• Nenhum resultado encontrado

2.1 Ética e modernidade Habitus e habitat na era da crise civilizatória

2.1.2 Crise e crítica como condição do ethos moderno

Para Vaz (1991), a temporalidade do ser moderno se institui como a novidade revelada pela compreensão filosófica, isto é, no exercício de aproximação do logos inscrito na realidade, enquanto se torna inteligível à razão. No ethos imaginado e realizado como aquilo que ficou conhecido como civilização moderna, a razão centrada no sujeito instaura-se como modo de asserção metafísica que faz da razão (lógica, dedutiva, matemática) um fim em si mesmo, ao tempo em que se alimenta da crença na total objetividade do mundo e da Terra. O Planeta Terra em seu conjunto e em suas especificidades físicas e geográficas é transformado em objeto a ser investigado pelo sujeito a partir dos dados e informações a serem revelados meticulosamente, e por partes, pelos métodos e instrumentos das ciências nascentes.

O entrecruzamento da ideia de tempo presente como tempo da razão com a visão de progresso como evolução vincula o destino humano e civilizatório à linearidade dos fatos corridos que se impõem sobre os espaços como constructo social. A História se torna o lugar

da autorrevelação humana pela capacidade permanentemente (auto) superativa da razão. E a Geografia é vista como o palco do desenrolar da história. Nesta perspectiva, ao longo dos séculos o ethos moderno se conforma à maneira de um antropocentrismo estético, ético e político transfigurado em hábito pela imposição de uma racionalidade tecnocientífica. Isto ocorre à medida que o costumeiro (e os costumes), majoritariamente aceito e requerido, passa ser vivido tanto a partir da dissociação subjetiva (cartesiana) com o mundo quanto na exploração da Terra (ou natureza) pelos mecanismos técnicos. O ethos da modernidade moderna se coloca ao mesmo tempo como base metafísica para a realização do ordenamento das funções e estruturas sociais, bem como define (pelo cartesianismo e utilitarismo) a relação entre sociedade e natureza em termos puramente reducionista e reificante.

Pode-se dizer que o iluminismo francês e o pragmatismo britânico ofereceram os fundamentos metafísicos e epistêmicos para o tipo de racionalidade que passa a vigorar na modernidade moderna como o modo de ser (a morada existencial) que articulará civil e universalmente a economia, as instituições, a política, a cultura. O expansionismo imperialista europeu sobre terras de outros continentes se torna um dos aspectos geo-históricos centrais do caráter aberto, e factual, de uma mentalidade que se realiza no desejo de apreensão epistemológica de todos os mistérios. Na formulação sistemática e crescente de tudo que há para ser inquirido (e dito) a conquista de todas as terras e povos é inevitável.

O sentido de modernidade que crescia nesse momento histórico e na Filosofia, como o Iluminismo e com o Pragmatismo se direcionava integralmente para as possibilidades abertas à engenhosidade humana por meio do intelecto. No entanto, tal visão não foi aceita com unanimidade, apesar de proclamar o caráter universal da episteme intelectual, isto é, lógico- racional. Se em sua raiz a modernidade já carrega consigo o nexo crítico como modo próprio de ser, da mesma maneira a crítica sobre a modernidade, em especial sobre a crise da modernidade, não é fato recente. Assim, desde muito cedo os fundamentos da racionalidade moderna têm sido vistos com cuidado por muitos pensadores. De forma antagônica, na perspectiva do elemento crítico como instituidor da razão moderna, pensadores (dissidentes) desse período estabeleceram novos princípios éticos, estéticos, políticos e ontológicos como contraponto ao imperativo epistêmico imposto pela razão universalizante moderna. O que se põe em xeque, essencialmente, é o entendimento da razão como finalidade primeira e última do modo de conhecer e de agir humanos. Nesta abordagem, pensar a crise da modernidade é antes colocá-la em seu esteio original como crise da razão.

Do ponto de vista metafísico, a razão se instaura de forma unitária (VITTE, 2007) para edificar técnica, cultural e socialmente o ethos moderno, e se espraiar no tempo e no espaço,

como modo civilizatório unificador do destino universal da humanidade. Porém, por seu caráter crítico e autônomo, tal unidade metafísica se deixa transparecer e se realizar na história da Filosofia e do Ocidente por meio do debate crítico entre modos diferentes de conceber, metodológica e epistemologicamente, o conteúdo e a maneira de apreensão do saber racional. Nesse sentido, falamos no plural: racionalidades. Para Vitte (2007), em cada r cion lid de singul r se encontr m ―(...) sistem s explic tivos e de pens mento n s qu is os discursos possuem uma história e são socialmente construídos e legitimados e, em cada qual, é soci lmente construíd um verd de‖ (VITTE, 2007, p. 3). As disput s d s verd des e su s representações não são em si a causa da crise. Pois, antes de tudo, a razão se instituiu a partir d cren n ―(...) c p cid de de comunic r-se discursivamente e que há uma construção do mundo e das coisas do mundo por meio da crítica, do questionamento e da legitimidade do outro enqu nto interlocutor‖ (VITTE, 2007, p. 4). O pens r o presente pelo presente contém, assim, o próprio caráter autocrítico da razão (Filosofia) e da modernidade. Para Vitte (2007), a razão nasce e cresce indissociavelmente correlata à crise.

(...) Um corolário importante para o surgimento da Razão é de que existem várias racionalidades e possibilidades de discursos interpretativos, portanto, de cognição do real, que são socialmente construídos. A crise, que chamamos de irmã siamesa da Razão surge porque a Razão é o produto de uma relação conflituosa e dialética entre a doxa21, a opinião e a episteme22, (JAEGER, 1992) a Ciência, na busca da verdade e do bem-estar (VITTE, 2007, p. 4).

Desde muito cedo os fundamentos racionais que reivindicaram para si um modo específico de racionalidade têm sido vistos com preocupação por muitos pensadores. Alguns se apressaram em assinalar parcialidades e discrepâncias na formulação e no modo de ser da racionalidade nascente, arguindo contrariamente sobre seu caráter progressista, útil e pragmático. Pois, muita coisa ficava de fora, ou, estava em demasia dentro do exercício hegemônico da razão, com base na objetividade, na eficácia e na concepção universalizante do humano e de seu papel na Terra. Aqui, a ideia da razão aparece como valor central que sustenta o ethos humano, isto é, a humanidade do humano (homo sapiens). Ela não apenas reforçou o lugar de primazia ao sujeito racional diante das outras criaturas terrenas (o cristianismo já havia realizado este feito). O ethos que prevaleceu na modernidade moderna determinou um modo de ser que identifica a razão como instrumento e o Planeta (e seus seres) como objeto a ser explorado para a permanente recriação do mundo (em algo sempre novo), visionado para as máquinas e para o expansionismo capitalista. Espaço e tempo são

21 Doxa é uma palavra grega que significa crença comum ou opinião popular. 22 Episteme é o conjunto discursivo de determinado momento histórico.

incorporados metricamente ao destino do Planeta, que já se tornou destino do humano, tal o vínculo da história humana com os meios e seres planetários.

No entanto, enquanto discorria a afirmação total da razão sobre o mundo, diversos pensadores tomaram para si a responsabilidade de revisão e desconstrução de alguns discursos explicativos e representativos vigentes. Criticaram o veto dado pela racionalidade hegemônica à abertura para a grande capacidade criativa e dialógica da humanidade nas esferas da ontologia, da sensibilidade, da estética e mesmo da espiritualidade. Apesar da grande factibilidade e competência com que os fundamentos da racionalidade ilustrada-pragmática desenvolveram as instituições que vieram substituir as estruturas sociais tradicionais, ainda assim a modernidade gerava em seu próprio seio outros modos singulares de compreender o

ethos moderno, bem como novas proposições éticas.

2.1.2.1 Românticos e a crítica racional sensível à racionalidade moderna

A racionalidade que se hegemonizou no contexto útil-pragmático da racionalidade britânica e no iluminismo francês teve nos românticos alemães dos séculos XVIII-XIX sua primeira crítica desafiadora. Ainda que circunscritos dentro do domínio epistêmico e histórico da modernidade, o Romanticismo Alemão propunha uma forma de racionalidade renovada, aberta à imediaticidade da sensação, da sensibilidade estética e da intuição (SILVEIRA, 2012). As principais críticas do pensamento e da arte românticos se direcionavam, assim, ao caráter eminentemente positivo, objetivo, útil e metódico professado pelos pensamentos e culturas do Iluminismo Francês e do Empirismo e Pragmatismo Britânico. Os românticos vislumbr v m ―outro modo de ser moderno‖ por meio da ressignificação subjetiva que girava em torno da busca por um eu associado ao mundo, mas, especialmente, à Natureza (VITTE; SPRINGER, 2010). Opunha, portanto, a racionalidade iluminista-pragmática que sustentava uma visão de mundo que tratava de espalhar (desde aquele momento, desde a Europa) um modo de vida materialista de base mercantil, urbana e industrial.

Para Vitte e Springer (2010), o Romantismo alemão assumiu uma crítica civilizatória tendo em vista a construção de abordagens alternativas ao modo hegemônico do racionalismo que se configurava como hegemônico. O Romantismo, dessa maneira, pode ser visto como um movimento com base na reconstrução metafísica do mundo e do sujeito, sustentada em uma ética, uma erótica e de uma estética centrada no eu como nucleador de uma relação orgânica, sensível e sensitiva. Portanto, se distanciava do progressismo Iluminista e da visão utilitária do Pragmatismo com base no reposicionamento ontológico do pensamento, da arte e da ciência com vistas a uma reaproximação sinergética com a Natureza e o Cosmos. Em

muitos aspectos, o confronto (ou a integração) das polaridades marcadas pelo racionalismo newtoniano e as sensibilizações estética e epistêmica suscitadas pelos Românticos (e idealistas) ofereceram aportes filosóficos para a formação das ciências que se desenvolviam à época, tal qual a Geografia Física de A. von Humboldt. Para Vitte (2011),

(...) A sensibilidade passou a guiar os trabalhos científicos no campo da psicologia, da medicina, da história natural e da geografia física; interferindo nas metodologias de pesquisa, nas epistemologias e nas estratégias de uso das técnicas e experimentos. É assim que, durante a Naturphilosophie alemã, a união entre a sensibilidade e a ciência gerou a concepção de uma visão estética da natureza, que guiou a construção de uma interpretação geográfica da superfície da Terra. [...] Há, assim, uma relação estreita entre as ciências naturais e o romantismo (...), marcada por uma forte introspecção, reflexão e pela sensibilidade, cimentada pela estreita relação entre arte, natureza e ciência. (...) A geografia física, surgida no contexto da Naturphilosophie, foi o produto da união entre o sentimentalismo e o empirismo, donde as suas teorias científicas serem o produto de uma relação complexa entre a sensibilidade e o newtonianismo, representada pela ciência humboldtiana (VITTE, 2011, p. 73).

No campo da Arte alguns intelectuais do idealismo alemão defendiam que a obra artística pode ser compreendida como um bem em si mesmo, condição para a realização de uma metafísica do sujeito baseada na sensibilidade e distante da visão mercantil do objeto de arte. A arte também se colocava como um modo de ver e de viver. Vida não se distancia da arte, assim como a filosofia se sustenta também pela sensibilidade artística23. Nesse sentido, ao tentarem se apropriar e atualizar temas e abordagens (como mito, mistério, espiritualidade) de culturas e civilizações antigas (isto é, pré-modernas) para dentro do escopo da produção racional e da sensibilidade, os românticos sofreram críticas contundentes de filósofos da época. Hegel24 foi um que se dissociava dos românticos em categorias básicas como o espírito, o absoluto, o mundo, a natureza, considerando inapropriada a forma com a qual os autores românticos buscavam realizar aproximação conceitual entre categorias como espírito- matéria, mito-razão. Para Hegel, tais categorias seriam irreconciliáveis (GONÇALVES, 2002)25.

Como dito, a avaliação racional e o debate livre de ideias é uma das bases do caráter do ser moderno e condição indelével deste. Nesta perspectiva, o Romantismo foi o primeiro grande movimento filosófico e estético de análise e ajuizamento da própria modernidade.

23 Vale ressaltar que a abrangência dos pensadores incluídos no escopo do romantismo, não só da escola alemã, mas também da inglesa e francesa, concomitantemente, torna qualquer generalização perigosa a respeito de temas específicos como a estética, a ética, etc. No ent nto, o fluxo de pens mento e de ―espírito‖ que gir v em torno deles, em essência, sentia como uma espécie de asfixiamento criativo o caráter estritamente racionalista e objetivo proposto pelo iluminismo e pelo pragmatismo.

24 Ver GONÇALVES, M. C. F.. Hegel e os Românticos. Forum Deustch, Rio de Janeiro, v.6, pp. 42-51, 2002. Neste texto Gonçalves analisa as criticas e o distanciamento de Hegel com relação aos pensadores românticos de sua época, em especial Schelling.

Concomitante e logo após a Revolução Francesa, os românticos realizaram um exame crítico dos principais alicerces e temas propostos pelo pragmatismo e iluminismo com base em Bacon, Descarte, Voltaire, Hobbes, Lock, Newton, entre outros. De certo modo assinalaram a parcialidade do racionalismo moderno em formação, o qual, para eles, já gestava e fazia progredir uma cosmovisão mecanicista, cientificista e materialista a qual, para eles, seria incapaz de abranger a totalidade da experiência humana. Nesse sentido, abriram campo para o questionamento dos fundamentos do modo civilizatório moderno que se solidificava na primazia da razão, do sujeito, da novidade, do capital e da indústria como primados ônticos e ontológicos do habitar humano na Terra.

Daí advém que, em circunstâncias diversas, surgiram pensadores das ciências humanas e sociais e da filosofia que encontraram vieses próprios de interrogação e crítica aos pilares de sustentação de uma modernidade racionalista, utilitarista, laica, burguesa, capitalista, antropocêntrica, materialista, etc. De Rousseau a Thoreau, de Karl Marx a Max Weber, de Friedrich Nietzsche a Martin Heiddeger, de Guenon a Oswald Spengler, de Sigmund Freud e Carl Jung aos pensadores de Frankfurt, entre tantos outros, cada um em seus campo próprio de interesse e pesquisa contribuiu para a realização de uma intensa inquirição em torno do

telos e do ethos moderno nas diversas dimensões da existência social, pessoal e planetária da

existência humana. Cada um ao seu termo e em condições geohistóricas particulares assinalara para sérias lacunas, fragilidades e distorções nas sociedades (e seus indivíduos) que estavam presenciando crescer na Velha Europa, a qual rapidamente atentava em espalhar a novidade (e suas crises) para todos os continentes.

2.1.3 Hybris contemporânea e o excesso tecnocientífico. A desmesura e a insaciabilidade