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2.5 Ecovilas e globalização Limites e novas fronteiras do social, do

2.5.2 Sociedade civil, novos movimentos sociais e Estado

Como assinalado até aqui, inicialmente, os grupos e projetos ligados diretamente ao movimento das ecovilas nasceram e se desenvolveram (principalmente em países do Norte) enquanto movimentos de resistência contraculturais (KIRBY, 2004), populares (BUNDALE, 2004) ou de base (BAGADZINSKI, 2002). Este fato remete aos princípios e às formas de ações e articulações propostas pelos membros das ecovilas a partir do vínculo com outros movimentos da sociedade civil. Originalmente, é nesse campo social que, de forma organizada ou espontânea, eles cresceram. Porém, em contexto de globalização, a ampliação do interesse de diversos agentes sociais pelas ecovilas também aumentou o escopo de sua atuação em novas frentes, algumas delas questionáveis. Por outro lado, o delineamento de uma autonomia frente aos agentes hegemônicos se coloca como desafio para a implementação e manutenção do caráter originário das ecovilas (genuínas) diante da sociedade.

Para o entendimento da repercussão e o caráter desse processo é necessário que se possa acompanhar determinadas mudanças sofridas pela sociedade civil organizada no contexto da globalização. Em um período de forte expansão do capitalismo, sob a orientação ideológica do neoliberalismo, o Estado sofre mudanças paradigmáticas que afetam também sua relação com a sociedade civil organizada. Neste novo contexto, os estados nacionais foram obrigados a passar por diversas reformas, de caráter tecnoburocrático e privatizante, minimizando suas

66 ―(...) the economic setup of ecovillages is often designed to fit a supportive social and family life by reducing financial requirements to alow a shift in lifestyle‖.

estruturas e redesenhando o escopo de sua ação. Na medida em que as grandes corporações se tornam cada vez mais poderosas, as diretrizes neoliberais apontam para o fortalecimento da regulação social por meio do mercado. Na diminuição da presença do Estado crescem novas frentes de negociação com a sociedade civil organizada, agora rebatizada de terceiro setor.

Em fronteira paradigmática, as novas regras do jogo demandam o estabelecimento de novas definições e estratégias institucionais concernentes ao desempenho da gestão social das organizações da sociedade civil (ALVES, M., 1998; PINTO, 2000). Neste contexto, as organizações sociais vão ampliar a oferta de serviços e de promoção de ações assistencialistas a setores mais precarizados socialmente (ALVES, M., 1998; FALCONER, 2000; FERNANDES, 1999). Em torno das exigências do mercado por maior competitividade e pela crescente necessidade por normatização das demandas sociais por parte dos governos, as organizações sociais são chamadas a exercerem uma função mais atuante em atividades negligenciadas, ou antes delegadas exclusivamente ao Estado. Elas passam a ocupar novos espaços dentro do tecido social, consentidos pela reforma estatal: nas áreas dos serviços sociais e ambientais, da educação complementar, da saúde, da arte e cultura, do direito, etc. Consolida-se, assim, a ampliação de parcerias entre agentes estatais e sociedade civil organizada (SANTOS, F.; PEDROSA, 1998; ALVES, M., 1998; MODESTO, 1999).

No contexto de redimensionamento do enfrentamento/relação sociedade civil-Estado e de adaptação ativa, muitas organizações não governamentais (ONGs) começam incorporar novos jargões (e filosofias) organizacionais que passam a prevalecer desde então: terceiro setor, capital social, entre outros (FONTES, 1999). Tanto na consecução de suas tarefas fins, bem como na forma como se administram, muitas dessas organizações são obrigadas a se capacitarem para acompanhar o redesenho das atividades e funções que irão assumir perante o poder público (e empresarial). Tal adequação às novas regras institucionais (e do mercado) abre novas possibilidades para as organizações sociais. De um lado, por meio da execução de projetos em parceria com o Estado, novas frentes de obtenção de recursos se ampliam. Por outro, a execução de tais ações também é uma forma de cumprir suas missões e propósitos ligados às ações voluntárias e às suas visões mais orgânicas já estabelecidas por princípio. Para sobreviverem e se sustentarem neste novo contexto, tais grupos necessitaram se estruturar formalmente, bem como fortalecer seu nível de capacitação técnico-institucional.

Do ponto de vista crítico-ideológico é importante atentar para o fato de que, em muitos casos, as ações institucionais de organizações sociais podem ser entendidas como neoliberais na medida em que se tornam agentes de políticas assistencialistas não emancipatórias. Estas teriam o papel de manter certo equilíbrio social, afastando ou mitigando tensões, enquanto os

agentes hegemônicos, econômicos e governamentais continuam a manter seu domínio sobre o mundo. Aqui, vale lembrar a crítica de Fotopoulos (2000, 2002, 2007) ao movimento das ecovilas que enxerga no envolvimento desses grupos em projetos assistencialistas posturas de cooptação e inserção institucional nas regras e agendas colocadas pelos agentes hegemônicos. Na mesma linha, mas em outro viés, algumas dessas organizações foram criadas justamente para oferecer guarida direta a propostas da elite, nacional ou global, com respeito à suas relações com os pobres e rebeldes67.

No entanto, apesar desses riscos, enquanto partícipe de um campo em disputas paradigmáticas no campo da política, da cultura e da ética, muitas organizações sociais têm lutado ferozmente para não perecer e continuar a colocar seus propósitos mais genuínos e a atuar de forma emancipatória. Em uma época de falência ou de diminuição da força propulsora das grandes ideologias norteadoras de transformações sociais (SOUZA SANTOS, 2008)68, muitas ONGs nascem e se fortalecem de dentro e/ou em dialógica relação com as realidades locais e seus atores. No contexto da globalização, cresce o discurso especializado e formal e as arenas de disputas sociais demandam cada vez mais organização e competência de seus participantes. Neste quadro, muitas dessas organizações servem de anteparo para a sobrevivência de certos projetos populares e reivindicações emancipatórias coletivas, tanto em nível local-regional quanto em contextos de articulação nacional e global. Neste sentido, a despeito das contradições e críticas sofridas, muitas dessas organizações também guardam demandas legítimas por justiça e equilíbrio socioambiental.

Em outra perspectiva, na nova conjuntura das reivindicações e lutas da sociedade civil, questões mais imediatas, situacionais e contextuais prevalecem com relação às lutas de classes do passado, essas últimas baseadas em questões mais estruturais (GOHN, 2005). Para Karol (2000, pp. 28-29), em contextos políticos de ação direta, particularizadas e setorizadas sobre s re lid des loc is, ―(...) o v lor d s ONGs vem do tr b lho que re liz m e n o do segmento soci l que represent m‖. Nesse sentido, no processo de relação entre as realidades locais e

67 O filme ―Qu nto V le Ou É Por Quilo?‖ (2005) de Sérgio Bianchi apresenta uma crítica aos projetos assistencialistas realiz dos por org niz ões soci is ―de f ch d ‖ em benefício d s cl sses domin ntes, perpetuando o vínculo entre miséria, assistência e injustiça. Uma análise do filme feita por G. S. Bayma (no blog

Brazilian Bullshit) elucid est quest o: ―(...) ―Qu nto V le Ou É Por Quilo?‖ n o question pen s f lênci

das instituições no país atual. Seu discurso analógico coloca o antigo comércio de escravos e a exploração da miséria pelo marketing social como imagens separadas que se articulam em uma montagem para dizer que o que vale é o lucro, não importando se esse é obtido com a venda de um escravo ou através de projetos sociais com or mento superf tur dos‖. Disponível em: <https://brazilianbullshit.wordpress.com/2012/04/16/resumo-filme- quanto-vale-ou-e-por-quilo-sergio-bianchi/>. Acesso em: 27 ago. 2015.

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Essa é uma das principais teses da corrente teórica que ficou conhecida como pós-modernidade. Apesar dessa posição não nortear as análises desta tese, alguns de seus fundamentos ajudam a compreender a possível construção de uma modernidade atravessada por múltiplos espaço-temporalidades.

substantivas e a necessidade de articulação institucional com os poderes hegemônicos, muitas dessas organizações vivem uma situação ambígua.

A despeito dos propósitos alternativos, libertários ou mesmo transcendentais que venham a professar, elas necessitam se incorporar às regras da racionalidade, mesmo que parcialmente. De um lado, em função de um processo de enraizamento em matrizes subjetivas, simbólicas e relacionais, constantemente estão a exercitar o que Habermas (1975) concebeu como ação comunicativa ou agir comunicativo. Habermas (1975) ainda assinala que, em função da incorporação das normas técnicas e das legislações a que são submetidas e de sua inserção no mercado, elas se veem obrigadas a se organizarem para exercitar no mundo, em maior ou menor grau, aspectos da razão instrumental, ou, do agir racional-com respeito-a-fins. Em uma linguagem buberiana, elas necessitam se ajustar às formas relacionais do tipo EU-ISSO, demandadas pelo sistema, para preservarem aspectos fundamentais das formas relacionais do tipo EU-TU (BUBER, 1982), presentes em muitos de seus propósitos mais significativos. Entre as formalizações necessárias e os acordos dialógicos essenciais, as demandas do tempo histórico necessitam de respostas.

Há um fino fio de separação entre essas duas tendências, aqui tomadas de forma generalizada. Somente uma análise mais acurada e contextualizada poderá melhor explicitar as intenções e tendências de cada organização social e do setor. É certo que o Estado tem aumentado seu investimento em parcerias, contratação de serviços, entre outras formas de repasse financeiro às mais diversas organizações enquanto terceiro setor. Ademais, algumas delas são de origens distantes. Por outro lado, por estarem mais próximas e conhecerem as demandas e as realidades locais, muitas ONGs têm provocado os governos (do municipal ao federal) a repensarem suas posturas diante de quadros socioambientais altamente desequilibrados no país. Diante do aumento dos desequilíbrios socioambientais, as ONGs e organizações da sociedade civil com um todo têm tido um papel fundamental tanto na demarcação de territórios reivindicatórios e participativos (GOHN, 2004) quanto na execução de atividades. No jogo do poder, porém, a clareza de suas intenções e ações diante do Governo e dos empresários bem como seu real comprometimento com as realidades locais, é algo a não ser esquecido. Pois, em contextos de fronteiras paradigmáticas, entre a cooptação e a resistência, há muitas nuances na busca por sociedades humanas mais justas internamente, entre si e em suas relações com os ecossistemas planetários. Só o compromisso duradouro poderá atestar tais atitudes.

As ecovilas nascem junto à redefinição do papel das organizações da sociedade civil. Se de um lado ainda primam por estilos alternativos de vida, portanto de resistência, por outro, a

necessidade de obtenção de recursos e de oferecimento de respostas solidárias ao contexto no qual se encontram tem feito muitos grupos buscarem fortalecimento institucional como estratégia dirimir os impactos das regras do sistema vigente. Crê-se, então, que as demandas colocadas pela globalização aos grupos sociais, em particular às ecovilas, não impedem muitos grupos de exercerem seus ideais mais promissores e solidários. São esses os desafios com os quais as ecovilas (genuínas) terão que lidar, o preço que terão que pagar, ao tempo que procuram construir novo ethos para o viver humano (seus e de outros) sobre a Terra.