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2.3 Técnica e espaço geográfico Formação do mundo e artificialização da

2.3.2 Unicidade técnica e a tessitura da tecnosfera-psicosfera A constituição vertical

O espaço geográfico total é assim a junção das diferentes temporalidades vividas pelos diversos povos, grupos, classes e coletivos, por um modo de totalização do espaço pela unificação técnica. O processo histórico de conquista do mundo e apropriação da Terra estende-se ao longo da história, mas, só se universalizou de forma radical na contemporaneidade. Observa-se, hoje, a criação de um espaço geográfico total (desde sua origem histórica) que tende a anular a natureza total (desde sua origem cósmica). O social enlaça o natural e submete-o ao estabelecer o adensamento técnico. No entanto, as contradições dessa realidade são percebidas pelas diferentes formas e reações socioculturais de se lidar, a partir do lugar, com o adensamento técnico do espaço.

Na contemporaneidade, a unicidade técnica (SANTOS, M., 1996) intercede como meio de aproximação entre diferentes temporalidades, vividas no lugar e no cotidiano em consonância e em reação ao meio técnico-científico-informacional total. Nessa linha, Santos, M. (1996) se refere à tecnosfera como o contexto material de concepção e propagação do

constructo humano que transformou o espaço cósmico em espaço geográfico na atual integração técnica mundial. Se a ciência e a tecnologia, para o autor, geram as condições para o acontecer da tecnosfera, elas também estão intrinsecamente ligadas ao arcabouço intelectivo, comunicativo, comportamental (e relacional) humanos. Para Santos, M. (1996) há uma indissociabilidade entre a tecnosfera e a esfera anímica/psicossocial, definida por ele como psicosfera. Nas palavras do autor:

(...) Ao mesmo tempo em que se instala uma tecnosfera dependente da ciência e da tecnologia, cria-se, paralelamente, e com as mesmas bases, uma psicosfera. A tecnosfera se adapta aos mandamentos da produção e do intercâmbio e, desse modo, frequentemente traduz interesses distantes; desde, porém, que se instala, substituindo o meio natural ou o meio técnico que a precedeu, constitui um dado local, aderindo ao lugar como uma prótese. A psicosfera, reino das ideias, crenças, paixões e lugar da produção de um sentido, também faz parte desse meio ambiente, desse entorno da vida, fornecendo regras à racionalidade ou estimulando o imaginário. Ambas – tecnosfera e psicosfera – são locais, mas constituem o produto de uma sociedade bem mais ampla que o lugar. Sua inspiração e suas leis têm dimensões mais amplas e mais complexas. (...) Tecnosfera e psicosfera são redutíveis uma à outra (SANTOS, M., 1996, p. 204).

Apes r de dit d por regr s e ―interesses dist ntes‖, tecnosfer (dependente d ciênci e tecnologia) se implanta nos lugares, consolidada valorativamente pela psicosfera. Na contemporaneidade, tal unificação tem levado ao extremo os aportes valorativos nascidos da junção entre fazer instrumental e racionalidade técnica, ambos conjugados e ativados pela compreensão do espaço-tempo (HARVEY, 1993) e magistrados pela mais-valia global (SANTOS, M., 2000). Igu lmente, ―(...) o meio geográfico tu l, gr s o seu conteúdo em técnica e ciência, condiciona os novos comportamentos humanos, e estes aceleram a necessidade da utilização de recursos técnicos que constituem a base operacional de novos utom tismos soci is‖ (SANTOS, M., 1996, p. 204). N contempor neid de, s contr di ões sociais autoevidentes passam a fazer parte do conjunto valorativo com base na voluptuosidade do materialismo e do consumismo e no modo explorativo do ser técnico.

A forma-conteúdo do espaço geográfico atual é atravessada pelo meio técnico- científico-informacional tecido pelo desigual e injusto sistema capitalista. Por outro lado, a identificação funcional entre técnica e ciência (tecnociência) se institui como sistema universal com base na eficiência e no cálculo. De maneira pragmática, os meios instrumentais assumem posição autônoma com respeito aos fins a eles impostos pelo capital. Nessa perspectiva, a tecnociência é proposta como meio de intervenção global e cósmica em um horizonte civilizatório no qual o dinheiro aparece como nucleador do modo de produção e de comunicação. Nesse contexto, o conceito de espaço geográfico proposto por Santos, M.

(1996) unifica eventos e espaços a partir de redes verticais e horizontais criadas pelo ethos civilizatório capitalista global e as relações que ele estabelece com os lugares.

Santos, M. (1996) vê o conjunto técnico sobre o espaço como o ambiente socio- histórico que permite os jogos de poder. No vínculo entre tecnosfera e psicosfera, a contradição do espaço geográfico aparece tanto nos confrontos e tensões entre grupos e classes pela posse e distribuição das riquezas produzidas como na divergência reivindicatória e experiment dor dos lug res. S ntos, M. (1996, p. 204) firm que ―(...) tecnosfer e psicosfera são os dois pilares com os quais o meio científico-técnico introduz a racionalidade, a irracionalidade e a contrarracionalidade, no próprio conteúdo do territ rio‖. As estrutur s do espaço global verticalizado são tencionadas pelas horizontalidades estabelecidas por meio de maneiras locais, plurais e resistentes do viver. Na globalização, a unicidade funcional entre tecnosfera e psicosfera se impõe de forma vertical sobre os lugares, os quais necessitam criar redes horizontalizadas para garantir sua identidade.

Do ponto de vista técnico e político, os lugares se especializam e se singularizam como forma de cooptação, adaptação ou resistência às regras financeiro-produtivas, à massificação cultural e aos ditames das corporações transnacionais. Em outro extremo, as redes físicas que se impõem à Terra como parte instrumental-artificial da crosta terrestre possibilitam a construção de novas formas de sociabilidades e espacialidades a partir, do aparecimento do ciberespaço e de novas territorialidades estabelecidas nas brechas do adensamento técnico- produtivo das sociedades contemporâneas. As redes técnicas criadas para a melhor orquestração do mundo pelo capital e pelos agentes da modernidade avançada também favorecem a criação de redes humanas de resistência e esperança (CASTELLS, 2012)50.

Os lugares se definem pela práxis intersubjetiva, como espaço-tempo plural da copresença e do cotidiano partilhado. Santos, M. (1996) vê o conteúdo de questionamento e de resistência nos lugares a partir da sociedade civil. Para ele, a espacialização da solidariedade torna os lugares aptos a criarem formas próprias de produção e consumo e de estabelecerem novas geograficidades horizontais de solidariedade, construtoras do reino da abundância e liberdade coletiva e pessoal. Nessa perspectiva, a resistência do lugar oferece um telos, uma finalidade, para cada modo divergente de incorporação e reação grupal à

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Ver entrevista de Manuel Castells concedida a Paul Mason (traduzida por Gabriela Leite) para a revista virtual ―Outr s P l vr s‖. Em resumo, C stells (2012) estuda e identifica diversas novas manifestações societárias (autônomas) anticapitalistas que crescem em todo o mundo em função das crises estruturais e conjunturais do sistema global. Um dos aspectos fundamentais desse novo contexto de experimentações e resistências é a formação de novos mecanismos propiciados pelas tecnologias digitais presentes nas sociedades da informação e das redes contemporâneas. Disponível em: <http://www.outraspalavras.net/2012/11/28/castells-ve-expansao-do- nao-capitalismo/>. Acesso em: 03 dez.2012.

unificação global da tecnosfera e da psicosfera. A singularidade com que os grupos diversos se aproximam do conteúdo técnico do espaço pode ser identificada, dessa maneira, tanto pela identidade e pelo lugar político que o grupo ocupa na sociedade total, como pela forma de apropriação e de significação que oferecem às técnicas. Por meio dos objetos, métodos e instrumentos os grupos determinam, assim, o caráter do fazer técnico enquanto praticam a criação-reação valorativa do seu espaço cotidiano.

Ao observar a prática de novos conjuntos de eventos técnicos e socioespaciais, Santos, M. (1996, 2000) entende o acontecer solidário como processo criativo e cooperativo de construção do lugar. A solidariedade socioespacial estabelece a horizontalização das redes de comunicação técnicas, políticas e simbólicas. Dito de outra maneira, a partir de Tavares (2000)51: é, no lug r, p rtir de redes horizont liz d s, que os ―de b ixo‖ têm condi ões de se apropriar e conduzir o processo da história a despeito das imposições verticais e homogeneiz ntes dos ―de cim ‖. A utopi cresce p rtir do comb te o niilismo ético por meio das lutas presentes contra a opressão bem como, por outro lado, sustenta a criação de novas teias técnicas solidárias de informação e de ação. Para Santos, M. (2000):

(...) As famílias de técnicas emergentes com o fim do século XX – combinando informática e eletrônica, sobretudo – oferecem a possibilidade de superação do imperativo da tecnologia hegemônica e paralelamente admitem a proliferação de novos arranjos, com a retomada da criatividade. Isso, aliás, já está se dando nas áreas da sociedade em que a divisão do trabalho se produz de baixo para cima. Aqui, a produção do novo e o uso e a difusão do novo deixam de ser monopolizados por um capital cada vez mais concentrado para pertencer ao domínio do maior número, possibilitando afinal a emergência de um verdadeiro mundo da inteligência. Desse modo, a técnica pode voltar a ser o resultado do encontro do engenho humano com um pedaço determinado da natureza – cada vez mais modificada –, permitindo que essa relação seja fundada nas virtualidades do entorno geográfico e social, de modo a assegurar a restauração do homem em sua essência (SANTOS, M., 2000, p. 80)52. Se no pensamento humanista de Santos, M. (1996) a nova conjuntura técnica possibilita novas utopias para a emancipação humana na perspectiva do mundo, por outro lado, na perspectiva cósmica e planetária que também se tem tratado nesta tese, sistemas técnicos resistem, em antigas e novas comunidades, como modos zelosos de tratar e se relacionar com a Terra. Na contemporaneidade, os lugares zelosos surgem com base em formas de apropriação cuidadosas e solidárias e na ressignificação valorativa dos conteúdos técnicos, políticos e culturais do espaço geográfico globalizado. São espaços que se singularizam não

51 TAVARES, Maria da Conceição. Prefácio. In: Santos, M. (2000). 174 p. Ver nota seguinte.

52 SANTOS, M. Por uma outra globalização. Do pensamento único à consciência universal. São Paulo: Record, 2000. 174 p. Ver paginação na versão virtual do livro: <http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/sugestao_leitura/sociologia/outra_globalizacao.pd f>. Acesso em: 01 set. 2015.

como forma de isolamento do mundo, mas como articulações reticulares – isto é, relacionais e comunicativas – no encaminhamento de ações e pensamentos em torno do cuidado como condição ontológica de relação com os meios socionaturais vigentes. Nesse sentido, pode-se pensar uma dupla ação para o cuidado: tanto se torna um dos ensejos da filia ao lugar (TUAN, 1974), como se oferece como base para a criação ecológica e produtiva do território grupal.

Em uma visão fractal da investigação geográfica sobre as ecovilas genuínas, a dinâmica da formação material e imaterial dos grupos no contexto delimitado pelo social, político e pelo cultural pode ser compreendido tanto a partir da categoria lugar quanto pela categoria território. O interesse volta-se então para o entendimento do comportamento dual desses espaços, ao mesmo tempo complexos e singulares. Nesse contexto, a partir do sentido tradicional de território, as ecovilas genuínas visam à reprodução material da vida de coletividades com base no exercício de poder real e identitário de um grupo sobre um espaço delimitado topográfica e juridicamente. Igualmente, se colocam como territórios na medida em que seus limites espaciais são bem delineados fisicamente, assim como sua zona de atuação em relação dialética e dialógica com grupos sociais do seu entorno. É no território que o grupo tece sua identidade e se afirma politicamente no mundo, mas é no lugar que acontece o vicejar do ethos coletivo-comunitário enquanto materialização dos sentidos simbólicos e valorativos. Transferindo a geopolítica, assim, para o campo do afeto e do cuidado, como será visto ao longo do trabalho, nesta tese, o interesse de delinear e reforçar as ecovilas genuínas como lugares zelosos se deve ao fato de ser no lugar, enquanto espaço físico, vivo e significado por um grupo, que seu modo de habitar e de ser cresce de dentro para fora. O território estabelece as fronteiras, mas o lugar a torna porosa para o acontecimento do encontro consigo e com os outros, sejam agentes sociais ou os outros seres da Terra. A construção da vivência coletiva na construção e ressignificação de seu espaço vivido redireciona o poder-sobre para o poder-ser. Nesse contexto, o lugar emantado pelo

ethos zeloso ultrapassa suas fronteiras físicas para estabelecer vínculos simbólicos,

socioculturais e factuais com outros lugares e com o mundo de forma geral.

Se a tese assinala para esse caráter dual das ecovilas genuínas, ela focaliza com mais intensidade na maneira como as ecovilas genuínas se tornam lugares para a construção valorativa e técnica dos grupos em suas afirmações zelosas. São em espaços de fronteiras que os territórios se tornam porosos e os lugares se sobressaem por se tornarem o centro de nova construção de mundo. Se a casa física, o território, é transitória e pode se desmanchar, o lar, o

ethos vivido espacialmente, permanece na vivacidade daqueles que o desejam carregar

território dos grupos em espaços de experimentação que transcendem seu poder fatual sobre o mesmo. O lugar, nesse caso, sustenta novas formas de territorialidades, sociabilidades e temporalidades como medida para a formulação de um espaço fractal que se desdobra no tecido socioespacial e ambiental como mundo novo em construção. Além de redes de lugares que se afirmam nesse mundo, aqui, o lugar se torna cósmico pela aceitação da presença de Gaia, a Terra-matriz ôntica e ontológica do humano.

Nesse sentido, como sugere S ntos, M. (2000, p.8), ―(...) gest o do novo, n história, dá-se, frequentemente, de modo quase imperceptível para os contemporâneos, já que suas sementes começam a se impor quando ainda o velho é quantitativamente domin nte‖. Essas sementes, ao olhar desta tese, já têm sido oferecidas como condições e incentivos às mudanças substantivas no modo vertical pelo qual o ethos da técnica explorativa e o dinheiro se impõem ao mundo e aos lugares. Nessa perspectiva, a partir de seus lugares vividos, a crise civilizatória se transfigura em crise de paradigmas – inflexão nas escolhas de pessoas, comunidades, coletivos, sociedades, imbuídos do espírito de transformação da humanidade. Os padrões e modelos com base em modos técnicos e valorativos cuidadosos significam não só crítica ao padrão socioespacial moderno e capitalista, mas, sobretudo, o endossamento de horizontalidades que se espraiam em todas as áreas sociais. A política se coloca assim nos horizontes das utopias vividas cotidianamente.

Nesse contexto, há a necessidade de se contemporaneizar o entendimento em torno da complexidade das tramas socioespaciais formadas no espaço-tempo civilizatório que se convencionou chamar de globalização. A partir de abordagem transdisciplinar nas ciências sociais e humanas, a seguir é apresentada uma análise da globalização e suas implicações paradigmáticas e societárias para o movimento das ecovilas. O modelo hegemônico coloca fronteiras civilizatórias que carecem ser analisadas a partir de limites socioeconômicos e político-culturais surgidos no ensejo da globalização, etapa mundial e técnico-informacional do capitalismo. Dentro disto, olha-se para modos dissidentes e de resistências.

PARTE 3

GLOBALIZAÇÃO E NOVAS FRONTEIRAS PARADIGMÁTICAS