras duas, revelando de que modo é feita a conexão entre elas.

Existe ainda o clã krenõwãtêra que, embora assuma a mesma importância social que os demais referidos acima, ele não se vincula, do mesmo modo que os três supracidados, às histórias explicativas do aparecimento da mulher humana na realidade panará.

A descendência clãnica é matrilinear articulada à exogamia como uma prescrição matrimonial, o modelo residencial é uxorilocal, envolvendo os quatro clãs, kwakjatãtêra, kuosinãtêra, kwasôtãtêra e krenõwãtêra que, entre si, experimentam trocas interclânicas envolvendo matrimônio, criação de crianças, produção e circulação de alimentos entre outras relações de dádiva que são construídas entre os mesmos.

As experiências de alteridade, intrínsecas à construção da coletividade panará, aparecem imbrincadas nestas narrativas que abordam o aparecimento da mulher, pois elas apresentam as inter- relações dos homens ancestrais com distintos outros como o Anta, a Jaburu e a Velha que, por sua vez, circunscrevem o pessoal dos clãs kwakjatãtêra, kuosinãtêra e kwasôtãtêra respectivamente. A

8 (SOKRITI, 2017, tradução nossa) 9 (SOKRITI, 2017, grifo nosso)

10 As pessoas panará adotam o nome Nãpri, referindo-se ao Jaburu, uma ave também conhecida como Tuiuiú, cujo nome científico dado a ela é Jabiru mycteria. Com a ressalva de que Nãpri, para as pessoas panará, é um nome próprio, pois nomina uma pessoa, conforme será discutido, esclarece-se que em nosso debate, quando o nome Jaburu for utilizado, ele refere-se ao Nãpri.

43 partir delas, inclui-se ainda, o desenvolvimento de um debate acerca das concepções de casamento e do crescimento nos capítulo seguintes, além da diversidade de formas humanas corporais, cujo tema é debatido neste primeiro capítulo.

Quanto ao clã Krenõwãtêra, ele pode ser traduzido como “Gente do buraco” ou “Gente sem casa”. Suspeita-se que ele possa referir-se a um pessoal mais antigo do povo Panará que sofreu uma depopulação em função de uma relação com o inimigo, contornando a condição de vida “sem mulheres” e, paralelamente, que o aparecimento das mulheres decorrem das relações com distintos outros que converteram-se na construção dinâmica da coletividade panará. No entanto, não houve fôlego para desenvolver uma pesquisa que fundamente esse argumento.

Ainda assim, essa suspeita está relacionada à hipótese que eu discuto no capítulo 4, notadamente, a de haver uma ligação direta entre o clã krenõwãtêra e a história daquelas pessoas que, na ancestralidade, vivenciaram a experiência de morarem por um tempo num buraco em decorrência da queda no céu, articulada ao conflito que os homens panará tiveram com o Lua que, por ter sido atingido por uma flecha de caçador, modificou a relação de sua aproximação para uma de distanciamento, marcada pelo seu afastamento no céu, tornando este último mais longe e, por extensão disso, afastou o Lua do convívio com as pessoas panará.

O pessoal do buraco (krenõwãtêra), então, pode referir-se a essas pessoas que viveram um período sem casa, em função de uma relação de hostilidade com alguém que se tornara inimigo. Feitas tais considerações, retoma-se o objetivo deste primeiro capítulo que é centrar-se nas histórias que explicam o aparecimento da mulher humana na coletividade panará.

Quando as histórias da Jaburu e da Velha são narradas, é observado que um corpo virou muitas pessoas. Na história da Velha, as mulheres se transformaram dos pedaços de carne que foram cortados de seu corpo pelos homens; na história da Jaburu, as mulheres nasceram das penas de jaburu que o homem criava em seu acampamento de pesca. Uma retrata a metamorfose de gente em gente, a outra de bicho em gente. Essas transformações corporais incidentes nos corpos da Velha e da Jaburu aconteceram, por sinal, na mesma época. A da Velha foi na aldeia e a da Jaburu no acampamento na mata. Ambas as histórias são abordadas de modo inter-relacionado, elas convergem para essa temática central que é o aparecimento multiplicado das mulheres panará.

A conexão que se costuma pontuar entre as histórias da Jaburu e da Anta está centrada nas características físicas do corpo panará, destacando que as pessoas altas descendem da Jaburu e as baixas da Anta. As três histórias são consideradas conjuntamente quando o narrador explica que Jaburu é kuosinãtêra, Anta é kwakjatãtêra e a Velha é kwasôtãtêra, reiterando que estes nomes em itálico referem-se aos três dos quatro clãs da coletividade panará. Nesta ocasião ainda articulam as características físicas das pessoas com os clãs dos quais pertencem, sintetizando que gente

44 kuosinãtêra é alta porque descende da Jaburu; gente kwakjatãtêra é baixa porque vem da Anta e, gente kwasôtãtêra é misturada, tendo pessoas altas e baixas.

As histórias da Jaburu e da Velha, em particular, relatam como as mulheres apareceram na vida dos homens panará, tornando-se partes de seu cotidiano e quais foram as mudanças daquela realidade ancestral, na qual elas não existiam. Ambas põem em relevo o fenômeno da transformação corporal como condição dessa presença feminina no mundo panará.

A história da Jaburu, conforme narrada por Sokriti, será agora partilhada aqui. Ainda que este contar se realize por meio da escrita, sublinha-se a sobrevivência de uma relação entre aquele que sabe e aquele que aprende que contornou a condição da minha escuta. Impõe-se nessa narrativa que segue o interesse em construir uma compreensão sob a perspectiva de não superar a minha posição de aprendiz, admitindo que a compreensão efetiva demanda o crescimento do corpo articulado às vivências no seio da vida comunitária panará, conforme o que pôde ser ensinado pelas pessoas deste povo.

Sokriti contou que um homem tinha pego um filhote de jaburu na mata para criar. Logo em seguida, ele destacou que naquele tempo não existia mulher, apenas homens, e depois, fez a ressalva de que tinha uma única Velha na aldeia. Prosseguiu dizendo que o homem saiu para pescar na mata, levando o filhote de jaburu consigo, descrevendo-o como sendo pelado ainda, sem asa e sem penas.

O pescador cuidava deste filhote todos os dias, lhe dando peixe cru, até um dia se cansar e decidir acampar perto de um lago para a ave se alimentar. No primeiro acampamento “começou a aparecer pena no corpo” e no segundo “Jaburu começou a crescer, ficar grande”, explicou, complementando, “cresceu muito, nasceu pena na asa, nasceu pena no corpo todo”. Neste acampamento, o homem começou a questionar porque não tinha ninguém fazendo comida para ele, lamentando que se virava sozinho, preparando kuykiampo (torta de mandioca recheada com carne) e assando-a. Expressava o seu desejo por ajuda. No terceiro acampamento a Jaburu pensou: “Ele está sofrendo, trabalhando sozinho, agora a gente vai ajudar a fazer comida para ele”. E então, as penas começaram a virar mulheres.

Enquanto o homem pescava, a Jaburu se transformou em mulheres e elas socaram a mandioca no pilão. No final da tarde, antes dele retornar, elas viraram penas novamente e a Jaburu retornou ao ninho. O pescador chegou e estranhou: “Quem fez torta de mandioca para mim, quem fez comida?”. No outro acampamento, ele saiu novamente para pescar e as mulheres se transformaram e prepararam a torta de mandioca novamente. Retornando, ele encontrou a comida preparada para ele, novamente surpreso porque não sabia quem a tinha feito.

Saiu daquele acampamento com o seu filhote e foram para outro lugar, onde o homem deixou a Jaburu e partiu para pescar. Porém, já andado certa distância, ele escutou o barulho de socar no

45 pilão, ficou assustado e pensou: “Será que tem gente aí?”. Ele se aproximou devagarzinho e viu gente passando. “Quem são essas pessoas?”. Neste momento Sokriti enunciou: “Era Jaburu fazendo comida para ele”. Aí, o homem foi se aproximando e a Jaburu não sabia que ele estava pertinho e escondido. Quando a Jaburu o viu, surpreendeu-se e não tinha mais como fugir dele. Nessa ocasião, todas as mulheres Jaburu olharam para ele, que lhes perguntou: “São vocês que fazem comida para mim?” e elas responderam “Sim, fomos nós”.

Após este encontro, as mulheres Jaburu não viraram mais, permaneceram como humanas e elas justificaram: “Ficamos com pena de você, só você pesca para nós, a gente pensou em te ajudar a fazer comida, só você traz peixe para gente, por isso pensamos em virar gente”.

Depois deste diálogo, Sokriti explica que as penas viraram adultos, homens e mulheres; o resto, as penugens, em particular, viraram crianças, meninos e meninas, aumentando a população. A Jaburu não tinha mais o bico dela, as asas viraram braços, o corpo virou gente, sumindo11 a forma corporal da jaburu-ave, na abordagem do narrador. Compreende-se, no entanto, que a jaburu-ave não sumiu porque ela, ao se transformar em mulheres, permanece no mundo, sendo a altura corporal antropomórfica a revelação de sua presença.

O pessoal que virou da Jaburu começou a construir casas formando uma aldeia, enquanto o homem foi pescar. “Os jaburus pensaram na divisão em kwasôtãtêra, krenõwãtêra, kuosinãtêra e kwakjatãtêra”. Sokriti explicou que “A casa da Jaburu é kuosinãtera, o pessoal não tem barriga, quem é da Anta é baixo e gordo, é o pessoal kwakjatãtêra” (informação verbal)12.

Nesta oportunidade, chama a atenção o fato de que as pessoas panará chamam de “casa” esses referenciais clânicos, nos remetendo ao debate de Lea (1993), baseado em sua etnografia junto ao povo Mebêmgôkre (Kayapó), também do tronco linguístico Jê. A autora, ao nominar Casa com letra maiúscula, enfatiza o aspecto de ela ser um importante referencial na construção da pessoa, sob o sentido de que o lugar de origem natal está associado às específicas riquezas imateriais que, por sua vez, são extensões dele. Em decorrência disso, a descendência clânica de ego desdobra-se como uma identidade vinculada aos domínios de particulares saberes ou nomes pessoais ou papéis sociais, por exemplos, que estão associados ao seu lugar natal. Ao deslocar-se de uma abordagem que reduz a casa como expressão de um espaço social periférico da aldeia, ou até mesmo como uma edificação, Lea (1993) explora essa íntima ligação entre Casa e patrimônios sociais, os quais são inseridos em relações de dádivas entre as pessoas e que, por sua vez, tendem a retornar ao seu lugar de origem13.

11 Pĩtori foi o verbo utilizado sob o sentido de sumir, ao descrever este momento de a jaburu-mulher transformar-se em mulher-jaburu. Apresenta a noção de aquele corpo zoomórfico desaparecer, deixar de se realizar como tal, fixando-se na forma humana.

12 (SOKRITI, aldeia Sõkwê, 2017, tradução nossa) 13 Ver Lea (1993)

46 Nesta pesquisa, pode-se inferir uma íntima relação entre Casa e histórias dos antigos, fazendo o lugar de origem configurar-se como aquele que conecta as experiências da ancestralidade ao tempo atual, pois nascer na casa kuosinãtêra significa descender daquela filhote de jaburu que cresceu e se tornou mulher humana. Paralelamente, a Casa aparece constituindo corpos porque conforme afirma Sokriti, o pessoal deste referido clã não tem barriga.

O clã kwasôtãtêra, por sua vez, é apreendido como vinculado à história da única senhora ancestral que, cansada de namorar todos os homens, os orientou para ser cortada em pedaços, sob a perspectiva de que cada um deles se transformaria numa mulher para os homens casarem-se com elas. Os corpos das mesmas são tomados como misturados, abrangendo estaturas diversificadas. Já o clã kwakjatãtêra remete-se à relação amorosa de uma mulher ancestral com o Anta que, traindo o seu marido, engravidou-se de seu amante, formando a Casa de pessoas caracterizadas como baixas e gordas14.

Dando prosseguimento à narrativa da Jaburu, os homens que tinham ficado na aldeia começaram a sentir falta daquele pescador, decidiram procurá-lo na mata, já fazia muito tempo que ele não retornava. Passaram pelos lugares do primeiro e segundo acampamentos até avistarem uma aldeia com muitas casas, questionando: “De onde vieram essas pessoas, têm muitas casas”. Retornaram para aldeia, ficaram com medo e chamaram mais pessoas para os acompanharem até aquele lugar. Quando chegaram perto daquela grande aldeia, eles viram uma tora de buriti que tinha sido carregada e se perguntaram: “O que será que eles são, vão nos atacar? Chegando perto, as mulheres os avistaram e gritaram: “Eles estão chegando, eles estão chegando”.

Um velho foi em direção à casa dos homens no centro da aldeia para receber o pessoal que também foi se direcionando ao centro. As mulheres também se juntaram para ver quem eram os visitantes. O marido da Jaburu lhe disse: “Vocês estão vendo? Foi a Jaburu que virou gente, eu pensei que era bicho, eu criava para mim, mas era gente, este pessoal todo virou da Jaburu. Adulto, velho, todos são Jaburu”. Depois os homens contaram o que aconteceu com a senhora na aldeia, que ela também se transformou em várias mulheres. Os homens gostaram das mulheres da aldeia dos jaburus e se casaram com elas. Sokriti termina a história afirmando “Kuosi é muito alto porque são Jaburu e kwakjatãtêra é Anta, por isso são baixos” (informação verbal)15.

Essa narrativa foi desenvolvida na língua panará, a palavra pan foi a adotada para indicar gente, pronunciada no momento em que a mulher se transformou deixando de estar como ave. Além de

14 Nas minhas experiências de interlocução com várias pessoas panará, a especificação de características físicas foi sempre reportada ao pessoal dos clãs kwakjatãtêra, kwasôtãtêra e kuosinãtêra. Não aconteceram manifestações sobre características físicas que remetessem ao pessoal krenõwãtêra, particularizando-o como um distinto outro.

47 significar “gente”, pode ser usada sob os sentidos de viver, morar, permanecer e ficar. A construção gramatical, Pan Panara ahê, foi utilizada pelo narrador Sokriti e retrata como aconteceu o fenômeno da transformação experimentado pela Nãpri (Jaburu). Ahê é usado para expressar uma agência por este termo aparecer coligado à Jaburu, revelou que ela ativou a transformação nela mesma.

Ao ser reconhecida como gente, implicou considerar que ela se transformou e fixou-se na forma humana. A palavra pan refere-se ao jeito antropomórfico de a Jaburu permanecer presente no mundo. Desde então, ela é relembrada como swãkiara, uma ancestral, cuja história tem sido perpetuada de modo dinâmico até os tempos atuais.

A Jaburu é definida como pessoa, desde quando reconhecida como panará, o que fica explícito na recorrente afirmação “Nãpri Panará”. Não se perde de vista que Nãpri é nome próprio. O reconhecimento dela como gente é coextensivo à sua identificação como Panará, o que torna gente sinônimo de Panará. Vale considerar que o termo Panará deriva dessa palavra pan, sendo que ara é um sufixo que indica coletividade.

A história deixa claro que socar a mandioca no pilão, assar a carne e preparar a esteira para o marido dormir (o que aparece noutras versões) são atividades realizadas sob a condição humana. Ajudar a preparar comida para o homem requisitou a transformação da ave em mulher. Jaburu torna- se reconhecida como Panará por ser capaz de desenvolver afazeres que, até então, eram realizados apenas pelos homens. Entende-se, então, que englobar a Jaburu como parte de um nós coletivo se desenvolve na medida em que ela manifestava um jeito de viver familiar, praticando costumes reconhecíveis.

Kuykiampo é o nome de uma comida típica deste povo em que a massa de mandioca, apodrecida na água e secada ao sol, é socada no pilão e depois hidratada com água, formando uma outra massa. Espalhada na folha de bananeira, depois recheada com a carne de peixe ou de bicho, em seguida coberta com folhas de bananeira. É assada num forno de pedras que, aliás, são as mulheres quem as lascam e as transportam até a aldeia.

A preparação deste tipo de alimento pelas mulheres Jaburu é enfatizada em todas as versões ouvidas, e tais práticas perpetuam-se em nossa atualidade, sendo uma comida muito apreciada pelas gerações contemporâneas e até mesmo por aqueles outros que passam a saborear o kuykiampo, quando têm a oportunidade de permanecer um pouco numa comunidade do povo Panará.

Conforme discutido por Coelho de Souza (2001; 2004), nas sociedades jê a humanidade é fabricada socialmente, opondo-se à prerrogativa dela ser dada como apriorística, enquanto um fenômeno natural (biológico). De modo associado, o pertencimento a um nós coletivo não é fixo, tampouco substancializado.

48 Segundo a autora, a construção da humanidade confunde-se com a do parentesco, sendo ambas extensões uma da outra. Importa-nos destacar a formulação de que a produção de uma pessoa é engendrada e intencionalmente orientada ao assemelhamento do corpo de outrem. Conceber o outro como um mesmo significa compartilhar hábitos, costumes, afetos e percepções. É o jeito de fazer as coisas que qualifica alguém como parte de um nós coletivo. É no corpo que se constrói um comportamento reconhecido como familiar, decisivo para a produção das relações de proximidade e identidade.

A transformação de ave em gente se desenvolveu sob a perspectiva de que no corpo humano inscreviam-se atributos sociais, concebidos como intrínsecos à humanidade e não à animalidade. Neste prisma, compreende-se porque a Jaburu foi particularizada como Panará.

Tem associação com o reconhecimento da Jowpy (Onça), Mĩ (Jacaré), Sâ (Gavião), Kwatoti (Sapo) e Kiãrâsâ (Cutia) como Panará, enquanto viveram no mundo como humanos na ancestralidade. A identificação de tais seres como partes de um nós coletivo foi subvertida quando eles se transformaram em animais, posicionados atualmente como não panará. Aqueles atributos sociais não se desenvolvem como comportamentos nos atuais corpos desses referidos ancestrais. Converge com a formulação de Coelho de Souza (2001; 2004) de que os estatutos da humanidade e do parentesco são passíveis de serem revertidos, impondo-se como construções sociais.

No entanto, impõe-se, neste caso, o acontecimento da transformação corporal que agenciou este dinamismo. Por meio da história da Jaburu, explicita-se que o antropomorfismo aparece como fundante da condição de a identidade panará poder ser manifestada. Afinal, todos os seres reconhecidos como gente na ancestralidade foram posicionados como Panará e a não permanência do antropomorfismo desencadeou a negação dessa identidade. Logo, os atributos sociais são vinculados à forma corporal humana.

Primeiramente, a Jaburu virou apenas mulheres e depois ela se tornou crianças, adultos e velhos dos gêneros feminino e masculino. Ela pensou em virar gente para ajudar o homem porque ele estava triste e fazia tudo sozinho. Neste momento da fala dela, Sokriti a expressou da seguinte forma: Ĩkjẽ rĩ

pari, ĩkjẽ rê ta, em português “Eu pensei em virar” (informação verbal)16. O verbo ĩpa, conforme discutido acima refere-se ao exercício do pensamento, uma ação subjacente à transformação. Ainda que sob a aparência física de bicho, o pensamento consciente aconteceu como uma manifestação na Jaburu, o que se associa ao seu estatuto de gente.

Conforme formula Viveiros de Castro (2002), os povos das terras baixas da América do Sul, habitantes do continente sul-americano, apresentam um diferente ponto de vista de mundo comparado

49 ao dos ocidentais modernos. Refere-se, particularmente, às noções de natureza e cultura, advogando que, diferente de nós, eles são multinaturalistas e não multiculturalistas.

Indo ao encontro com o que Descola (1986; 1992; 2001) já vinha refletindo, os povos ameríndios reconhecem o estatuto de pessoa nos animais, nas plantas e nos humanos, o que significa considerar a capacidade dos diversos tipos de seres desenvolverem uma ação intencional e pensada.

Também convergindo com Ingold (1995), a capacidade reflexiva, portanto, é um atributo da condição humana, e não do homo sapiens, exclusivamente, sendo tal condição passível de ser admitida nos astros, nas plantas, nos peixes e nos humanos por diversos povos. Viveiros de Castro (2002) afirma que a cultura, portanto, é universalizada entre as existências e que a diversidade está situada na natureza para os povos ameríndios.

Na formulação de Viveiros de Castro (2002), foi no tempo mítico que os diversos tipos de seres manifestaram-se pela primeira vez como humanos, praticando comportamentos e expressando conhecimentos equivalentes entre si, sendo explicitada a existência de uma única cultura entre todos. Porém, por terem se transformado em outros corpos, outras atitudes e comportamentos se manifestam, configurando a diversidade das atuais formas corporais dos animais, plantas e outros seres.

No documento O mundo Panará em criação (páginas 42-61)